Cahiers Debussy (nº31, 2007)

A mais pura melodia do coração de Debussy.
Gabriele d’Annunzio (1863-1938)
(referência à Chouchou)

A única carta então conhecida de Claude-Emma, carinhosamente nomeada Chouchou pelo pai, Claude Debussy (1862-1918), filha do casamento do compositor com Emma Bardac, foi destinada a Raoul Bardac, seu meio-irmão, filho do primeiro matrimônio de Emma, dias após a morte do compositor. Publicada no volume dedicado às cartas de Debussy e de figuras importantes das artes e da cultura ao notável músico, constitui reunião hercúlea do ilustre musicólogo e bibliotecário François Lesure (1923-2001) e figura maior no que concerne a Debussy na segunda metade do século XX. Com o falecimento de Lesure, os especialistas colaboradores, Denis Herlin e Georges Liébert, finalizaram a magnífica coletânea de missivas (“Correspondances” 1872-1918, Éditions Gallimard, 2005, 2.331 pgs).

Na carta a Raoul Bardac, impressiona a maturidade de Claude-Emma que, aos 12 anos de idade (30/10/1905 – 14/07/1919), revela os momentos finais do seu ilustre pai, dele se aproximando encorajada pelo compositor Roger Ducasse (1873-1954): “Imediatamente compreendi que era o fim. Logo que entrei no quarto, Papai dormia e respirava regularmente, mas de maneira abreviada. Dormiu até às 10 ¼ da noite e, docemente, angelicamente, dormiu para sempre. O que se passou após eu não posso lhe contar. Uma torrente de lágrimas queria escapar dos meus olhos, mas eu impedi imediatamente por causa de mamãe. O resto da noite, na grande cama de mamãe, não consegui dormir um minuto. Veio a febre e meus olhos secos interrogavam as paredes e eu não podia acreditar na realidade!!!..”. A extensa carta revela a previsão apontada pelo poeta e dramaturgo italiano Gabriele d’Annunzio (1863-1938), que captara tempos antes a precocidade de Chouchou, augurando-lhe futuro promissor.

De interesse alguns segmentos de uma carta de Debussy à Chouchou, quando de sua estada em S.Petersburgo para apresentação de suas obras: “Minha pequena querida Chouchou, teu pobre pai está em falta com você pelo fato de não ter respondido a sua tão gentil carta. Não me queira mal… É muito triste estar privado após tantos dias sem ver a bonita figura de Chouchou, de não mais ouvir suas canções, suas risadas efusivas, enfim, todo o barulho que faz de você criança insuportável algumas vezes, mas encantadora na maioria delas. O que será do Sr. Czerny, que tem tanto talento? Você sabe: aquela música de balé para pulgas?”.

Como vai o velho Xantô? (o cão de estimação). Está bonzinho? Continua sempre a destruir o jardim? Eu te autorizo a corrigi-lo… Não creio ser possível te esquecer um segundo sequer. Muito ao contrário, eu não penso senão no dia em que a verei novamente. Nessa espera, pense no carinho do seu pai que te envia mil beijos… Seja gentil com sua pobre mãezinha para que ela não fique triste”. (11/12/1913).

Se Children’s Corner (1909) foi dedicada a Chouchou, La Boîte à Joujoux (1913) o foi não nominalmente, mas estava presente no pensar de Debussy durante a criação do ballet pour enfants.

Foi em São Paulo, em 1980, que eu conheci o empresário Gérard Killick, filho de Ada Killick (1898-1978). Ele me contactou após ter lido na imprensa o meu interesse pela obra de Debussy, mercê dos quatro recitais em São Paulo (MASP), quando apresentei a integral para piano do notável compositor. Fixamos um encontro em seu escritório e, após uma conversa amigável, ofereceu-me um pequeno rolo em papelão, precisando que doravante seria eu o guardião das três cartas escritas por Claude-Emma, Chouchou, e enviadas à sua mãe Ada Killick, jovem professora de piano, pouco mais de um mês após a morte de Debussy. Gérard me contou que sua mãe nasceu na França e morreu em Ubatuba. Segundo Gérard, ela jamais esqueceu os momentos de convívio quando das aulas de piano em casa de Debussy. Ada Killick estudou em duas escolas antes de ingressar no Conservatório de Paris. Provavelmente algum professor do estabelecimento recomendou a jovem ao compositor. Poucos meses antes da morte (25/03/1918), Debussy escreve à professora agradecendo o seu trabalho, mas desobrigando-a doravante (24/10/1917). As cartas de Chouchou à Ada Killick testemunham que ela continuava a orientá-la.

