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Patrimônio Mundial da Humanidade

Toda a grande obra supõe um sacrifício;
e no próprio sacrifício se encontra a mais bela e a mais valiosa das recompensas.
Agostinho da Silva
(“Considerações”)

Neste segundo post a respeito do magnífico livro “Cinco Joias de Coimbra”, os capítulos finais se detêm sobre três outras joias que integram o ambiente singular de uma cidade que apresenta a Universidade de Coimbra como símbolo maior.

“O Órgão da Capela de São Miguel”, “O Jardim Botânico da Universidade de Coimbra – A Casa Verde da Univers(c)idade”, “Museu Nacional de Machado de Castro – Da herança patrimonial aos desafios do futuro” completam a pormenorizada abordagem das joias conimbricenses em seus textos redigidos por respeitados especialistas: Paulo Bernardino, Ana Cristina Tavares e Maria de Lurdes Craveiro, respectivamente. Preciosa documentação iconográfica ilustra os ensaios.

Paulo Bernardino, organista titular da Capela de São Miguel, Paço das Escolas da Universidade de Coimbra, Especialista em Música Sacra e Doutorado em Direção (Coral e de Orquestra), assina sucinto e rico texto sobre o singular órgão da Capela de São Miguel da UC.

Uma primeira referência em Portugal sobre o instrumento órgão data de 1453. Uma das características do denominado órgão ibérico era a presença de um só teclado, apesar de não muitas outras diferenças em relação aos órgãos de outros centros europeus. Paulo Bernardino pormenoriza, com arguto conhecimento, as características evolutivas do órgão. Chama a atenção um dado relevante expresso por Bernardino: “Um dos desenvolvimentos mais significativos e idiossincráticos do órgão ibérico, datado da segunda metade do século XVII, consistiu na introdução de registros de palheta em tubos colocados horizontalmente na fachada do órgão, na posição dita de chamada”.

Bernardino insere conteúdo histórico de interesse: “A subida ao trono de D.João V, em 1706, correspondeu a uma profunda alteração na história da música portuguesa. No âmbito da sua ação política, este monarca impôs a importação dos modelos litúrgicos e musicais de Roma. Tal não deixou de ter consequências na própria organaria, levando a uma reaproximação da organaria portuguesa aos modelos musicais italianos, sem, contudo, perder o seu caráter”. A seguir, elenca os materiais constitutivos do magnífico órgão da Universidade de Coimbra.

Logo após, Paulo Bernardino tece comentário breve sobre a escolha do repertório adequado ao instrumento, mas a possibilitar outras opções. Entusiasta, almeja um destaque maior para o magnífico órgão da Capela de São Miguel e observa: “Na verdade, apesar da conjugação de muitas vontades e iniciativas – tanto internas como externas à universidade – o Órgão da Capela da Universidade, apesar de um ex libris da organaria ibérica a nível mundial, permanece um desconhecido para a cidade”. O Professor João Gouveia Monteiro, no prefácio das “Cinco Joias de Coimbra”, comenta: “É muito sedutora a hipóteses avançada, em 2004, pelo saudoso Doutor José Maria Pedrosa Cardoso (docente da Universidade de Coimbra), que sugere que pode muito bem ter sido Carlos Seixas (1704-1742) a estrear em (1738?) o ‘colossal instrumento’ na provável cerimônia pública de inauguração da preciosidade à guarda do arcanjo São Miguel”.

Clique para ouvir, de J.S.Bach, Prelúdio e Fuga em Sol Maior do 2º volume do Cravo bem Temperado, na interpretação de Paulo Bernardino, frente ao órgão da Capela de São Miguel da UC:

Prelúdio e Fuga em Sol M – 2.º Vol. do Cravo Bem Temperado – J. S. Bach (youtube.com)

Ana Cristina Tavares assina a contribuição “O Jardim Botânico da Universidade de Coimbra – A Casa Verde da Univers(c)idade”. Entre outras titulações, a Professora é Doutora em Biologias (Fisiologia das plantas) pelo Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. Foi Diretora-Adjunta do Jardim Botânico de Coimbra (2019-2021).

As palavras do ilustre prefaciador, Professor João Gouveia Monteiro, servem de peristilo ao ensaio de Ana Cristina Tavares: “Numa palavra, é um lugar de sonho, situado no coração da Alta coimbrã e com nada menos de treze hectares de área, dos quais nove correspondem ao arboreto da mata e os restantes aos socalcos do jardim clássico”. Lá estive, quanta verdade nas palavras de Gouveia Monteiro!

