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A Música é poesia incorpórea.
Guerra Junqueiro (1850-1923)

Após blog recente (Leitura e Leitura, 18/11/2023) e o último, nos quais abordo o quase “desprezo” das novas gerações pela literatura, alguns leitores fizeram associação com o que pode estar ocorrendo com a música clássica ou erudita em nosso país, assim como em vários centros europeus. É fato que em nosso solo houve uma profunda transformação, se considerada for a presença da música dita elitista em meados do século XX.

Se os conjuntos orquestrais continuam as suas trajetórias junto ao público específico, o mesmo não se pode dizer em relação à atividade solista ou camerística. Estou a me lembrar de que, na década de 1990, estávamos em Belém do Pará, hospedados no mesmo hotel, a notável e saudosa pianista Yara Bernette (1920-2002), o excelente violoncelista Antônio Lauro Del Claro e eu, pois participamos, em recitais distintos, de um Festival de Música. Bernette, que durante longos anos dirigiu a Escola Superior de Música e Arte Dramática de Hamburgo, a certa altura nos disse que o recital solo estava em pleno declínio na Alemanha e em outros países da Europa e que apenas aqueles precedidos por grande divulgação e holofotes poderosos ainda conseguiam plateias plenas. Essa revelação de impacto lenta e seguramente se abate sobre o Brasil.

Atendo-se à nossa cidade, tínhamos em São Paulo algumas salas que abrigavam recitais solos e camerísticos nas quais público interessado e numeroso se fazia presente. Os jovens intérpretes ocupavam espaços não apenas em recitais, como também junto às orquestras. Duas delas convidavam novéis talentos, a Orquestra da Rádio Gazeta, conduzida pelo Maestro Armando Belardi (concertos semanais transmitidos ao vivo pela Rádio) e a de Amadores, a ter como regente Léon Kanievsky. Uma plêiade de instrumentistas da nossa faixa etária se apresentava constantemente como solistas. As salas ficavam repletas de entusiasmados ouvintes e havia camaradagem entre os jovens músicos. Frise-se que, naquele período áureo de São Paulo, professores de piano fixados na cidade recebiam os alunos em suas moradas e são lembrados pelas capacidades insofismáveis e pela absoluta lhaneza: José Kliass (Rússia), Fritz Jank e Hans Bruch (Alemanha), Souza Lima e Dinorá de Carvalho (Brasil), como exemplos.

Entre as décadas de 1950-1960, a população da cidade de São Paulo, segundo o IBGE, saltou de 2.168.096 para 3.781.446, atingindo cerca de 12.330.000 em 2020. Inversamente, minguaram as apresentações solo de novos instrumentistas ao longo das décadas. No Brás, o Teatro Colombo, de boa dimensão, abrigava recitais de jovens nas programações patrocinadas pela Prefeitura, que organizava concursos semestrais e os vencedores se apresentavam naquele espaço acolhedor. Infelizmente pegou fogo em 1966. Havia outras salas na cidade que mantinham programação concorrida destinada aos novos talentos. O MASP mantinha intenso calendário sob a direção do Maestro Walter Lourenção. Lá me apresentei na década de 1970 inúmeras vezes e em 1982, interpretando em quatro recitais a integral para piano de Claude Debussy com a sala repleta. Recitais também eram oferecidos no Theatro Municipal, não apenas para os nomes referenciais no planeta, como para renomados intérpretes pátrios e novos talentos. Nos anos 1950-1960, integrais aconteciam. O notável pianista austríaco Friederich Gulda (1930-2000) interpretou as 32 Sonatas de Beethoven em oito récitas, e a extraordinária opera omnia foi, mais de uma vez, apresentada em São Paulo pelo ilustre pianista e professor Fritz Jank (1910-1970). Seria possível, hoje, a realização de extensos ciclos altamente didáticos como esses? Basicamente quase todos os recitais recebiam numeroso público. Sempre com o Theatro Municipal lotado. Recordo-me de que, em meados do século XX, quando um intérprete renomado se apresentava no TM, havia a juventude a formar fila para ocupar as galerias do Teatro centenário. Se daquele período áureo ao atual a população quintuplicou, sextuplicou, o mesmo não ocorreu no que tange ao número de solistas pátrios, assim como em relação ao número de salas destinadas aos recitais solo ou camerísticos. Há diversas na cidade, mas destinadas a várias atividades, inclusive a musical. Umas poucas apenas para recitais.

