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François Servenière e a perenidade do sagrado

Para mim, a criação musical não exige somente talento, mas também,
e antes de tudo, caráter, personalidade,
a certeza de que temos um caminho a seguir,
e que nada conseguirá nos tirar do caminho.

Serge Nigg (1924-2008).

Fui impactado ao receber do ilustre compositor francês François Servenière (1961-) sua última criação, gestada longamente, plena de simbologia, rica nos processos escriturais. Sendo conhecedor das múltiplas tendências da música contemporânea, Servenière há décadas professa alguns contextos delas derivantes, mas optou por uma linguagem desviando-se do cerebralismo tantas vezes inócuo.

François Servenière escolheu o seu caminho voltado à criatividade sem se submeter ao Sistema, mas sem perder de vista o passado glorioso da música. Essa escolha, se de um lado lhe deu a possibilidade de se expandir em diversos direcionamentos, fruto do acúmulo musical e humanístico adquiridos com critério, sob outra égide, devido ao culto ao passado, sem dele se tornar refém, cerceou-lhe várias possibilidades de expansão junto ao público e às fontes do Estado, estas que seguem majoritariamente ideologia precisa.

Tendo conhecido inúmeras obras de François Servenière, “The Sacred Fire”, para dois pianos e orquestra, coloca-se entre as maiúsculas criações do compositor, entre elas “Seasons Vertigo” (1993-2007) para quatro pianos e orquestra. Quando a escrita destina-se ao piano, poder-se-ia acrescentar que Servenière tem seu idiomático. Há virtuosidade plena na escrita pianística do “Fogo Sagrado”, característica que o autor sempre desenvolve sabiamente, pianista que foi. Em “The Sacred Fire”, a virtuosidade pianística diante de uma orquestra, avassaladora por vezes, amalgama-se magnificamente. Poderíamos acrescentar que o apreço do compositor pelo jazz, que vem da juventude, está presente em vários segmentos. Como bem enumerou o ilustre compositor pátrio Ricardo Tacuchian, haveria entre as tendências composicionais da atualidade quatro fundamentos e suas ramificações, sendo que em um desses caminhos não há exclusão ao culto a determinados procedimentos que têm origem na tradição. François Servenière, estando bem atualizado quanto aos novos processos, mantém-se fiel à sua escrita enriquecida pelo acervo adquirido, mas a saber selecionar atributos novos, excluindo aqueles nitidamente panfletários e sem lastro, cultuados em guetos

Tive o privilégio de gravar várias de suas obras, entre as quais os sete  “Études Cosmiques”, mais o “Outono Cósmico”, inspiradas nas magníficas telas do artista plástico Luca Vitali (1940-2013), coletânea que ao meu ver situa-se entre as mais significativas do gênero. Figuram os oito Estudos no Youtube.

Sobre o seu Concerto para dois pianos e orquestra, “The Sacred Fire”, a presente apresentação está toda programada através dos meios eletrônicos, a antecipar uma futura première instrumental. Servenière respondeu à pergunta que lhe formulei sobre o processo atual: “A respeito dos procedimentos informáticos que levaram ao presente resultado, não se trata mais de uma questão, pois todas as músicas hoje, mesmo as clássicas, são fabricadas ou recopiadas sobre softwares informáticos… Que você utilize Finale, Studio Vision, Studio One, Pro Tools, Presonus, Sony ou Apple, a resposta será sempre extraída do cérebro do criador”.

Quanto à origem da obra, Servenière é enfático: “O Fogo Sagrado’ é uma permanência dos escritos bíblicos desde Moisés e sua sarça ardente. É uma metáfora para a vida, para a reprodução através da sexualidade, para a energia vital e simbólica que reaparece regularmente na história humana, quando a existência biológica é confrontada com seu pior inimigo: o niilismo, a negação da criação, o desejo de controle político da natalidade através da manipulação genética e ideologias não naturais, como o malthusianismo. Nos primórdios, os humanos lutaram contra o Bezerro de Ouro, enquanto a moda deletéria atual é a do transumanismo… Uma das manifestações mais grandiosas do ‘Fogo Sagrado’ é a do milagre do Santo Sepulcro, renovado com certeza todos os sábados santo desde o Século IV dC na liturgia ortodoxa”.

A montagem visual de “The Sacred Fire”, na presente modalidade, teve por parte de Servenière uma magnífica exposição de imagens caracterizando o transcorrer da obra. Riquíssima escolha de paisagens, mas especialmente de pinturas da Idade Média ao presente. Para tanto, separei “O Fogo Sagrado” em três links que, ao gosto do leitor, poderão ser acionados na sequência ou em partes.