A autora define a missão do JBUC: “Cumprindo o objetivo da sua fundação no séc. XVIII, o de proporcionar aos alunos da disciplina de História Natural o conhecimento prático e direto, em contexto natural, das plantas aromáticas e medicinais (Henriques 1876), o JBUC mantém a preocupação da interpretação do espaço e a ligação à docência e à investigação in situ”.

Ana Cristina Tavares narra a rica história da JBUC e aprende-se a presença de figuras decisivas no transcorrer. Assinatura do Marquês de Pombal (1699-1782) nos Estatutos da Universidade, a resultar no consequente “Horto Botânico” aos 28 de Agosto de 1772;  a nomeação do primeiro diretor, o notável naturalista italiano Domenico Vandelli (1735-1816), no mesmo ano. O pleno didatismo da Autora faz-nos conhecer as personalidades que marcaram a história da JBUC, que há pouco comemorou os 250 anos, as muitas coleções de espécies de árvores e plantas – só nas estufas tem-se 1500 espécies diferentes!

Escreve Ana Cristina Tavares sobre a riqueza que se descortina ao se visitar o Jardim Botânico: “Ao percorrer o JBUC sentimos um ambiente marcante e diferenciado, quer pelas duas áreas distintas, o jardim clássico e o arboreto, quer pela variedade das coleções, algumas nativas e a grande maioria delas exóticas, fruto do propósito da sua fundação. As plantas, cultivadas no exterior e/ou em viveiros e estufas, muitas delas caducifólias (isto é, de folha caduca) e por isso nem sempre visíveis no seu máximo esplendor, conferem pluralidade ao Jardim, sempre rico e diferente em cada mês”.

De alto significado o subcapítulo “A Educação no Jardim: veículo de interpretação e de conhecimento”, no qual a rica diversidade do JBUC enseja um debruçamento pleno nos programas educacionais afins.

A leitura do capítulo em pauta leva o leitor à certeza de que, sem uma relação amorosa com a área escolhida, lacunas se apresentam. Ana Cristina Tavares possui esse dom imanente, o de afeto com o todo do JBUC.

O último capítulo, “Museu Nacional de Machado de Castro – Da herança patrimonial aos desafios do futuro”, tem a autoria de Maria de Lurdes Craveiro, Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Investigadora de Centros de Estudos da UC e Diretora do Museu Nacional de Machado de Castro.

Acresça-se que desde 2019 o MNMC integra a lista do patrimônio de Coimbra classificado pela UNESCO.

Preliminarmente, o estudo da Professora Maria de Lurdes Craveiro poderia bem integrar uma Aula Magna, mercê do imenso levantamento histórico e da inserção do acervo do MNMC. Mencionar o introito do texto abrangente se faz necessário: “Fundado em 1911 e tendo aberto ao público em 1913, o MNMC herdou as estruturas edificadas do Paço Episcopal e do antigo criptopórtico romano de Aeminium;  foi sobre elas que se viria a implantar todo o seu percurso nobilitado, que se compreende, em simultâneo, pela grandeza do assentamento, pelo diálogo constante com o território de poder envolvente e pela natureza específica das suas coleções”

Nos significativos subcapítulos, a Autora remonta ao século I e “Mais do que uma História Milenar” conduz o leitor “à construção do fórum romano em que a cidade de Aeminium assentou a sua autoridade religiosa, social, econômica, política e administrativa”.

A seguir, Maria de Lurdes Craveiro pormenoriza cada etapa histórica do espaço, mencionando resultados e a série de personagens, tantos notáveis, até chegar ao “O século XX e a musealização do espaço”, quando da fundação do MNMC. Reparações profundas foram feitas, máxime a do arquiteto Gonçalo Byrne (1999), mercê de deterioramentos acentuados. A importância de MNMC atraiu peças importantes provenientes de outros edifícios históricos que foram incorporadas ao seu precioso acervo, a resultar na honrosa classificação em 2019, doravante Patrimônio Mundial.

Ao dedicar um subcapítulo aos “Diretores”, a Autora rende justo tributo às figuras que conduziram o MNMC ao pleno reconhecimento internacional.