Salas que abrigavam temporadas anuais com intérpretes solistas ou de música de câmara foram desativadas para esse fim, sendo que a do Museu de Arte de São Paulo ou, mais recentemente, a do MuBE são exemplos. Subsistem, como resistência, espaços pequenos que mantêm a chama da esperança, onde jovens intérpretes e instrumentistas se apresentam para fiéis ouvintes. Quanto à nova geração de músicos, alguns talentosos a ela pertencentes buscam acima do equador horizontes mais propícios para o aperfeiçoamento.

Quanta verdade nas palavras da eminente professora, tradutora e escritora Aurora Bernardini inseridas no blog precedente: “O desinteresse pelo conhecimento humanístico empobrece a memória e empobrece a vida. Mas que luta convencer disso as novas gerações!”.

Ao longo dos blogs, que se prolongam desde Março de 2007, tenho frisado que várias são as razões da progressiva desarticulação da Música erudita. A indústria do entretenimento, a visar sempre ao lucro, não tem o menor interesse em promover intérpretes de música erudita, salvo exceções, não apenas pelo espaço restrito que o gênero ocupa na sociedade, mas também pelo público-alvo, constituído pela nova geração sempre em busca dos ídolos extremamente ventilados nos vários gêneros “musicais” que atraem multidões. A rápida transformação de hábitos e costumes, a fixação abusiva na telinha que altera comportamentos fixando nas mentes o efêmero, estariam entre outras motivações desaticuladoras.

Em várias oportunidades salientei através dos blogs a desativação da crítica voltada à Música clássica. Participei no ano de 2012 de um debate na Universidade Sorbonne, em Paris, a respeito da crítica musical, pois um palestrante comentou o seu progressivo desaparecimento na imprensa  parisiense, restrita basicamente online àquela altura. Lembrei que, nas décadas de 1950-1960, os principais jornais parisienses mantinham uma seção dedicada à crítica dos principais eventos e que o “Guide du Concert et du Disque”, hebdomadário, cobria grandes eventos e aqueles realizados nas pequenas salas, onde muitos jovens se apresentavam. Guardei os comentários sobre as minhas apresentações. Um grande estímulo. Eram vários os críticos especializados. Como curiosidade, menciono uma crítica publicada no Guide… referente a um recital que interpretei na École Normale de Musique (19/11/1960). Positiva, com algumas observações de ordem interpretativa. Dias após, recebo de um outro crítico do semanário, o musicólogo Michel Louvet, extensa consideração sobre o mesmo recital, a contrastar com as posições da colega, pois pensou ter sido o indicado para o mister. Absolutamente inusitada a situação. Dois críticos da mesma publicação em um mesmo evento!

São Paulo, naqueles decênios, teve uma crítica musical atuante e a lembrança dessa atividade se faz novamente presente. Em blogs bem anteriores, focalizando contextos outros, menciono o fato. O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Folha da noite, Diário de São Paulo, Diário da Noite, O Tempo, Correio Paulistano, A Gazeta, Giornalli degli italiani, Jornal Alemão, Shopping News e a revista Anhembi mantinham críticos especializados que compareciam às muitas apresentações paulistanas, a maioria músicos atuantes ou professores de música. A cidade cresceu e a crítica musical constante, estimuladora… evaporou.

Verifica-se na Música o que se assiste na Literatura. Naquela, Conservatórios, que se dedicavam à Música erudita, de concerto ou clássica, encerraram as atividades e deram lugar a outros estabelecimentos, que maximizam a denominada música popular e suas ramificações, havendo menor espaço para a música clássica. Sob outra égide, os Departamentos de Música das Universidades recebem, para os cursos de instrumento, majoritariamente estudantes de música que se habilitam e se esforçam, mas pouquíssimos egressos dos bancos universitários seguirão carreira solo. A maioria encontrará nas orquestras a realização dos seus anseios ou se dedicarão à docência.

Livrarias fundamentais ou fecharam ou exibem preferencialmente livros que seduzem as novas gerações, mas cujos conteúdos são duvidosos qualitativamente. Músicos e literatos têm de recorrer às pequenas salas de concerto ou às editoras independentes, tantas destas últimas em luta permanente para a divulgação de suas obras.

O descaso pelo conhecimento humanístico poderia ser evidenciado nesses megashows que lotam estádios, onde milhares de jovens se extasiam com a parafernália visual e os altos decibéis. Ousaria vaticinar que, se no intervalo de uma “música”, uma voz ao megafone perguntasse: “quem já ouviu falar de Sócrates, Michelangelo, Bach, Beethoven, Cervantes ou Rodin?”, raríssimas mãos se ergueriam. Alguns se lembrariam do excelente jogador do Corinthians ou da série de filmes “As tartarugas Ninjas”, pois uma das quatro tartarugas, lamentavelmente leva o nome do imenso escultor e pintor italiano. Viria também à memória outro filme, “Beethoven, o Magnífico”, o cão da raça São Bernardo.