A construção da primeira secção da obra baseia-se estruturalmente num ostinato, a consolidar intenções. Esse ostinato é rítmico e formado de acentuações incisivas. Quanto às imagens, Servenière apresenta uma série de paisagens áridas do Oriente Médio em sítios onde manuscritos foram encontrados e que corroboram o entendimento dos Testamentos Bíblicos. Cenas a anteceder e a assinalar o nascimento de Cristo, o batismo de Jesus por João Batista, a entrada em Jerusalém até à prisão de Cristo enriquecem a composição.

Passacaglia orientalis

https://www.youtube.com/watch?v=fqoAuj_Zb7I&list=PL3ycBpUN-VORx9toHcV0tfcOpPI3SR5od&index=1

A segunda parte do Concerto é ilustrada com imagens do calvário de Jesus, da prisão ao julgamento, da longa trajetória até a crucificação e a morte. Incisivamente, um tema principal apresentado sob tantas vestimentas percorre o “Lento Lamento”. Em determinado segmento, a enriquecer o discurso musical, imagens se sucedem à maneira de flashes, com aparições contundentes a seguir as acentuações em alta frequência sonora contidas na partitura. Por vezes, Servenière sobrepõe imagens, a potencializar intenções.

Lento Lamento

https://www.youtube.com/watch?v=9p2laHw0VXo&list=PL3ycBpUN-VORx9toHcV0tfcOpPI3SR5od&index=3

O terceiro movimento se caracteriza por um feerismo total, rítmica implacável e eflúvios jazzísticos. Poder-se-ia pensar numa redenção plena da humanidade. Servenière explora, com raro talento, não apenas o diálogo pianos-orquestra, mas extremadas e incisivas atuações de acordes em fortíssimo, que surgem como em um relampejar. O compositor, na montagem audiovisual, ratifica a inserção das imagens nesses “relâmpagos sonoros”, a provocar o ouvinte nessa volúpia voltada aos extremos. Após verdadeira apoteose de sons, Servenière finaliza a obra com um lento e breve arpejo solado pelo piano e em baixa sonoridade, seguido de brevíssima aparição orquestral, levando “The Sacred Fire” à paz. Jamais alcançada ?

Allegro quasi presto

https://www.youtube.com/watch?v=9p2laHw0VXo&list=PL3ycBpUN-VORx9toHcV0tfcOpPI3SR5od&index=3

O título da obra já sugere intenções precisas e o conteúdo musical já bastaria. Não obstante, em “The Sacred Fire” as imagens, sob a imaginação do compositor, não apenas permitem ao leitor-ouvinte integrá-las ao conteúdo musical, mas também a sua penetração em parte no de profundis de Servenière. Quão mais conheço as suas criações, mais me convenço de que o misterioso universo criativo musical através dos séculos tem sempre suas origens na imaginação, majoritariamente não revelada pelos autores. Quando poemas, libretos, natureza e outras mais inspirações servem de bússola, o amálgama pode se dar. Como bem reza Vladimir Jankélevich, “o segredo pode ser revelado, mas o mistério é insondável”. Não é uma dádiva saber que o misterioso universo interior que propiciou a criação pode ser inspiração possível para a reinterpretação? Ao músico intérprete consciente a resposta ao tornar viva a partitura.

Creio que em “Promenade sur la Voie Lactée”, para piano solo, François Servenière não apenas expõe outro momento criativo, mas nos leva a uma verdadeira experiência etérea.

Clique para ouvir “Promenade sur la Voie Lactée”, de François Servenière, na interpretação de J.E.M.:

https://www.google.com/search?q=youtube+Promenade+sur+la+Voie+Lact%C3%A9e+Serveni%C3%A8re+-+Martins+piano&oq=youtube+Promenade+sur+la+Voie+Lact%C3%A9e+Serveni%C3%A8re+-+Martins+piano&aqs=chrome..69i57.35927j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8

“The Sacred Fire”, the last creation of the remarkable French composer François Servenière for two pianos and orchestra, is a singular work. To the technical compositional mastery, Servenière adds fertile imagination. Initially produced by electronic means, hopefully it will soon be performed in concert halls. Consider the excellent selection of images in the montage for the Internet.