Um último e precioso subcapítulo se estende às “Coleções”. Impõem-se pela grandeza e qualidade artística. Escultura em barro cozido, escultura em madeira, ourivesaria, pintura, desenho, cerâmica e têxteis. Determinadas obras-primas do MNMC, fotografadas por Maria de Lurdes Craveiro, dão uma ideia da grandiosidade do acervo.

Demonstrando o essencial para que uma produtiva ação diretiva realize intentos, a Autora insere nas conclusões: “Cumprindo a sua vocação centenária, o que o Museu Nacional de Machado de Castro suscita é, assim, mais ciência, mais investigação, mais meios técnicos e humanos, mais articulação comunitária e institucional (nacional e internacional), mais na construção dos afetos exteriores”.

“Cinco Joias de Coimbra” não é apenas um livro grande, mas um grande livro. Impecável coordenação do Professor Catedrático João Gouveia Monteiro e da investigadora Maria Leonor Cruz Pontes, tendo a preciosa colaboração da Associação RUAS.

Aos 3 de Novembro de 2012 apresentei um recital no Museu de Machado de Castro com obras de Francisco de Lacerda (1869-1934) e de dois relevantes compositores que criaram obras em homenagem ao notável músico açoriano, François Servenière (1961-) e Eurico Carrapatoso (1962-), por ocasião do meu primeiro livro publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, “Impressões sobre a Música Portuguesa”.

Clique para ouvir, do extraordinário compositor conimbricense Carlos Seixas, Sonata nº68 em lá menor, na interpretação de J.E.M.

Carlos Seixas – Sonata nº 68 in A minor – José Eduardo Martins – piano (youtube.com)

Three other chapters conclude the substantial book “Five Jewels of Coimbra”. Signed by renowned experts, it is a must-read for those who wish to learn more about the riches that emanate from the University of Coimbra, founded in 1290.

Joaquim Vieira e o desvelamento parcial de Lopes-Graça através de entrevistas

Uma das fatalidades da música portuguesa foi nunca ter ela encontrado,
nos três ou quatro momentos históricos em que a nossa cultura estremeceu na clara ou obscura consciência da sua missão nacional,
a personalidade ou as personalidades que,
no seu domínio próprio, encarnassem os ideais ou tendências da hora.
Fernando Lopes-Graça (1906-1994)
(“A Música Portuguesa e os seus Problemas” II)

Se pudesse, passava a vida a ouvir música.
Eduardo Lourenço (1923-2020)
(“Tempo da Música – Música do Tempo”)

A montagem de um documentário sobre figura ilustre, que permanece através de obra legada à posteridade, requer do organizador sensível acuidade na escolha dos estudiosos do homenageado. O trabalho investigativo demanda tempo, pois necessário se faz colher essencialidades dos depoimentos, inserindo-as no roteiro, o que implica outro atributo do organizador, saber selecioná-las apropriadamente.

Consensualmente, Fernando Lopes-Graça é o nome maior da criação composicional em Portugal no século XX, quiçá de sua história. Atravessando basicamente todo o século, o músico nascido em Tomar não apenas foi o grande compositor, como regente coral e pianista, legando uma vasta obra literária, na qual aos temas voltados à música se somam a tantos outros, estes, críticos em relação à contemporaneidade portuguesa em seus vários matizes. Como professor, orientou alguns dos mais proeminentes músicos de Portugal.

“Documentário Música de Graça” tem abrangência, e os depoentes, intérpretes – mormente pianistas -, musicólogos e compositores se pronunciaram em breves intervenções intercaladas, na captação precisa de determinadas características de Lopes-Graça.

Joaquim Vieira soube apreender de cada entrevistado elementos para a montagem do puzzle. Assim sendo: atuação do mestre Lopes-Graça, processos de criação, importância do legado, a abranger uma gama extensa de gêneros musicais, desde aquele dedicado aos miúdos em seus inícios pianísticos às canções corais a partir, tantas delas, do cancioneiro popular, e às obras camerísticas e orquestrais, sendo que inúmeras rigorosamente complexas na concepção e na apreensão por parte daqueles que nelas se debruçam. Sua obra para piano é extensa, expressiva, e uma das mais importantes do século XX. A amplitude de sua opera omnia, sempre rigorosa, certamente insere Lopes-Graça entre os grandes compositores do período. Em uma das várias intervenções, o pianista António Rosado, que gravou na excelência obras fundamentais de Lopes-Graça, bem evidencia a complexidade de muitas das criações, “um mundo difícil de se entrar”.