Nas duas atividades da cultura humanística autêntica, Música e Literatura, a Máquina que conduz eventos e publicações desconhece o valor incomensurável dessas culturas, e o propósito primeiro da sua engrenagem é apenas um, hélas: o lucro. Se acrescentarmos a Pintura, a arte contemporânea atual está atrelada a interesses que, igualmente, tem o ganho como meta essencial. Pouco a fazer.

Classical music and literature. Issues of current relevance and similar problems in today’s ephemeral world.

 

Jean-Philippe Rameau e o seu Tratado maior

A imensa contribuição de Rameau é a de que ele soube descobrir
a “sensibilidade na harmonia”;
conseguindo assinalar certas cores, certas nuances das quais, antes dele,
os músicos tinham apenas um sentimento confuso.

Rameau traça o caminho pelo qual passará toda a harmonia moderna; e ele mesmo.
Talvez tenha falhado ao escrever suas teorias antes de compor as suas óperas,
pois seus contemporâneos encontraram a oportunidade de concluir
a inexistência de qualquer emoção em sua música.

(novembro, 1912)

Escutemos o coração de Rameau,
jamais voz mais francesa não se faz ouvir, e já há muito tempo, na Ópera de Paris.

(8 de Maio, 1908)
Claude Debussy (1862-1918)

Se o blog anterior a respeito do pioneiro “L’Art de Toucher le Clavecin”, de François Couperin (1716-1717), teve boa recepção, Pedro Maurício, leitor que sugeriu o tema, propõe um blog sobre o “Traité de l”Harmonie réduite à ses principes naturels” (1722), de Jean-Philippe Rameau, mencionado no blog do último dia 16. Escreve: “Creio que seria um abuso, mas poderia o professor escrever também sobre o Tratado de Harmonia de Rameau?”. Faço-o com alegria, contudo de maneira bem sintetizada, mercê da incomensurável abrangência contida nos quatro livros do Tratado.

Nos inúmeros posts sobre Rameau, desde 2007 focalizei preferencialmente sua obra para cravo, mencionando sempre o inestimável contributo de Rameau na área teórica através das suas pesquisas fundamentais, que influenciaram um período substancial do século XVIII, todo o XIX até os primeiros decênios do século XX, pois a partir da metade do século passado pulularam tendências composicionais, muitas delas negligenciando as conquistas de antanho.

Um dos mais destacados biógrafos de Rameau, Jean Malignon, escreve que o Tratado de Harmonia é “uma reavaliação de todo o emaranhado empírico dos profissionais, a reelaboração de um amontoado de conhecimentos que se complicam sem fim. A partir deste livro manifesto, e em todas as suas obras posteriores sobre a ‘ciência musical’, ele tende a simplificar; no final, ele reduz a teoria a um único princípio, desta vez baseado na observação de fenómenos naturais: A razão põe diante dos nossos olhos apenas um acorde, consequência lógica da ressonância do corpo do som, isto é, dos seus harmônicos, dos quais ninguém tinha podido extrair nada, desde quando foram pesquisados” (1960).

No blog anterior fiz uma distinção entre os escritos dos dois nomes maiores da música francesa no período: Couperin através do método para cravistas, iniciantes ou não, Rameau com seus tratados teóricos sobre a Harmonia, principalmente. Datado de 1722, o seu “Traité de l’Harmonie…” teria considerações outras no “Nouveau systhème de musique” (1726), máxime na obra “Génération Harmonique”, de 1737. Datada de 1750, tardiamente Rameau escreveria “Démonstration du principe de l’harmonie”.

“Le Traité…” teria importância fundamental ao longo do tempo e foi estudado a fundo até a primeira metade do século XX, quando progressivamente quantidade de tendências composicionais tem proliferado, algumas delas à margem basicamente dos estudos da harmonia tradicional. Estou a me lembrar de episódio passado em Londres, onde estive a participar de um Colóquio sobre Debussy (1993). Um jovem compositor ofereceu-me um Study for piano, sabedor do meu projeto que somou 85 Estudos compostos especialmente para esse fim, vindos de vários países, e que apresentei em público. Lendo in loco a partitura, observei que ele era untouchable. Perguntei-lhe se alguma vez compusera uma “Fuga”, forma essencial nos cursos de composição mundo afora e que teve em J.S.Bach (1685-1750) seu maior cultor. A resposta foi imediata, “trata-se de uma forma ultrapassada”.

