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Aparição a Assustar Companheiras

Fantasma. Charge de Luca Vitali. Junho de 2010. Clique para ampliar.

Aquele que ressurge é um novo homem.
Provérbio vietnamita

O homem tem por característica apegar-se às referências. Em quase todas as áreas e sentidos. Elas lhe dão segurança. Perdê-las pode ocasionar as mais variadas reações, motivadas pela ligação que se formou entre seres humanos. Há referências abstratas: não as conhecemos, mas aprendemos a admirá-las ou não. O negativo conteria igualmente carga referencial, que interfere longamente ou esporadicamente sobre nós. Qual não é o impacto ao sabermos que determinada pessoa que conhecemos e estimamos desapareceu? Nos últimos dias fui surpreendido pela morte de figuras humanas sensíveis, de quem muito gostava. Por mais que a morte seja nossa única certeza, sempre há esse choque, mormente se afeto existe. Nada a fazer, a não ser nos conformarmos. Essas referências que partem permanecem com intensidade durante certo tempo e após, como bem frisava Fernando Pessoa, pouco a pouco se diluem. Tornam-se lembranças vagas, dependendo das gradações variáveis de afetos. É a realidade.
Conversávamos descontraidamente: Luca, o pintor, Elson, o maratonista, e eu. O tema surgiu com naturalidade. No pequeno parque perto de minha casa, por dois anos, em 2006-07, realizei meus primeiros trotes, a visar ao aperfeiçoamento físico. Com o passar do tempo, o espaço, com pista de 300 metros e movimento constante, tornou-se impraticável, pois aumentei as passadas, a quilometragem e fui para as ruas, a correr de 6 a 10km três vezes por semana. Luca é atento observador e o poeta do lápis ou pincel. Elson, o amigo certo. Bem mais jovem e rápido, dá-me constantemente preciosos conselhos. Autêntico guru do septuagenário corredor. Sou atento ouvinte e busco o aperfeiçoamento durante as corridas oficiais pelas avenidas e ruas da cidade.
A certa altura, Elson e eu comentamos com Luca algo inusitado. Subíamos uma das ruas de nossa cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, quando os amigos do cantinho dos aposentados, aqueles já tantas vezes mencionado em blogs anteriores, desciam. Contaram algo curioso. Como desapareci do parquinho por volta de 2008, lembranças ficaram, pois tínha o hábito de conversar amistosamente, após os exercícios, com vários frequentadores do espaço, então aprazível. Técnicas, alongamentos, respiração, passadas, tudo era motivo para um bom papo.
Recentemente, vários de meus bons amigos aposentados, frequentadores do parque, mas inimigos dos exercícios físicos, discutiam sentados política, futebol ou o tempo – acredito firmemente – , quando, a certa altura, três senhoras que estavam a realizar marchas forçadas encontraram-se e pararam em frente ao banco. Como falavam alto, os amigos silenciaram por momentos. Foi quando uma delas, dirigindo-se às duas outras, perguntou se sabiam algo do pianista que corria pelo parque após intensas quimioterapias. Mais silenciosos ficaram meus amigos. As senhoras, após dúvidas e questionamentos, chegaram a conclusão que o pianista já deveria ter morrido. Lamentaram o possível passamento e continuaram seus exercícios. Pianista e companheiro das marchas e leves corridas. Morto e sepultado.
No encontro na rua aludida perguntei aos amigos se eles confirmaram a minha existência. Muito pelo contrário, pois, assim que as senhoras desapareceram em uma das curvas da pista, deram boas gargalhadas.
Passaram-se semanas desse episódio. Em uma manhã em que estava a estudar piano para a longa tournée de Maio último, fui atender ao toque da campainha. Imediatamente reconheci uma de minhas conhecidas que andava e corria pelo parque e, com certeza, uma das que me entendia no além. Ao me ver, uma só frase, a traduzir estupefação e alegria: “Que bom !!! Você ainda vive !!!
Na charge de Luca Vitali, Fantasma, não faltou o gavião que devorou os canários de meu vizinho Uyara (vide A Vingança do Gavião – Falco Femoralis. 11/04/08). Seu apetite voraz não poupa as “almas aladas”.