As três cartas adquirem importância por serem as últimas conhecidas de Chouchou Debussy, pois escritas posteriormente à enviada ao seu meio-irmão Raoul e redigidas pouco mais de um mês da morte de Debussy. As missivas confirmam a opinião de Gabriel d’Annunzio sobre a precocidade intelectual de Chouchou, ratificada por figuras como André Caplet (1878-1925), compositor e regente, e o poeta e novelista Paul-Jean Toulet (1867-1920). Chouchou morreria em 1919, vítima de difteria mal diagnosticada. Inéditas em França até 2007 (Cahiers Debussy, nº 31), foram inseridas como apêndice em meu livro “O som pianístico de Claude Debussy” (São Paulo, Novas Metas, 1982).

A primeira, escrita um mês após a morte do pai (28/04/1918), demonstra um estilo fluente e caligrafia segura: “Minha mãe está muito cansada para lhe escrever. Ela própria pede que a desculpe e me encarrega de lhe dizer que, como tenho de partir na quarta-feira, se estiver bem, não poderei ter aulas nem na segunda nem na terça-feira, pois estarei muito ocupada, como pode imaginar. Ela solicita que, assim que receber esta carta, tenha a bondade de lhe enviar o valor das minhas aulas (que ela vos enviará por vale postal).
Com os meus melhores cumprimentos, receba, prezada mademoiselle, a sincera amizade de
Chouchou Debussy”.
80, Ave. du Bois de Bologne

A segunda carta (30/05/1918) é plena de abnegação e preocupação filial quanto ao sofrimento físico e emocional que atravessa sua mãe, esquecendo-se ela mesma dos seus: “Mamãe está muito doente. Não fomos a Annecy como tínhamos planejado. Ela teve uma recaída do seu terrível reumatismo, que ainda a afeta, infelizmente! Tivemos tanto, tanto que fazer com todos esses últimos e terríveis acontecimentos que não tive um minuto, querida mademoiselle, para lhe escrever e dizer que a carta que enviou à mamãe se perdeu e, por isso, ela não sabe mais o que lhe deve. Mamãe tem tantas coisas em que pensar e lembrar! Portanto, seria muito gentil da sua parte me dizer o valor das minhas aulas.
Espero, querida mademoiselle, que esteja bem de saúde e lhe envio meus melhores cumprimentos e acredite na minha sincera amizade.
Sua
Chouchou Debussy”

A terceira carta foi escrita no denominado mandat-lettre, na horizontal e na horizontal sobre a vertical, A data do mandat mostra-se ilegível, percebendo-se apenas o ano ‘18’. Foi enviada pela própria Chouchou (“Mlle. Debussy”): “Prezada Mlle., acabei de receber notícias suas. Acredito lembrar-me de que Mlle. comprou para mim 8 fr. 80c. em músicas, perfazendo um total de 59 fr. 80 c. Mamãe está um pouco melhor e nós partiremos amanhã à noite, com Françoise, Madeleine e minha irmã (Trata-se de Dolly, meia-irmã de Chouchou), para Arcachon. Eu vos escreverei. Desculpe-me a caligrafia. Toda a minha amizade, Chouchou”.

Gérad Killick, ao me oferecer as cartas dizendo que eu seria guardião da preciosa correspondência, propiciou-me, anos mais tarde, doá-las ao Centre de Documentation Claude Debussy por intermédio do seu presidente, musicólogo François Lesure. Ao ser publicada a correspondência de Debussy mencionada acima sem as cartas em pauta, imediatamente a ilustre musicóloga Myriam Chimènes me contactou para que as apresentasse em artigo para os Cahiers Debussy.