Gilberto Mendes e o multidirecionamento cultural

O mar é para mim como o Céu para um crente.
Vicente de Carvalho (1866-1924)

Comparecemos, Regina e eu, à palestra do poeta, escritor e crítico literário Flávio Viegas Amoreira, que abordou “a ligação das vanguardas musicais com seus correspondentes literários, especialmente os poéticos, e os diálogos e parcerias de Gilberto Mendes com os poetas concretistas”. O evento se deu em São Paulo, no Anexo da Casa Guilherme de Almeida, no último dia 15. Após a palestra foi lançada a nova edição de “Gilberto Mendes – Notas Biográficas” (vide blog: “Gilberto Mendes em duas publicações reveladoras”. 10/04/2021). Tenho no livro pequena colaboração, a abordar as 30 peças para piano que me foram dedicadas por Gilberto Mendes ao longo das décadas.

Flávio Amoreira é possuidor de uma cultura invejável e de uma pena que alia a criatividade ao texto castiço. Sua coluna em “A Tribuna” de Santos bem atesta essas virtudes inalienáveis.

Flávio desenvolveu sua palestra a percorrer as captações de Gilberto Mendes (1922-2016), jamais preso a uma estética definida, mas sabendo sempre extrair essencialidades de determinadas tendências musicais hodiernas, assim a agir também em relação à poesia, tantas foram as correntes de poetas anteriores a ele e outros, seus contemporâneos. Ao ler uma série de poemas de vários autores, Flávio Amoreira substanciou a pluralidade gilbertiana voltada à escolha do poema que melhor se adequasse a ideia da obra musical a nascer. Outras vezes o poema levava-o a buscar a inspiração das musas e o amálgama se dava. Importa considerar que Gilberto Mendes, tendo professado inúmeras tendências, não perdeu a noção das estruturas embasadas pela tradição: “Melodia é fundamental, que me perdoem os compositores que não conseguem compor uma melodia”.

O palestrante enfatizou algo fulcral na existência do homenageado, traduzido em várias obras tendo o mar como inspiração: sua Santos, o porto seguro a abrigar aspirações musicais e anseios de vida.

A certa altura da palestra, chamou-me a atenção a explanação de Flávio Amoreira sobre o pensamento de Gilberto a respeito das músicas erudita e popular, tendo inclusive, a corroborar a sua fala, lido alguns segmentos de “Viver sua Música – com Stravinsky aos meus ouvidos rumo à Av. Nevskiy” (vide blog com o mesmo título, 04/04/2009). Creio de interesse apresentar a posição segura do compositor, a “profetizar” situação que só se deteriora com o correr dos anos. Escrevia Gilberto Mendes: “E ela (música) é a única arte que tem duas categorias, a popular e a erudita. Não existe pintura popular e pintura erudita, literatura popular e literatura erudita, conforme existe na música. A existência de uma categoria de popular para a música mostra como, em toda a sua extensão, em seu todo, ela é acessível a qualquer tipo de público. A própria música popular por vezes tem aspectos eruditos. E vice-versa. Mas, paradoxalmente, a música erudita não tem nada a ver com a popular. É totalmente outro mundo, apesar de seu alcance também popular. São mundos longe de ser a mesma coisa, como pretendem os intelectuais populistas da mídia. O mundo da alta cultura inclui a cultura popular na criação de uma obra aberta, do signo novo; enquanto que o mundo da cultura popular não inclui a alta cultura, pode somente sofrer a sua influência, mas a exclui, por ser um mundo limitado pela sua obrigação de ir ao encontro do que a audiência espera. Canções de Schubert, Fauré, jamais serão ouvidas num show de música popular. Arranjos eruditos de Jobim, Chico Buarque, Paul Mc Cartney têm figurado com frequência nos concertos eruditos, sobretudo dos corais”.

Quatorze anos se passaram da publicação de “Viver sua Música”. Mercê do crescimento vertiginoso das redes sociais, acentuadamente o nivelamento entre o erudito e o popular se pulverizou, a tornar realidade inconteste a afirmação de Mario Vargas Llhosa, que já apontava em “La Civilización del espetáculo” dois aspectos essenciais: a queda vertiginosa da cultura erudita e o fato de que, sem os holofotes e a mídia, os que prosseguem criando eruditamente não existem. Os sites mais frequentados nada dedicam às manifestações eruditas, mas propagam diariamente, na área do entretenimento e dos costumes, um besteirol interminável. Impossível ao jovem em formação ficar alheio a essa abominável divulgação.