Estar ligado ao Partido Comunista rendeu-lhe inúmeros dissabores durante o prolongado Estado Novo, que se prolongou de 1933 a 1974. As múltiplas dificuldades enfrentadas corroboraram a criação de composições que permanecerão, mercê de uma força de expressão rara no amplo universo das emoções. O musicólogo e sociólogo da música, Mário Vieira de Carvalho, autor de livros fundamentais sobre Lopes-Graça, em uma de suas intervenções comenta que o compositor “… não coloca a música a serviço da política no sentido simplista do termo. Como ele próprio dizia: ‘a música não pode ser imolada em qualquer doutrinação estética ou ideológica’. Ele faz uma distinção entre música, ou seja, arte no sentido lato, e ideologia”. Corrobora a posição de Vieira de Carvalho a colocação do maestro e compositor Álvaro Cassuto, seu ex-aluno, ao testemunhar que, durante o convívio mestre-aluno, jamais Lopes-Graça falou sobre ideologia, mas apenas sobre música. O maestro António Sousa, autor de obras precisas sobre o seu conterrâneo tomarense, mormente no período em que viveu em sua terra natal, comenta que, após o 25 de Abril de 1974, retorna Lopes-Graça à militância do PCP. A preceder a fala de Sousa, ex-diretor do Canto Firme, escola referencial de Tomar, Joaquim Vieira apresenta imagens de locais da histórica cidade, tão caras ao seu filho maior.

O compositor e regente Sérgio Azevedo (1968-), ex-aluno de Graça, destaca a importância do mestre de Tomar não só para a Música, mas para as Artes e a Cultura em geral. Miguel Henriques, igualmente pertencente a plêiade de excelentes pianistas portugueses, destaca processos estruturais das criações, que se estendem das obras mais singelas às mais complexas de Lopes-Graça, posição corroborada pelo pianista francês Bruno Belthoise, intérprete de vários compositores portugueses. O pianista e regente João Paulo Santos salienta a importância das canções de Lopes-Graça. Por sua vez, a pianista Joana Gama, que recentemente gravou tão bem as “Viagens na Minha Terra” – coletânea a conter 19 peças -, ratifica a permanente presença da voz oculta dos campesinos em alguns dos quadros das “Viagens…”. “Em Monsanto da Beira, apanhando a margaça”, Joana interpreta a peça e, engenhosamente durante a execução, Joaquim Vieira insere em surdina o som dessas camponesas cantando “A Margaça” sob o ritmo dos adufes. Resultou. Foram centenas as criações de Graça para coral, criações apresentadas sob sua regência pelo coro da Academia dos Amadores de Música.

O documentário “Música de Graça” exibe excertos de vídeo, a evidenciar momentos do incansável labor do notável etnólogo corso Michel Giacometti (1929-1990), que durante décadas realizou em Portugal relevante recolha de material musical, gravando e filmando cantares do povo em diversas situações do cotidiano, captando, através da música e do diálogo, a vida e o duro labor dos camponeses em suas aldeias. Nesse vídeo, a presença de Lopes-Graça, atento à narrativa e ao som de um flautista campesino, ratifica a sua admiração por esses cantos, tantos deles harmonizados pelo mestre e, nessa versão, apresentados pelo coro da Academia de Amadores de Música, sempre sob sua regência, nas suas peregrinações pelo país.

Tantos outros preciosos depoimentos enriquecem o importantíssimo documentário organizado por Joaquim Vieira e produzido pela Nanook para a Rádio Televisão Portuguesa (RTP). Vale lembrar que algumas ilustres figuras que tiveram ligação com a vida-obra do compositor não estão presentes. Nos mais diversos documentários produzidos alhures isso ocorre. Antolha-se-me que essencialidades do intenso labor, configuram Lopes-Graça como uma das mais completas personalidades da Cultura em Portugal no século XX, pois é notável a diversidade que lhe era qualidade natural.

Não poucas vezes neste espaço tenho salientado a importância extraordinária da música portuguesa, que mereceria uma divulgação ampla no planeta. Para tanto, partituras deveriam ser distribuídas pelos governos de Portugal às entidades que se espalham pelo mundo.  A limitada atenção à Alta Cultura não é sentida apenas num só país. Sem a divulgação, sem a presença de ótimos intérpretes portugueses tocando obras referenciais fora das fronteiras, o obscurantismo se perpetuará. As qualidades insofismáveis de Carlos Seixas (1704-1742) e de Fernando Lopes-Graça, apenas como alguns exemplos da criação portuguesa, estariam a merecer o empenho dos detentores do poder. Se assim fosse, certamente suas obras entrariam em repertórios além-fronteiras. Em um colóquio em Lisboa afirmei que, se numa sala de concertos em Portugal fosse pronunciado o nome de Villa-Lobos, nosso mais ventilado compositor, uns poucos levantariam as mãos afirmando conhecê-lo. Em termos do Brasil, corre-se o risco de, ao ser mencionado o nome de Lopes-Graça, um silêncio sepulcral atestar o desconhecimento.