O conhecimento dessas missivas apenas ratifica a mentalidade apurada de Chouchou Debussy, sua afeição imensa pelo pai e seus cuidados em relação à situação física e emocional de sua mãe, Emma. O artigo foi também a minha derradeira contribuição para os Cahiers Debussy.

The Cahiers Debussy (No. 31, 2007) published the last three known letters written by Chouchou Debussy, the composer’s daughter, to her piano teacher Ada Killick. Her son Gérard gave me the letters in 1980, saying that I would be their guardian from then on. Years later, I donated them to the Centre de Documentation Claude Debussy in Paris.

Cahiers Debussy (nº 25 – 2001)

Defendemos que a beleza de uma obra de arte permanecerá sempre misteriosa,
ou seja, nunca poderemos verificar exatamente «como é feita».
Preservemos, a todo o custo, essa magia própria da música.
Por sua essência, ela é mais suscetível de a conter do que qualquer outra arte.
Claude Debussy
(“Monsieur Croche antidilettante”)
Éditions Gallimard (1971)

As relações entre Francisco de Lacerda (1869-1934), compositor português nascido nos Açores, e Claude Debussy (1862-1918), durante os primeiros anos do século XX, são conhecidas através da correspondência trocada entre os dois músicos, máxime através do estudo comparado das Danses du voile et sacrée, compostas respectivamente por Lacerda e Debussy quase ao mesmo tempo, assim como pelas obras orquestrais do compositor francês dirigidas pelo músico português.

Em 1904, uma peça de Francisco de Lacerda foi premiada no concurso organizado pela Revue Musicale. Esse periódico propunha para o concurso “uma dança para piano com cinco tempos, tendo uma dimensão de 4 páginas do nosso suplemento. Prêmio: 500 francos. Presidente da Comissão: Monsieur Claude Debussy”. O comentário, publicado no mesmo número da Revue, foi bem elogioso a Lacerda, que, sob o pseudônimo de “Simplicissimus”, enviou  a peça Danse du voile, destinada a fazer parte de uma suíte de Danses Sacrées.

La Revue Musicale de 15 de Março de 1904 publica: “Essa composição foi imediatamente classificada em primeiro lugar por méritos que os leitores da Revue estarão brevemente a apreciar. Primeiramente, a ideia é nitidamente em cinco tempos, os motivos são expressivos e plásticos, as proposições justas, a escritura sóbria e não tem o odor da escola. Segundo M. Debussy, ‘trata-se de uma música aérea’. Consequentemente, o prêmio é atribuído a essa composição. Autor: F. de Lacerda”.

Após o concurso, Debussy iniciou a composição das Danses pour harpe chromatique ou piano et orquestre à cordes e pede emprestado a Lacerda o tema e o título da Danse sacrée do músico açoriano. Segundo o regente suiço Ernest Ansermet (1883-1969), Debussy teria declarado a Lacerda: “Amo de tal maneira sua peça que gostaria de aproveitar alguma coisa, você me permite?”. É bem possível que os dois compositores tivessem conversações sobre a harpe chromatique, o que poderia ter influenciado o título dado por Debussy à sua obra. Necessário frisar que, à época, Lacerda foi encarregado por M.G.Lyon  de um curso sobre harpa cromática. Quanto ao apoio de Debussy a Lacerda, não apenas o recomendou a André Carré (1852-1938), figura relevante na dramaturgia francesa e diretor de teatro, enviando-lhe uma carta: “um músico sólido e experiente que pode prestar reais serviços em tudo que concerne aos corais e à orquestra, etc.”. Debussy confia-lhe igualmente a revisão da partitura de Fêtes de Polymnie, de Jean-Philippe Rameau, para as edições Durand. Graças ao apoio de Debussy, de Vincent d’Indy e da família de Ernest Ansermet, Francisco de Lacerda obtém o lugar de regente da orquestra do Kursaal de Montreux em 1908. Frise-se que apenas nas Danses sacrées Debussy teria recebido certa influência de Lacerda.