Um aspecto se me afigura irreversível. Tanto a música erudita como a literatura referencial estão em xeque. Temporadas de música de concerto pelo mundo prosseguem suas programações, mas a expansão do público no Ocidente sequer progride aritmeticamente, enquanto que a ascensão das inúmeras variantes de uma música costumeiramente entendida como popular acontece geometricamente. Mencionei semanas atrás que em Paris houve uma passeata em favor da música erudita! Tendo estudado na capital francesa durante alguns anos, entre as décadas de 1950-60, período em que a música erudita, também denominada clássica, era apresentada diariamente em teatros e salas menores, essa notícia surge como uma triste constatação da decadência cultural.  Patrocinadores, empresários e o consórcio mediático entenderam o veio da mina. Gerações são abduzidas pela massacrante divulgação de espetáculos ruidosos que são apresentados nos chamados Allianz, anteriormente estádios só para eventos futebolísticos e, por vezes, de atletismo, hoje transformados também em arenas cuja programação tem por vezes ingressos vendidos meses antes das apresentações.

Figuras “idolatradas” se apresentam. A “música”, quando não metaleira, estonteantemente ensurdecedora, leva multidão de jovens aos espetáculos e ao delírio, “renovando-se” sempre mais agressivamente através de outros processos que envolvem iluminação, gestuais histriônicos, trajes por vezes sumaríssimos que, na realidade, encobrem uma pobreza musical sem limites. Se numa arena lotada os alto-falantes transmitirem uma pergunta simples, “quem já ouviu falar em Bach, Mozart, Beethoven, Schumann”, não será improvável que apenas umas pouquíssimas vozes se pronunciem a dizer sim, vozes essas que não provocarão qualquer eco.

Um outro aspecto é também insofismável. Largamente majoritária, a criação da música popular se extingue pouco após a diminuição fatal da frequência, renascendo através de novos sucessos, que igualmente serão meteóricos e efêmeros. Uma ou outra canção ou hit de grande alcance seguirá durante curto período, estiolando-se a seguir.

Gilberto Mendes tem toda razão. Acrescentaria que, à maneira de um país derrotado em guerra que tem que fazer concessões, a música erudita namora por vezes com a música popular, convidando os músicos que a cultuam, mesclando programas. A exemplificação da derrota vem do oposto. Nas apresentações das tantas variações da música popular, não há o mínimo espaço para a música erudita. O excelente pianista e regente Ricardo Castro, idealizador e diretor do projeto Neojiba, que visa à inclusão social através da música, teceu comentários sobre a presença da música popular em programa da Orquestra Sinfônica da Bahia, denominado “Osbrega”, ou seja, OSBA com brega! Em post no Facebook, escreveu: “quando uma orquestra sinfônica estadual, depois de conquistar milhões inéditos para seu orçamento e poder contratar músicos excelentes, escolhe esse ‘título’ para promover um concerto [...] estamos certamente entrando em um círculo do inferno nunca Dantes visto neste país”. No mesmo aplicativo, reforçaria: “no caso em questão, a orquestra é pública e os músicos são renumerados pelos impostos dos mais pobres (rico não paga imposto no Brasil). E em um estado pobre como a Bahia, uma orquestra desse porte só se justifica porque existe um repertório que ninguém mais pode defender, proteger, divulgar e que é patrimônio da humanidade”. O maestro Carlos Prazeres, da OSBA, rebateria com os termos: “Não temos preconceito elitista. Pegar uma ‘elite’ que detém o poder do conhecimento e da cultura faz ela ficar para sempre como elite e o pobre, sempre pobre. A elite precisa se abaixar um pouco para conversar com os outros”. Reescrevo as palavras de Gilberto Mendes, que sintetizam o debate: “… a música erudita não tem nada a ver com a popular. É totalmente outro mundo, apesar de seu alcance também popular. São mundos longe de ser a mesma coisa, como pretendem os intelectuais populistas da mídia”.