Rameau não desconhecia as conquistas advindas da ressonância de uma fundamental (som mais grave) e de outros avanços teóricos. Pitágoras (Século VI a.C, considerado o fundador da teoria musical moderna) e suas conclusões, tendo o monocórdio a exemplificá-las, Gioseffo Zarlino (1517-1590) René Descartes (1596-1650) através do “Musicae Compendium” e Joseph Sauveur (1653-1716) foram-lhe caros.

O “Tratado de Harmonia…” está dividido em duas partes distintas, uma primeira a conter dois livros (assim denominados) de cunho teórico e dois outros correspondendo ao ensino voltado à composição. Não obstante a divisão, a História da Música reservaria aos dois primeiros a competente notoriedade, pois trariam inovações, mercê de um raciocínio lógico, pouco afeito, nessa temática, até a sua aparição. Já no Prefácio, Rameau sinaliza a importância do som fundamental, o mais grave, de onde sucessivamente se formará o acorde. Esclarece: “O princípio da Harmonia se revela a partir de um Som único, e suas propriedades as mais essenciais são explicadas…”. O ilustre musicólogo Jacques Chailley (1910-1999) comenta: “Quanto ao baixo fundamental, pivô de todo o sistema ramista, ele aparece, essencialmente, como um meio prático de coordenar e de simplificar as regras do encadeamento do baixo contínuo, que até então eram ensinadas”.

Têm interesse e despertam curiosidade algumas “Reflexões de Rameau sobre a maneira de formar a voz e de aprender música…”, referindo-se ao som mais grave ou fundamental, e outras considerações colhidas através de arguta observação: “O que me fez entender pela primeira vez que a harmonia nos é natural, apreendi de um homem com mais de 70 anos, que, na parte inferior da Ópera de Lyon, começou a cantar bem alto o baixo fundamental de um canto cujas palavras o impactaram. Eu fiquei tão mais surpreso pelo rumor causado no Espetáculo, querendo saber quem era o cidadão. Soube se tratar de um artesão cuja profissão era árdua e rude. Ademais, sua condição o distanciou da música. Só frequentou a Ópera quando sua situação assim permitiu. O quê? Pensei então, um tal homem é capaz de entender um baixo fundamental que não se encontra expresso nem no Canto, tampouco no acompanhamento, isso a provar bem que a harmonia nos é natural. Minhas reflexões foram mais longe e me fizeram imaginar uma regra para facilitar a qualquer um, com a voz mais ou menos afinada, o Baixo fundamental de todos os repousos de um canto”.

Não sem razões, o insigne compositor e mestre esclarecido Gabriel Fauré (1845-1924), cuja linguagem musical é personalíssima e única, mas que cultuava a tradição, apregoava à nous les basses, valorizando as notas mais graves, preceito sempre transmitido para uma de suas intérpretes favoritas, Marguerite Long (1875-1966). Em suas aulas privadas, que tive o privilégio de frequentar em Paris, ela não deixava de repetir esse ensinamento do mestre.

Para o leitor, apresento a “série harmônica”, que ilustra o excelente ensaio do notável musicólogo espanhol Adolfo Salazar (1890-1958), “El Clave Temperado” (1950).

Nela, o autor apresenta inicialmente o som fundamental da corda, ficando demonstrado que a exata metade expõe a oitava acima, a metade da metade a quinta e assim sucessivamente em direção aos extremos agudos. Através dessas subdivisões, Salazar considera o caminhar da música através dos séculos.

A imagem do monocórdio com a divisão da corda, ou seja, a oitava acima, exemplifica bem o início da série harmônica exposta na imagem anterior.

Os dois outros livros do “Traité de l’Harmonie réduite à ses príncipes naturels” tratam dos “Princípios da Composição”. No terceiro, largamente o mais longo, nos seus 44 capítulos – alguns contendo vários artigos -, Rameau, após elencar elementos essenciais da escrita musical, a partir do segundo capítulo aborda o baixo fundamental e abre as explanações das estruturas composicionais. O quarto livro contempla os “Princípios de Acompanhamento” e didaticamente considera componentes que servem à composição. É constante o apelo de Rameau no que concerne ao Acorde, desdobramento essencial do baixo fundamental.