Como regente, o músico português foi responsável por inúmeras primeiras audições de compositores contemporâneos consagrados. Sob sua batuta, tanto no Kursal, como em Nantes, Marselha e Lisboa, os mais consagrados solistas do período se apresentaram.  A produção composicional de Francisco de Lacerda foi pequena, mas de interesse. Deve-se ao musicólogo açoriano José Manuel Bettencourt da Câmara o levantamento biográfico e a edição das suas composições para piano e canto e piano, as Trovas.

Distingue-se nas composições de Lacerda, assim como ocorre entre tantos compositores, traços e influências de alguns dos seus contemporâneos, mais particularmente de Debussy. Se em 1904 Debussy pediu a Lacerda o tema da premiada Danse du voile, admirando o compositor português, foi contudo a partir das peças que comporiam as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste (1902-1922) que lembranças do ilustre amigo francês penetram em algumas dessas peças tão bem construídas. Vestígios de Maurice Ravel (1875-1937) e Eric Satie, entre outros, também podem ser sentidos nas Trente-six histoires… De Satie, sua peça La Pieuvre de Sports et divertissements (1911) não teria influenciado Lacerda ao compor também La Pieuvre, sendo que na primeira o polvo come um caranguejo, na segunda, um pequeno peixe?

Todavia, seria Debussy que estaria presente não apenas no modus faciendi em breves segmentos, como também na idealização de muitas das histórias. A admiração de Lacerda por Debussy foi construída progressivamente. A acolhida calorosa da ópera de Debussy, Pélleas et Mélisande (1902), o episódio já mencionado das Danses e a grande notoriedade do compositor francês certamente foram motivos essenciais para que essa relação musical e amistosa agradasse a Lacerda. Dentre as obras do compositor português, verifica-se que, preferencialmente nas Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste, o universo lúdico dos dois músicos tem maior afinidade. Ao visitar o Museu de Angra do Heroísmo, nos Açores (1992), verifiquei que, entre inúmeras obras de Debussy, havia duas representativas desse universo voltado à infância, Childrens’s Corner e La Boîte à Joujoux. Anotações de Lacerda sobre essas partituras atestam o seu debruçar minucioso. Algumas dessas anotações fazem supor gestos de ballet.

opera omnia de Francisco de Lacerda não é extensa e o fato das Trente et six histoires… serem tardias e longamente gestadas (1902-1922) demonstra a filtração dessa admiração ao longo dos anos. Na concepção das peças para piano, Lacerda foi influenciado pela escrita orquestral. Escreveria antes da concepção das Trente-six histoires, “Não posso conceber nada sem ouvir a orquestra”, o que faria entender a proximidade com alguns processos caros a Debussy, como o timbre seletivo, a flutuação dos andamentos e a atração pelas baixas intensidades tão presente nas criações do compositor francês.

Apesar de não serem transcendentais sob o plano técnico-pianístico, tanto Children’s Corner e La Boîte à Joujoux de Debussy, como as Trente-six histoires… não são destinadas aos dedos de um aprendiz. E a ratificar comparações, mencione-se a importância dos movimentos lentos e moderados, que potencializam as possibilidades no domínio das sonoridades.

A comparação entre os processos utilizados por Lacerda nas suas 36 miniaturas e a linguagem de Debussy, mormente sob a égide do lúdico, não apenas atesta o apreço pelo compositor francês, mas também demonstra se estar diante de uma correspondência sonora permanente nas criações de Lacerda, resultando em uma homenagem tipificada. Sem contar as inúmeras associações que podem ser deduzidas entre as duas criações de Debussy e as Trente-six histoires…, em uma delas, Mon Chien et la Lune (nº 14), a segunda epígrafe é transparente e redigida em francês:

Venha cá! Cale-se! O que vê?
Sombras? Chopin? Debussy? Venha cá.
Cale-se. São nossos amigos.