Ao comunicar ao Flávio Amoreira que o post da semana seria dedicado à substancial palestra por ele proferida, enviou-me posicionamento que se coaduna com as postura de Gilberto Mendes e Ricardo Castro. Salienta: “chega a ser cruel aviltamento cultural de mídias que deveriam ter função precípua de inserir, pela Arte, gerações de jovens sem acesso às grandes expressões na literatura, música, artes plásticas….a literatura nivelada pela lei do menor esforço, as artes plásticas submetidas ao depauperamento visual e às imersões que espetacularizaram o deleite interpretativo e, na música, a `tiktokização´ bestializante de Anitas e `sofrências´ estético-comportamentais…. tudo que remeta a erudito e elaborado soa elitista, quando deveria ser motivo de integração iluminada…. nem Umberto Eco imaginaria tal degradação…´´

Constata-se que o efêmero de quase toda música de alto consumo é o reflexo de sua “qualidade” questionável. Patrocinadores, empresários ávidos pelo lucro conhecem o caminho da “renovação”, sempre mais apelativa quanto à queda qualitativa.  É o novo hit musical que será promovido e assim sucessivamente. Cantores populares que cultuam repertório romântico ainda conseguem, durante toda a existência, repetir os sucessos de antanho.

Sob outra égide, como não se encantar com a música de raiz perpetrada pelos povos do planeta. Dessa fonte, inúmeros compositores que permanecem na História buscaram elementos inspiradores. Entre eles, o notável compositor português Fernando Lopes-Graça (1906-1994), criador de uma coletânea mágica, “Viagens na Minha Terra”, em que temas e atmosfera das raízes lusitanas foram fonte de inspiração para substanciar o título similar do não menos notável escritor Almeida Garrett (1799-1854). O leitor poderá ter acesso à minha gravação através do Youtube.

Divulgado pelo Instituto de Piano Brasileiro, clique para ouvir, de Paulo Costa Lima, “Imikayá”, na interpretação de J.E.M. Costa Lima, magistralmente, desenvolve a criação inspirado em tema de raiz da Bahia:

https://www.youtube.com/watch?v=qZqE63BeleQ

Fica neste espaço, a minha admiração pela atuação permanente de Flávio Viegas Amoreira que tem batalhado tenazmente pela cultura erudita, não apenas em seus artigos publicados habitualmente em “A Tribuna de Santos”, como também em seus cursos sobre literatura.

Acredito que não se pode esmorecer. Apesar da queda acentuada da cultura erudita, haverá sempre aqueles que a perpetuarão. Música,  literatura e artes consagradas através dos séculos tendem a permanecer, apesar das pressões de tantos interesses contrários.

The precious lecture given by the writer, poet and literary critic Flávio Viegas Amoreira on the remarkable composer Gilberto Mendes is the subject of this blog.

 

Quando a geografia fascina e a arte aflora

Porém, a arte só beija quem por ela almeja ser beijado.
A arte exige uma liturgia, um ritual, que se prende com a fonte da dádiva e a aproximação do amor.
A arte atravessa a nossa mente com pés de pomba,
à mínima tempestade torna-se invisível, substituída pelos apelos do cotidiano.
Miguel Real (ensaísta e professor de filosofia português)

Em blog já escrevi sobre Joep, meu amigo holandês (vide Blog: “Joep Huiskamp”, 20/03/2021). Conselheiro do “Executive Board”, trabalha na Direção da Universidade de Tecnologia de Eindhoven (IUe) desde 1990.

Recentemente pormenorizei o escritor português Wenceslau de Moraes que, a certa altura, niponizou-se inteiramente motivado pelo fascínio com que o Extremo Oriente, Japão em particular, impregnou sua existência de maneira definitiva (vide blog: “Daí-Nippon” de Wenceslau de Moraes -1854-1929, 11/02 e 18/02/2023).

Conheci Joep no ano 2000 e nos tornamos bons amigos. É um privilégio vê-lo, juntamente com sua esposa Jonneke, em quase todos os recitais que apresento na Bélgica, os bem mais de uma dezena em Gand e em outras cidades do país. Inclusive, estiveram por duas vezes em Portugal, nas apresentações em Coimbra e Lisboa. O apego de Joep aos Açores, bem anterior à nossa amizade, é proverbial. Sempre que pode viaja para visitá-los. De minha parte, confesso que, em três das nove ilhas do arquipélago dos Açores, território autônomo português, apresentei-me em recitais no longínquo 1992. Terceira, Faial, e São Miguel foram as ilhas e, não fosse tão distante alcançá-las, teria ido mais vezes, pois minha impressão é a de que os Açores, situados no Atlântico Norte, fazem parte daquelas regiões entendidas como paraísos sobre a Terra.

