“Memórias Musicais de Tomar 1900 – 1931”
Cremos, mesmo, que poucas terras portuguesas
possuam uma tão notável riqueza natural e artística
e que em poucas, ou mesmo em nenhuma,
se realizará como aqui um tão maravilhoso acordo,
uma tão perfeita, helénica harmonia
entre a Natureza e a Arte – que é, precisamente,
o que faz um dos maiores encantos de Tomar.
Fernando Lopes-Graça
(“Disto e Daquilo” – Tomar e o Turismo, 1973)
O conhecimento de uma figura histórica deveria sempre ser acompanhado de um contexto amplo dos vários ambientes nos quais o personagem viveu e as influências sofridas em suas múltiplas variações. Aprende-se a desvendar interrogações, processo que pressupõe denodo e vontade por parte do investigador, caminho basilar para a interpretação das obras legadas, sejam elas musicais, literárias, picturais, científicas e de tantas outras ramificações. Entender um J.S. Bach numa Alemanha luterana ou Jean-Philippe Rameau em uma França monárquica é também apreender destinações, o primeiro a compor dezenas e dezenas de Cantatas e Rameau dezenas de Óperas ou Óperas-ballet de cariz profano.
António de Sousa, musicólogo, professor e regente coral de méritos, já havia se debruçado sobre Fernando Lopes-Graça (1906-1994), o notável compositor tomarense, ao escrever obras basilares para o melhor conhecimento do músico (vide blogs: “A Construção de uma Identidade – Tomar na vida e obra de Fernando Lopes-Graça” in “Movimento Editorial – Livros Portugueses sobre Música”, 19/04/2008 e “Escritos Lampantes da Vida e Obra de Lopes Graça”, 02/06/2018).
“O Meio Musical de Lopes-Graça ( I ) Memórias Musicais de Tomar – 1900-1931”. A edição pela Casa Memória Lopes-Graça, de 1921, revela mais um aprofundamento de António Sousa na busca incessante de desvendar fatos paralelos, mas essenciais à maior compreensão do notável compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Para tanto, o autor não apenas recolheu referências sobre as atividades artísticas em Tomar antecedendo as fronteiras dos séculos XIX – XX, mas adentrou as três primeiras décadas do século percorrido por Lopes-Graça. O livro contém rica iconografia, a preceder a emergência de Lopes-Graça como músico, e o acompanha em seus proveitosos anos de formação e desempenho musical.
Tomar — com seus oito mil habitantes no fim do século XIX, hoje com cerca de 38.000 – evoluiria, a ter como sustentáculo umas poucas fábricas e basicamente uma agricultura de subsistência, tendo importante centro operário socialista e anarquista, como bem sublinha o autor, que destaca ter sido “neste contexto que nasceu a geração tomarense de que Fernando Lopes-Graça fez parte, que cresceu no meio da mudança da Monarquia para a República, tendo sido depois apanhada, em 1926, pela ditadura militar, regime saído da marcha de Gomes da Costa sobre Lisboa”.
Seguir a transformação dos espaços tomarenses é essencial para a compreensão de Tomar voltada às atividades artísticas. António de Sousa apresenta a sequência de salas e auditórios nos quais espetáculos voltados à música, ao teatro e ao cinema contribuíram para a formação humanística da sociedade tomarense, quase sempre sob o manto do Convento de Cristo, o extraordinário monumento medieval, Patrimônio Mundial. É admirável a sequência de espaços construídos, reconstituídos e com fins precípuos voltados às atividades artísticas. No longínquo 1843 era inaugurado o Teatro Nabantino, reconstrução a partir de um edifício público, mercê da participação da alta burguesia. Tem interesse esse dado, pois paulatinamente outras classes sociais, ideologicamente distintas, passaram a fazer parte das atividades ligadas às manifestações artísticas de cariz erudito ou popular. António Sousa nomeia os espaços cronologicamente. Do Teatro Nabantino tem-se após o Salão Paraíso de Tomar, o Cineteatro de Tomar e o belo Coreto da Várzea Pequena, este inaugurado em 1897.