Tive o privilégio de participar de algumas entradas no documentário, máxime a falar sobre “Canto de Amor e de Morte” que, na opinião do saudoso compositor Jorge Peixinho (1940-1995), vem a ser “… obra mais consequente e coerente na relação entre os diversos níveis de organização que a música portuguesa, com toda a verossimilhança, terá alguma vez logrado”. Joaquim Vieira soube muito bem intercalá-las com sábios pronunciamentos sobre “Canto…” dos ilustres António Victorino de Almeida e Mário Vieira de Carvalho. Tive acesso ao único manuscrito autógrafo de “Canto de Amor e de Morte”, obra original para piano (1961), logo após obtendo duas versões realizadas por Lopes-Graça, para quarteto de cordas e piano e para orquestra. Em 2012, em edição conjunta Numérica, PortugalSom e dgARTES, foi lançado o duplo CD contendo “Canto de Amor…”, “Músicas Fúnebres”, “Música de piano para crianças” e “Cosmorame”, obras que gravei na Bélgica. Preparei a edição crítica do “Canto de Amor e de Morte” publicada pelo Movimento Patrimonial da Música Portuguesa (mpmp).

Que o relevante “Música de Graça” seja estímulo para outros documentários focalizando compositores incontestes que dignificam a criação musical em Portugal. Parabéns efusivos ao ilustre jornalista e escritor Joaquim Vieira pela organização de documento tão precioso para a arte musical.

Clique para assistir o documentário “Música de Graça”:

https://www.rtp.pt/play/palco/p12547/e735550/musica-de-graca

The documentary “Música de Graça” pays homage to the great Portuguese composer Fernando Lopes-Graça. The productor, Joaquim Vieira, an accomplished journalist and writer, selected musicians still active, some of them having known Lopes-Graça personally, who enrich the documentary addressing a variety of topics.

Um sensível e inusitado gesto de gratidão

Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

Manoel Bandeira
(“Pensão familiar”)

Figuras ilustres em inúmeras áreas tiveram especial afeto por gatos, cães e pássaros. Inúmeros textos e fotos corroboram o fato. Desde a era das fotografias, são incontáveis as imagens de músicos, pintores, literatos e poetas com seus animais de estimação.

Sob outra égide, o culto à fauna animal em sua extensão, domésticos ou não, encontra-se no Egito, na Antiga Grécia e em outras civilizações e ficou gravado na estatuária, nas pinturas em afresco, cerâmica e outros mais receptores. Cultuar esse zoomorfismo tinha sentido reverencial, máxime aos deuses, dando-lhes a forma necessária a cada destinação.

Meu dileto amigo, o competente editor Cláudio Giordano, tem brindado seus amigos há muito tempo com segmentos literários relevantes. Fê-lo recentemente ao tratar do ‘Grande Sertão Veredas’, de Guimarães Rosa. Poucas semanas atrás, Giordano enviou aos seus leitores a carta que o consagrado pintor, desenhista e poeta Paul Klee escreveu, já nos estertores da existência, a três de seus gatos, que foram fenecendo ao longo. Ela revela o quanto eles lhe foram importantes. Distingue-os, embrenhando-se nas manifestações comportamentais de cada um.

“Queridos Nuggi, Fritzy e Bimbo:

Chegado ao fim da minha vida, dirijo-lhes esta carta para lhes dar conta da importância que tiveram no meu atribulado percurso como pintor.

Creio que não teria chegado onde cheguei como artista do meu tempo sem o amor de vocês e a inspiração que nunca me regatearam.

Fiz questão de mantê-los presentes em tudo quanto fiz, desde as cartas aos poemas, passando, naturalmente, pelos quadros, em que tentei modestamente representá-los.