Dos animais, pássaros, peixes e animais domésticos presentes nas Trente-six histoires…, exceção ao Anacléto le simple, tem-se Le petit d’élephant pleure, tão próximo de Jumbo’s Lullaby de Chidren’s Corne.

No artigo em pauta apresento 31 exemplos, a evidenciar a afinidade de algumas das Trente-six histoires… com várias obras para piano de Debussy. No entanto, Lacerda, adepto da miniatura, consegue nessa coletânea realizar uma obra-prima, mesmo a se considerar ter sido Debussy um modelo que ele cultua, o que poderia minimizar a originalidade do compositor português. Todavia, a afinidade se dá, máxime no culto ao universo infantil em determinadas obras e na atração pelo timbre. Não se trata de imitar procedimentos de Debussy, mas de apreender, nas  suas criações, elementos etéreos do timbre, do resultado sonoro e de algumas construções composicionais que certamente o impactaram. Ter estudado pormenorizadamente determinadas criações de Debussy serviu igualmente como estímulo para a sua coletânea tão expressiva.

A miniatura, para Lacerda, foi a forma mais apropriada às suas intenções. Lembremos que o compositor açoriano foi igualmente regente, e dos melhores. Sob outra égide, a sua “falta de organização” bem conhecida poderia ter sido uma das razões de não ter se dedicado mais à composição. Distanciando-se das grandes formas, encontrou na peça de curto fôlego o veículo musical inexorável.

Graças ao seu senso de economia, Lacerda é extremamente conciso em suas composições e evita o desenvolvimento. Não obstante, tem o mérito de reunir todas as suas ideias em miniaturas comportando apenas alguns compassos, sem que se pense em esboço ou tampouco trabalho inacabado.

Nas Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste Lacerda realiza uma síntese, a sua, na qual Debussy é essencial, assim como, numa apreciação outra, Moussorgsky foi importante nas criações voltadas ao universo infantil do próprio Debussy. Legados que se dimensionam.

Em 1999 gravei, para o selo belga De Rode Pomp, as Trente-six histoires…, a Danse du voile ― peça da qual Debussy pediu emprestado o tema a Lacerda para a primeira das duas Danses sacrée et profane, constantes no CD, como também outras pequenas composições de Lacerda.

Clique para ouvir, de Francisco de Lacerda, as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste ― divididas em três blocos no aplicativo ― na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=CMpK76ujq5c&t=18s

https://www.youtube.com/watch?v=YYB1t26SM8Q&t=1s

https://www.youtube.com/watch?v=Wvt_UyqsMK8

Based on a piano piece by Francisco de Lacerda, Danse du voile, which won first prize in a competition presided over by Claude Debussy, a friendship was established and musical consequences ensued.

 

Originalidade e revisita a procedimentos anteriores

Chamam-me revolucionário, mas não inventei nada.
No máximo, apresentei coisas antigas de uma nova maneira.
Não há nada de novo na arte.
Os meus encadeamentos musicais, entendidos tão diversamente, não são invenções.
Todos, eu já os ouvira. Não nas igrejas. Em mim mesmo.
A música está em toda parte.
Não está reclusa nos livros. Está nos bosques, nos rios e no ar.

Claude Debussy (1862-1918)
(“Monsieur Croche” et autres écrits. Gallimard, 1987))

O terceiro artigo publicado nos Cahiers Debussy (nº14, 1990) versou sobre Le langage pianistique des deux dernières Sonates. O ano de 1915 foi crucial para Debussy. Já a sofrer de um câncer que o levaria à morte em 1918, compõe algumas das suas mais importantes obras: En Blanc et Noir para dois pianos, a Sonata para violoncelo e piano e, creio eu, a sua mais importante composição para piano, os 12 Études. Não sem razões, Debussy escreve ao seu editor Jacques Durand após findar os Estudos: “escrevi como um louco ou como aquele que deve morrer no dia seguinte”, frase que inseri no post anterior. Essas três composições foram criadas entre junho e Outubro de 1915, sendo que a Sonata para violino e piano foi composta durante um período mais longo, Outubro de 1916 a Abril de 1917. No que concerne às duas Sonatas mencionadas, deveriam integrar o projeto de Six Sonates pour divers instruments, que só não chegaram a termo mercê do progressivo e irremediável mal que o acometeu. Intermediando essas duas, Debussy compõe a Sonata em trio para flauta, viola e harpa, no final de 1915.