Estreitaram-se nossos laços em torno do notável compositor e regente Francisco de Lacerda (1869-1934), açoriano nascido na ilha de São Jorge.  Havia gravado a extraordinária coletânea de Lacerda, “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste”, e já àquela altura Joep esboçava suas aquarelas, guaches ou desenhos em cores cultuando a música, a arte, e não se esquecendo de Francisco de Lacerda. Amalgama-se o amor pelos Açores e a um de seus filhos maiores. Ofereceu-me, fruto dessa admiração pelos luminares açorianos, um desenho de Lacerda feito num recorte de papel grosso, após um almoço num pequeno restaurante de Gand no ano 2.000.

Mais tarde, a rememorar nossa conversa sobre literatura portuguesa, deu-me pequeno óleo sobre tela, em 2015, a homenagear o grande poeta Antero de Quental (1842-1891), nascido em Ponta Delgada, Ilha de São Miguel.

Os desenhos de Joep Huiskamp relacionados à minha atividade pianística atravessaram duas décadas, pois dos primeiros, no ano 2.000, caracterizando Lacerda, mas também Scriabine, outros surgiram. Em 2017, após meu recital na sala Quatre Mains, em Gand, entregou-me alguns guaches feitos no dia seguinte, sendo que um deles, “Ir mãos”, foi inspirado após a interpretação de “Vers la Flamme”, de Scriabine. Joep e Jonneke deverão estar presentes no meu recital em Gand no próximo dia 25 de Maio.

Qual não foi a minha surpresa ao receber dias atrás e-mail de Joep a dizer que visitara, como sempre o faz, seja com Jonneke ou com seu irmão, a Ilha de São Jorge. A visita “obrigatória” representa também um culto a Francisco de Lacerda. Enviou-me foto do mar açoriano, tantas vezes revolto, a açoitar o arquipélago, e um desenho, creio que o mais expressivo da coleção. Apresento-o no atual post, ratificando a admiração de Joep pela criação de Lacerda.

Creio firmemente que a sensível e magistral coletânea de Francisco de Lacerda está entre as mais importantes obras para piano destinadas ao universo infantil em termos planetários. Já o disse em vários blogs. A ratificação dessa importância veio através do texto assinado pelo mais importante biógrafo de Claude Debussy da segunda metade do século XX, François Lesure (1923-2001), Diretor do Departamento de Música da Bibliothèque Nationale de Paris. Privilegiava o texto minha gravação da coletânea lacerdiana no CD lançado pelo selo belga De Rode Pomp. Seria ledo engano acreditar que as “36 histórias…” são de fácil aprendizado. O aguçado sentido das sonoridades e o seguir as suas extinções sonoras através de efeitos requintados, a pedalização seletiva e, a “comandar “a execução, a audição acurada, tornam o conjunto único no gênero.   No Youtube as 36 histórias podem ser ouvidas, divididas em três blocos. Os desenhos coloridos que acompanham a criação lacerdiana foram realizados pelo meu saudoso amigo e artista plástico Luca Vitali (1940-2012). O ilustre compositor Willy Correia de Oliveira, ao ouvir pela primeira vez as “36 histórias”, atônito me disse: “Essa obra é um milagre”.

https://www.youtube.com/playlist?list=PL1j-Jq5yk8iyblpLYazgN-iA6IyfG6eBv

Se Joep já havia sido atraído pelos Açores, foi mais ainda sonoramente “abduzido” pelas sonoridades de Francisco de Lacerda. Como bem se expressou nosso poeta Luiz Guimarães Júnior (1844-1898) em contexto outro: “Resistir quem há-de?”. Historiar o compositor e a Cultura portuguesa durante mais de duas décadas, pois Joep também traduziu para o holandês “O Mandarim”, de Eça de Queiroz, a revelar o raro talento em áreas outras que não a da sua especialidade em educação e tecnologia, bem evidencia o resultado do aprofundamento em várias sendas. Para tanto, necessário se faz o olhar amoroso àquilo que se está a pesquisar. A existência propicia essa rara oportunidade. Não desperdiçá-la é uma dádiva.

Clique para ouvir, de Francisco de Lacerda, “Papillons” e “Zara”, na interpretação de J.E.M:

https://www.youtube.com/watch?v=rOa_dEmQg30

My friend Joep Huikamp is an advisor to the Executive Board of the Eindhoven University of Technology (IUe). Having visited the Azores archipelago decades ago, he would return numerous times, fascinated by the local culture and unique nature. Our friendship dates back to 2000 and began in Ghent, Belgium, growing stronger  around our shared interest for the remarkable Azorean composer Francisco de Lacerda (1869-1934). Over the years I have been favored with a series of drawings and gouaches made by the artist. A recent gouache I received portraying Lacerda motivated this post.