Vocês acompanharam-me nas horas de sofrimento e incerteza, de exílio e de privação, mas também naquelas que me deram a ilusão da felicidade. Primeiro o meu querido Nuggi, cinzento e meigo, ainda nos anos da juventude; depois, Fritzy, tigrado, brincalhão e matreiro, a que também chamei Fripouille, nos tempos mais intensos da criação pictórica e também do reconhecimento artístico pelo público e pela crítica; por fim, Bimbo, branco e discreto, já nos anos da doença e da decadência física, sempre dedicado, sempre presente, sempre terno e atento.

Agora que estou de partida, levo comigo a recordação do que vocês foram para mim e a convicção de que não teria sido o que fui, nem teria chegado onde cheguei, sem o seu amparo e dedicação. No meu íntimo, sei que voltaremos a encontrar-nos, porque não pode acabar no perecível mundo material e terreno um amor como o nosso.

Eternamente de vocês
Paul Klee”

A literatura e a iconografia destes últimos séculos são ricas no que tange a personalidades da Cultura com seus animais de estimação, muitos deles recebendo o afeto pleno dessas figuras exponenciais. A menção ínfima a essa dedicação se faz necessária:

Charles Baudelaire (1821-1867), em “Le chat”, insere no primeiro verso Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux; Colette (1873-1954) reverencia os gatos durante toda a existência. Estes adquirem voz. O afeto que a escritora lhes dedicará, a tantos que percorreram sua vida, está presente ao longo de sua obra literária; T.S.Eliot (1888-1965) dedica um livro para crianças com poemas sobre gatos, “Old Possum’s Book of Practical Cats”; Cecília Meireles (1901-1964), no poema “Os Gatos da Tinturaria”, evidencia com maestria a natural nonchalance desses felinos domésticos; Jorge Luis Borges (1899-1986), em “A um Gato”, expõe em versos fulcrais a relação amorosa com seu gato e o último verso evidencia primazia do felino: Eres el dueño de un ámbito cerrado como un sueño.

O compositor português, nascido nos Açores, Francisco de Lacerda (1869-1934), entre as “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste”, percorre extensa fauna e insere “Mon chien et la lune”, acompanhada de sugestiva epígrafe: Viens ici! / Tais-toi! / Que vois-tu? / Des ombres? / Chopin? / Debussy? / Viens ici. / Tais-toi. / Ce sont des Amis à nous. A menção a Debussy faz-me lembrar do afeto de Debussy aos seus cães.

Giacomo Rossini (1792-1868) compôs o divertido “Duetto buffo di due gatti”. Igor Stravinsky (1882-1971) e Dmitri Shostakovich (1906-1975) gostavam de cães e gatos.

O afeto do homem aos animais que com ele convivem, cães e gatos, disseminou-se e ganhou a larga preferência das populações, realidade visível, mormente nas vias e parques das grandes cidades em que são vistos em profusão cães das mais diversas raças, puras ou frutos da miscigenação.

Conheci exemplo de pleno afeto por parte do saudoso amigo e notável compositor Gilberto Mendes (1922-2016). Nos últimos anos de uma vida plena de realizações, Gilberto e sua esposa Eliane tiveram a companhia de Mel, um cão dócil. Aqueles que o visitavam puderam compreender esses laços inefáveis. Viúva, Eliane tem hoje a companhia da sucessora da Mel, Pietra.

Não obstante, lembraria o afeto do compositor russo Mikhail Glinka (1804-1857) pelos pássaros, chegando a ter 16 gaiolas em sua morada. Olivier Messian (1908-1992) os venerava, mas na natureza, e o seu “Catalogue des oiseaux” é obra capital.

Em blog bem anterior escrevi sobre um coleirinha ou papa-capim que viveu em nossa morada 33 anos. Durante minhas teses acadêmicas, em que a madrugada era fiel companheira, o coleirinha entoava o seu delicado canto e estimulava-me a continuar (vide blog: Adeus, coleirinha”, 10/05/2008). Sabedor de sua morte, um amigo me deu dois outros, que nos encantam com os seus chilreios delicados.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), “Le rappel des oiseaux”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=IAdsA8kvcxI&t=8s

A carta de Paul Klee é ato de gratidão. Documento possivelmente único, pois pormenorizado e desprovido de quaisquer artificialismos, a revelar, sim, o mais sensível afeto.

The remarkable painter and cat lover Paul Klee’s letter to the three cats that accompanied him throughout his life, naming each of them, is full testimony to the most sensitive affection. They are portrayed in many of his paintings, photographs and letters.