É comum que autores em todas as artes relembrem criações anteriores quando de obras posteriores, máxime no caso de proximidade temporal menor. Sob outro aspecto, da juventude da idade madura à plena maturidade, no âmbito das artes o compositor pode, ao longo da existência, sentir diferenças no tratamento da sua escrita, o que o leva a se distanciar diametralmente de suas criações do passado. No blog sobre Debussy e Scriabine, menciono as transformações plenas na escrita do compositor russo durante toda a sua trajetória (18/10/2025).

A presença precisa em 1915 de títulos abstratos, retomando, sob outra égide, a praticada de 1880 a 1901, estaria a revelar prioritariamente, da parte de Debussy, sua preocupação formal. No longo período que se estende até 1915, a técnica pianística estaria mais voltada à resultante sonora, parte dela consequência da atração do compositor pela poesia, mormente nos andamentos mais moderados. São inúmeros os “achados” sonoros decorrentes da incessante busca da “beauté du son”. No que concerne aos andamentos rápidos, os esquemas são menos variados, testemunhando provavelmente, por parte de Debussy, a necessidade de aplicar procedimentos que lhe eram familiares e que se adaptavam bem às suas mãos de pianista. Debussy não tinha uma técnica pianística transcendental, evitando situações que pudessem ser embaraçosas quando das raras apresentações públicas ou privadas.

Nas duas obras capitais para piano solo e dois pianos, os 12 Études e En Blanc et Noir, respectivamente, Debussy busca em princípio utilizar modelos da técnica pianística nos seus limites possíveis. Não escreveria ao seu editor Jacques Durand, a respeito dos Études: “Esteja certo de que meus dedos param às vezes diante de certas passagens. Sinto necessidade de retomar a respiração como após uma ascensão… na verdade, esta música paira sobre os cimos da execução! Haverá belos recordes a alcançar” (28/08/1915).

Da Sonata para violoncelo e piano, que precede em pouco mais de um mês o início da criação dos Études, Debussy “extrai” alguns modelos técnico-pianísticos para certos Études: Pour les huit doigts, Pour le agréments, Pour les notes répétées e Pour les sonoritées oppósées. Observa-se que a linguagem pianística idiomática de Debussy contém fórmulas e modelos que, conservando uma estrutura bem próxima, apresentam, contudo, ligeiras modificações em função da textura musical em permanente renovação, máxime nos andamentos mais lentos, quando são explorados modelos como organização dos acordes, planos sonoros contrastantes, justaposição de ritmos diferenciados. Não obstante, Debussy escreve sobre o manuscrito da Sonata para violoncelo e piano: “Que o pianista não se esqueça jamais que não deve jamais lutar contra o violoncelo, mas o acompanhar” (Léon Vallas, Claude Debussy et son temps, 1958).

Clique para ouvir, de Debussy, a Sonata para violoncelo e piano, na gravação histórica (1961) do violoncelista Mstislav Rostropovich (1927-2007), tendo ao piano o compositor e pianista Benjamin Britten (1913-1976):

https://www.youtube.com/watch?v=UC1H73551gE

No artigo publicado nos Cahiers Debussy (nº15) apresento 31 exemplos musicais, salientando a presença do passado tanto remoto como recente, assim como a revisita ao lúdico expresso em criações anteriores, máxime após o nascimento da filha Claude-Emma, a sua Chouchou.