Para que pulsasse a vida artística da cidade, diversas modalidades estimulantes seriam necessárias e Tomar apresentava, nessa fronteira dos séculos, associações e instituições voltadas à música. Serenata Tomarense, Tuna Comercial e Industrial Tomarense, Sociedade Republicana Marcial Nabantina, Sociedade Filarmônica Gualdim Pais, Banda Regimental do R.I.15 e o Orfeão Tomarense. Todas imbuídas da prática musical. Os diversos grupos, músicos amadores e outros em nível mais aprimorado, juntavam-se para as várias manifestações musicais em recintos fechados ou abertos, neste último caso, as bandas ou o orfeão.
António de Sousa expõe três grupos que regularmente se apresentavam: o Quinteto do Salão Paraíso, o Cenáculo Musical da Casa do D. Prior e a Orquestra Sinfônica Tomarense. Com apenas catorze anos, Lopes-Graça já integrava o Quinteto do Salão Paraíso “para acompanhamento dos filmes que vinham de Lisboa numa caixa a qual, algumas vezes, trazia partituras para acompanhamento das fitas”. Foi nesse cenário que Lopes-Graça recebeu aos 15 anos seu primeiro salário, que lhe possibilitou “não só pagar as suas aulas de piano com a D. Rita como, inclusive, comprar a grande corrente de ouro que exibe na fotografia que o próprio Quinteto tirou, para sua publicidade própria”, segundo Sousa. Já nos seus 15 anos era Lopes-Graça que realizava os arranjos para o quinteto, sendo, segundo o musicólogo, “seus primeiros trabalhos na área da composição”.
A prática pianística que possibilitou a Lopes-Graça participar de conjuntos, amadores ou não, poderá explicar a sua escrita, quando destinada ao piano, ser tão apropriada e competente e tantas vezes plena de originalidade. Sob outra égide, ter tocado durante as sessões de cinema mudo não lhe teria dado impulsos criativos? Em termos brasileiros, vários compositores que permaneceram na história também acompanharam ao piano sessões do cinema mudo. Essa atividade possibilitaria aos compositores de antanho a prática da improvisação, independentemente das peças editadas que eram profusamente tocadas.
A seguir, António de Sousa dedica espaço aos músicos tomarenses do período estudado. Desses incentivadores da atividade musical, mencionei anteriormente a figura da Professora Manuela Tamagnini, que me convidou nos anos 1982-83 para recitais em Tomar.
Ao abordar Lopes-Graça nos anos 1928 a 1931, três fatos merecem destaque: a 1ª audição absoluta da primeira obra do catálogo de Lopes-Graça, Variações para piano sobre um tema popular português op 1, que o compositor-pianista interpreta após a Sonata op. 27 de Beethoven no concerto realizado no Cine-Teatro de Tomar, aos 28 de Março de 1928. Nesse mesmo ano, surge o A Acção, Semanário Republicano a se antepor ao precedente De Tomar, cujos membros eram apoiadores do Ministro das Finanças, António de Oliveira Salazar. Como Redator Principal de A Acção, Lopes-Graça, em seu primeiro editorial, afirma: “A Acção será pela defesa da Democracia e da República, da Liberdade e da Justiça…, não descuraremos nunca o problema regional ou citadino, (…) sempre que ele represente qualquer coisa vital, eficiente, de interesse coletivo”. Foram 113 números publicados até 1931. As posições de A Acção levariam para a prisão 12 jovens tomarenses ligados ao semanário. Permaneceram mais tempo aprisionados dois dos principais dirigentes do Jornal A Acção, José Nunes da Silva e Lopes-Graça, liberados em Maio de 1932.
“O Meio Musical de Lopes-Graça ( I ) – Memórias Musicais de Tomar 1900-1931” apreende período fundamental da edificação do compositor. Louvem-se as investigações persistentes do ilustre musicólogo António de Sousa. Aguardemos a continuação das pesquisas, a fim de que a figura de Fernando Lopes-Graça se delineie ainda mais, a servir para tantos outros aprofundamentos sobre a vida e a obra do insigne compositor.
Clique para ouvir, de Fernando Lopes-Graça, Sonata nº 1 (1934), na interpretação de António Rosado – piano:
https://www.youtube.com/watch?v=RFMDSPmqYa8
With a sound research work, the teacher, musicologist and choral conductor António de Sousa, in his book “O Meio Musical de Lopes-Graça” (I), has the merit of revealing the propitious environment that precedes the birth of the composer, extending his sharp look to the beginning of the 1930s.
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