On my presumed death and resurrection and the stare of sheer amazement of a fellow runner when she saw me alive and well.

Programa da Rádio Cultura FM

Paris, 1960. Momento do caminhar

Este breve Interlúdio é um convite para o programa Tema e Variações, tão bem conduzido pelo excelente músico Júlio Medaglia, transmitido pela Rádio Cultura FM – 103.3 MHz. Os visitantes do Blog poderão ouvir a entrevista on line neste próximo Sábado, 5 de Julho, às 11 horas da manhã, clicando aqui.

Causou-me alegria receber telefonema da Rádio Cultura FM, a fim de gravar um programa a convite do eclético e competente Maestro Júlio Medaglia, amigo dileto desde os anos 50. Septuagenário ele também, lembrou-se da efeméride do colega, e prazerosamente com ele gravei entrevista a abordar panoramicamente a minha trajetória. Perguntas sempre inteligentes de Medaglia foram respondidas como se estivesse a sobrevoar o meu passado. Escolhi peças curtas, mas representativas, entre aquelas existentes nos 18 CDs gravados no Exterior. Não inseri o seu Estudo-Choro, pleno de humor, para evitar, mercê da modéstia do ilustre colega, uma negação.

Júlio Medaglia (direita) e J.E.M.

Abre o programa um segmento do Concerto em lá menor de Grieg para piano e orquestra, sob a regência de Armando Belardi, gravado no longínquo 1957 e transmitido ao vivo pela Rádio Gazeta, (vide Impressões Digitais Sonoras, 10/04/07, categoria Música). Após um outro registro ao vivo em Moscou, em 1962, tem-se obras gravadas nestes últimos 13 anos para CDs internacionais. A uma arguta pergunta de Júlio a respeito de qual a minha maior emoção como pianista, frente a públicos os mais diversos em toda a carreira, disse-lhe, extraído de meu de profundis, que foi interpretar Jesus Alegria dos Homens, de J.S.Bach, na milenar capela de Sint-Hilarius, em Mullem, no silêncio e no isolamento, em memória de meu saudoso genro José Rinaldo. Eram cinco horas da manhã de um Fevereiro gélido na planície flamenga no ano de 2004, poucos dias após sua morte e ao final do último dia de gravações de um CD para o selo De Rode Pomp. Solicitei ao querido amigo e engenheiro de som Johan Kennivé que deixasse acesa apenas uma pequena lâmpada incidir tênue claridade. O extraordinário coral de Bach em transcrição de Myra Hess, que poderá ser ouvido novamente, não faz parte de nenhum CD programado, pois insight de emoções vividas, mas ecoou pelos espaços do templo como um apelo singelo (vide José Rinaldo, 25/01/08, categoria Cotidiano).
Trajetórias são como impressões digitais. Nós podemos interferir escolhendo o caminho resultante do que somos na realidade. Todas as trajetórias têm intensidades meritórias ou não. Compete-nos dar sentido à senda traçada.

This is an invitation to my readers to listen to the program “Tema e Variações”, presented by the composer, arranger and conductor Júlio Medaglia on Cultura radio, via FM, 103.3 MHz, to be broadcast on Saturday, 5 July , at 11 AM (Brazil time), celebrating my 70th anniversary.

DC-3 do CAN

Douglas DC-3

Do trilho
só entende quem o trilha.