Em La Boîte à Joujoux, parte do tema do post anterior, observa-se o nítido sentido lúdico instaurado em 1913 nesse verdadeiro catálogo do gênero. Detectam-se, nos dois movimentos médios das Sonatas, “lembranças” de La Boîte à Joujoux. Alguns elementos das Sonatas lembram esquemas do Ballet pour enfants, outros são, dir-se-ia, transplantados. Um dos interesses do artigo em pauta residiu na integração do timbre do piano aos do violoncelo e do violino, permitindo até uma avaliação nos aspectos voltados à interpretação e à análise, no desiderato de melhor apreender o timbre no conjunto das obras para piano de Debussy. Tem interesse um comentário de um dos intérpretes da Sonata para violoncelo e piano, Louis Rosoor, que fez inserir nos seus programas comentário de Debussy sobre o segundo andamento da Sonata, a Sérénade: “Pierrot acorda com um sobressalto, sacode o seu torpor. Ele corre para fazer uma serenata à sua amada, que, apesar das suas súplicas, permanece insensível. Ele consola-se do seu insucesso cantando uma canção de liberdade”. Saliente-se que Pierrot e a boneca são personagens essenciais de La Boîte à Joujoux. Em carta ao seu editor Jacques Durand, de 17/10/1916, Debussy protestou com veemência desse abuso de confiança.  Na Sérénade, há “vestígios” de La Danse de Puck (Préludes, 1º livro) e Hommage à S.Pickwick Esq. P.P.M.P.C. (Prèludes, 2º livro). Verifica-se que é nos movimentos intermediários das duas Sonatas que mais acentuadamente se realiza a impregnação do mundo infantil.

Clique para ouvir, de Debussy, a Sonata para violino e piano, na gravação histórica (1940) do violinista Joseph Szigeti (1892-1973) e do compositor e pianista Béla Bartok (1881-1945):

https://www.youtube.com/watch?v=6_wM5R6ZCBU

Numa época dolorosa da existência, física e moralmente, as reminiscências de Debussy testemunham de maneira significativa a sua vontade desse retorno ao universo lúdico através das ideias encontradas no seu código pianístico. Escreve: “Se devo desaparecer proximamente, quero ao menos tentar fazer o meu dever”. E logo após: “Confesso que perco dia após dia a minha paciência colocada um pouco à prova; é de se perguntar se esta doença não é incurável” (03 e 08/06/1916). Essas confissões não revelariam a consciência da morte próxima e a necessidade de regressar aos valores do passado? Os últimos anos de produção não teriam se caracterizado por uma releitura autocrítica de procedimentos nos quais foi pioneiro? O caráter lúdico, exposto em uma estrutura formal quase clássica, não estaria obedecendo à tradição observada em tantos compositores no sentido de uma re-visitação aos modelos tradicionais? Jean Chantavoine e Jean Gaudefroy-Demombynes observam que “a maioria dos grandes compositores românticos evoluíram, como Goethe, do romantismo ao classicismo ou a uma espécie de neoclassicismo do romantismo”. (“Le Romantisme dans la musique européenne”, 1955). Logicamente, sem ser um romântico, Debussy não teria realizado esse retorno aos modelos mais tradicionais? Esse regresso às formas que frequentou, o estabelecimento de um vasto catálogo de expressões musicais mais abstratas e mais frequentemente utilizadas, ou mesmo o recurso ao seu próprio catálogo idiomático da técnica pianística não testemunham em Debussy uma derradeira concentração? De acréscimo, o piano não foi sempre, antes de qualquer outro, o seu instrumento íntimo, como o foi, como exemplo, para Chopin, a quem ele dedica sua obra maior e testamentária para o instrumento, os 12 Études?

Seria possível entender que foi entre 1915 e 1917, com En Blanc et Noir, a Sonata para violoncelo e piano, os Estudos e a Sonata para violino e piano, que Debussy melhor elaborou o seu código pianístico, mercê igualmente de uma percepção outra do timbre instrumental.

In 1915, Debussy, already suffering from the illness that would lead to his death in 1918, composed some of his essential works: En Blanc et Noir for two pianos, Sonata for Cello and Piano, 12 Études, and, between 1916 and 1917, Sonata for Violin and Piano. He drew on a piano idiom that he had used throughout his career, particularly models taken from some of his Préludes and La Boîte à Joujoux.