Jacques Chailley define com precisão a dimensão da obra teórica maior de Rameau: “O Traité de l’Harmonie de Rameau permanece um dos monumentos essenciais do pensamento musical de todos os tempos. Ele é a base de quase todas as obras pedagógicas que surgiram nesses 250 anos e, sem ele, talvez os músicos não tivessem sido formados como foram e a música não teria seguido os rumos conhecidos”.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, “Les Sauvages”, da ópera-ballet “Les Indes Galantes”, na interpretação de “Les Arts Florissants”, sob a direção de William Christie:

https://www.youtube.com/watch?v=jt92LGU3Dnw&t=42s

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, “L’air pour Borée et la Rose, da ópera-ballet “Les Indes Galantes”, transcrita para cravo pelo compositor, na interpretação de J.E.M. ao piano:

https://www.youtube.com/watch?v=kYHMbUAw8sU

 

Jean-Philippe Rameau’s “Treatise on Harmony reduced to its natural principles” is a milestone in the History of Music, one of the essential works that has endured since 1722.

Pioneiro mundial como método voltado ao cravo

Como há uma grande distância entre a Gramática e a Declamação,
igualmente existe uma infinita entre a Partitura e o tocar bem.

François Couperin (1668-1733)
(“L’Art de toucher le Clavecin”)

O blog anterior teve guarida atenta. Para aqueles conhecedores da temática, a lembrança dos mestres franceses essenciais que escreveram para o clavecin, ou cravo, na tradução portuguesa, foi de interesse. Para outros sem familiaridade com as excelsas criações dos clavecinistes français, uma grata revelação. Fica o meu agradecimento aos leitores do post anterior.

Um deles, Pedro Maurício, sugeriu-me um blog dedicado à “L’Art de toucher le clavecin”, de François Couperin (1668-1733), mencionado no blog anterior. Faço-o prazerosamente pelo post semanal, pois a obra é pioneira no gênero e realmente extraordinária pelas tantas observações nela contidas (“L’Art de Toucher le Clavecin”, édition originale de Bercy et du Plessy, Wiesbaden, Breitkopf & Härtel, 1961).

François Couperin, descendente de família de músicos renomados, desde antanho tem “Le Grand” acrescido ao seu nome. No referencial método em apreço, há um objetivo prático ao abordar princípios válidos até o presente no que tange ao intérprete frente ao instrumento, tanto no sentido técnico como psicológico. Diferentemente de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), cujos tratados são preferencialmente teóricos, “L’Art de toucher le clavecin” respira até uma certa leveza no sentido da orientação, tratando-se de um método voltado aos cravistas ou iniciantes. “Asseguro a todos que os princípios são absolutamente necessários para a boa execução de minhas peças”, afirma no prefácio e esclarece que o seu método é único.

Inicialmente, Couperin estabelece um plano e insere aspectos essenciais: posição do corpo, das mãos, a ornamentação e exercícios preliminares não desprovidos de dedilhados. Para tanto, oito Préludes originais, que não fazem parte das 254 peças que integram as 27 “Ordres” tratadas no blog anterior, são anexados com muitas indicações voltadas à parte técnica e interpretativa. Acredita que o Método corroboraria a compreensão dos seus dois primeiros livros de “Ordres” para cravo. Com critério, o Autor enfatiza os trechos mais complexos para a execução, esclarecendo-os.

A experiência o faz opinar sobre a melhor idade para o aprendizado, seis a sete anos, não excluindo outras faixas etárias, sinalizando que a precocidade amolda as mãos e, a corroborar, enfatiza a posição do corpo: “Para estar bem sentado na altura certa necessário se faz ter no mesmo nível a parte inferior do cotovelo, os pulsos e os dedos, assim como a utilização de uma cadeira que atenda a essa postura”. Couperin observa outros aspectos que atravessarão os séculos, não apenas no que concerne aos cravistas, mas também, como numa antevisão futura, aos pianistas. Distância do teclado, posição dos joelhos, atenção às expressões faciais “colocando um espelho ao lado da partitura”.

Após essas considerações iniciais de ordem prática, Couperin pondera: “É melhor e mais confortável não marcar o compasso com a Testa, corpo ou pés. É necessário ter um ar descontraído diante do cravo: sem fixar muito o olhar sobre algum objeto, nem ter esse olhar vago. Enfim, olhar o público, se houver, evidenciando total naturalidade”. Recomenda aos miúdos que o toque não seja seco, mas delicado, tendo os dedos bem próximos do teclado (lembro que a pressão sobre a tecla de um cravo é bem distinta daquela do piano, este mais pesado, pois os mecanismos são distintos). Nesse início, aconselha ao mestre ter a chave do instrumento, a fim de que o iniciante, após a aula, não dissipe os ensinamentos.