Adágio Popular Açoriano

Estava a almoçar na Universidade com meu dileto amigo e colega Edelton Gloeden, excelente violonista, e este contou-me, entusiasmado, a respeito de um curso que dera em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, patrocinado pela Universidade Federal. Perguntou-me se conhecia a cidade. Disse-lhe que sobrevoara Campo Grande em baixa velocidade, lembrava-me das largas ruas e, superficialmente, do aeroporto. Contei-lhe o episódio.
Em 1963, dei um curso de três semanas em Instituto Musical de Assunção, a convite de uma Companhia local e das Linhas Aéreas do Paraguai. Foi entre Outubro e Novembro, meses absolutamente quentes. O curso de interpretação pianística transcorreu bem e, ao final, dei um recital de piano transmitido pela Rádio para todo o país. Tempos do ditador Alfredo Stroessner (1912-2006). No intervalo da apresentação, o Embaixador do Brasil, o ilustre escritor, político e diplomata Mário Palmério (1916-1996), futuro membro da Academia Brasileira de Letras, em público, ofereceu-me alguns livros, entre os quais o premiado Vila dos Confins (li-o com enorme prazer) e um LP, dele constando algumas guarânias por ele compostas. Gentilmente asseverou que eu receberia um cachê do governo brasileiro, oferecendo a mim e à minha mulher o retorno ao Brasil pelo vôo do Correio Aéreo Nacional (CAN). Nossa intenção inicial era regressar no dia seguinte utilizando o bilhete aéreo paraguaio, mas a nova passagem fez-nos permanecer mais dois dias na cidade e defrontamo-nos com duas “epopéias”: a do cachê, jamais recebido, apesar de muitas missivas trocadas, e a viagem pelo glorioso CAN, que relevantes serviços prestou à nação em tantas décadas. O CAN realizava verdadeira interação deste país continente, atendendo também algumas nações limítrofes. Fez-me lembrar, sob contexto outro, do extraordinário livro Courrier Sud, de Antoine de Saint-Exupéry.
O percurso, que seria de aproximadamente duas horas, levou exatamente um dia. O avião, um Douglas DC-3, tipo de aeronave tão utilizada durante a Segunda Grande Guerra, tinha os bancos laterais de madeira e todos os tipos de personagens adentraram o avião, enquanto enormes pacotes abarrotaram outros espaços. Como o DC-3, incrivelmente estável, voava a baixa altitude e o calor era intenso, viajamos por muitas horas com as janelas abertas. O avião fez várias escalas, a fim de deixar e recolher correspondência e mercadorias. Pessoas desciam e subiam, quase como em ônibus urbano, e a cada decolagem minha mulher passava mal e tinha de acudi-la. Ponta Porã, Dourados, Campo Grande, Três Lagoas, dois ou três outros pousos em pistas de terra batida, cuja localização eu não saberia precisar, uma cidade do interior de São Paulo cujo nome não me lembro, e o destino final, que seria São Paulo. Ao sobrevoar, já à noite, o Aeroporto de Congonhas, desabava um aguaceiro violento, e o avião foi pilotado prudentemente até Viracopos. Outro era a momento histórico, em que interesses espúrios ainda não se mostravam pandêmicos. Esses pilotos militares eram super competentes, habituados a todo tipo de adversidade e atenciosos para com os passageiros, alguns descalços, pois pessoas simples da lavoura subiram e desceram em outros campos.
Quando finalmente aterrissamos no aeroporto de Campinas, já com poucos passageiros, a tempestade chegou logo após, precedida por rajadas violentíssimas de vento. O DC-3, longe de ser um avião pesado, sentiria as conseqüências caso medida urgente não fosse tomada. O comandante solicitou um veículo, que recolheu mulheres, idosos e crianças, não sem antes pedir aos homens que permanecessem no interior do avião, a fim de ajudar a tripulação, formada por militares. Levados os escolhidos, e sob as ordens do comandante, descemos naquela ventania forte, já sob aguaceiro total, e tivemos a árdua tarefa de puxar com firmeza umas cordas para serem fixadas – não saberia precisar onde, devido à intempérie –, a fim de que o avião não ficasse à deriva. Serviço encerrado, fomos ao saguão e aconselhados a pernoitar no aeroporto, pois apenas no dia seguinte a aeronave seguiria para São Paulo. Foi-nos permitido dormir em casa de meus sogros em Campinas, mas a bagagem permaneceria no avião. Por tratar-se de vôo internacional, o desembarque teria de acontecer em São Paulo. Após uma noite curta, no final da madrugada já lá estávamos para o percurso definitivo.
Com tantas viagens realizadas no decurso da existência, seria impossível rememorar todos os trajetos. Esse ficou marcado graças à gentileza do escritor Mário Palmério e às peripécias do percurso. Contá-lo a um amigo como Edelton serviu para boa descontração. A seguir, caminhamos dispostos para as aulas do período da tarde.