Pelo fato do excesso de ornamentação no período, Couperin segue método cartesiano. À medida que o aluno avança, ornamentos mais complexos são ensinados e, a partir daí, transpostos para outras tonalidades. Para os alunos mais “velhos”, recomenda exercícios com a ajuda de alguém, no sentido de que sejam relaxadas as articulações. Como os miúdos preferem realizar os ornamentos com os dedos mais “fáceis” para isso (polegar, indicador e dedo médio), aconselha-os a exercitarem o anelar e o dedo mínimo. Considera que os “mediocremente hábeis” preferem as peças com poucos ornamentos.

Couperin considera que as mãos femininas são mais propícias para a prática cravista. Afirma: “Já disse que a leveza contribui muito mais na execução do que a força”. Consideremos que a pressão do toque sobre o teclado do cravo é bem mais leve do que a do piano moderno, pois os mecanismos são bem diferentes e que não é a força que determinará o som mais ou menos forte no cravo. Couperin esclarece: “Os sons do cravo estão estabelecidos; não podendo ser encorpados nem diminuídos. Parece quase insustentável, até o presente, que possamos dar alma a este instrumento. Todavia, pelas pesquisas que eu realizei, com o pouco do natural que o céu me deu, vou tentar explicar quais as razões de ter sentido a alegria de emocionar as pessoas de gosto que me deram a honra de me ouvir; e de formar alunos que talvez me ultrapassem”. Observa, a corroborar a finitude expressa do som do cravo: “Os instrumentos de corda amplificam os sons, a suspensão destes no cravo parece (por efeito contrário) apenas evocar a coisa desejada”. Afirma que as peças lentas não devem ser tocadas ainda mais lentas no cravo, dado o fato da pouca duração dos sons. Recomenda que “os pais das crianças ou os responsáveis por elas tenham menos impaciência e mais confiança naquele que ensina (seguros de terem feito uma boa escolha)”.

Algo importante Couperin salienta em relação às indicações através de palavras exprimindo algum sentimento no início de uma peça, como Tendrement, Vivement, etc. “Espero que alguém tenha o cuidado de traduzi-las para proveito dos estrangeiros, que terão assim meios para julgar a excelência da nossa música instrumental”. O correr das décadas uniformizou um vocabulário referente a andamentos, sua flutuação e até expressividade, prioritariamente na língua italiana.

Jocosamente, observa: “É necessário ter os instrumentos bem cuidados. Sei que há pessoas para as quais esse aspecto é indiferente, pois tocam mal em qualquer instrumento”.

Em “L’Art de toucher le Clavecin”, o Autor teve o cuidado de pormenorizar-se sobre os dedilhados e exercícios preliminares: “Como até agora não apareceu um método que trata da boa execução, acredito ter o dever de nada omitir”.

François Couperin, em seu método, expõe inicialmente uma Allemande, mas oito Préludes são incorporados com as explicações devidas: “Os quatro primeiros Prelúdios podem servir a todas as idades, exceção que, para as crianças, deve-se dispensar manter todas as notas dos acordes extensos. Aos professores a escolha”.

Clique para ouvir, de François Couperin, os oito Prelúdios de “L’Art de toucher le Clavecin”, na interpretação do cravista norueguês Ketil Haugsand:

https://www.youtube.com/watch?v=5FV-UctnFZc&t=3s

Ketil Haugsand e eu nos apresentamos no Colóquio “Carlos Seixas de Coimbra” (2004), respectivamente em recitais de cravo e piano realizados na Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra durante as comemorações do tricentenário do notável compositor conimbricense.

Pioneiro, “L’Art de toucher le Clavecin” suscitaria no futuro em França tratados e métodos que serviram a gerações de pianistas. Mencionaria, entre outros, de Blanche Selva (1884-1925), os vários volumes do “L’enseignement de la Technique du Piano” (1916-1925) ; de Alfred Cortot (1877-1962), “Principes rationnels de la technique du piano” (1928) ; de Marguerite Long (1874-1966), “Le Piano” (1956).

On François Couperin’s “The Art of Playing the Harpsichord”, a didactic treatise written to guide harpsichord students performance practice. First published in 1716, the method in question addresses principles that are valid to this day with regard to the performer’s approach to the instrument, both in a technical and psychological sense.