Três poemas de Aloysius Bertrand inspirando Maurice Ravel
A música é poesia incorpórea.
Guerra Junqueiro (1850-1923)
O tríptico de Maurice Ravel (1875-1937), “Gaspard de la nuit“, é uma das obras mais significativas do repertório pianístico de todos os tempos. Ao buscar no Youtube gravações do notável pianista português Sequeira Costa, encontrei o seu registro fonográfico de “Gaspard de la nuit” inserido recentemente no aplicativo. Veio-me a ideia de compartilhá-lo com os leitores.
Estou a me lembrar de que em Paris estudei seis meses com o ilustre pianista e professor Jacques Février (1900-1979), que fora mestre também de Sequeira Costa dez anos antes. Février foi o intérprete da primeira audição em Paris do Concerto para a mão esquerda de Ravel. Disse-me ele que nenhum outro pianista tocava “Gaspard de la nuit” como Sequeira Costa, que compreendera o tríptico em sua essencialidade, e que não conhecera pianista com uma técnica tão impressionante como a dele. Estávamos no longínquo 1959.
Quantas não foram as interpretações do tríptico que ouvi ao longo das décadas? Tantas extraordinárias, outras boas. Contudo, ao ouvir presentemente a gravação de Sequeira Costa, tantos anos após uma primeira escuta, comungo a opinião do mestre Février. Necessário se faz traçar algumas considerações concernentes à “Gaspard de la nuit”, obra que também interpretei no Brasil e no Exterior, assim como outras duas composições referenciais de Ravel, “Miroirs” e “Le tombeau de Couperin”. Saliento que àquela altura, fronteiriça aos anos 1950-1960, estudei com Sequeira Costa os 24 Estudos de Chopin e algumas Sonatas de Beethoven.
Quantos não foram os compositores que encontrariam na poesia o veio inspirador para canções acompanhadas ao piano ou orquestra, óperas e seus enredos poéticos, ou, numa “abstração”, para piano solo a partir do conteúdo do poema? Franz Schubert (1797-1828), Robert Schumann (1810-1856), Gabriel Fauré (1845-1924), Hugo Wolf (1860-1903), Claude Debussy (1862-1918) e Camargo Guarnieri (1907-1993) são alguns dos nomes que compuseram lieds, mélodies ou canções para canto e piano, realizando o perfeito amálgama.
Apreender o conteúdo poético em sua abrangência e transformá-lo em outra categoria criativa na esfera da arte requer requisitos essenciais por parte do transpositor. Maurice Ravel, ao conhecer, por intermédio do insigne pianista e seu amigo Ricardo Viñez (1875-1943), o livro de Aloysius Bertrand (1807-1841), “Gaspard de la nuit”, debruça-se sobre três dos inúmeros poemas em prosa, Ondine, Le Gibet e Scarbo. A poética de Aloysius Bertrand, a integrar a literatura fantasmagórica, sofre forte influência do escritor romântico alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822) e do artista Jacques Callot (1592-1635), autor de desenhos e gravuras, tantos desses voltados a um mundo depressivo. A curiosidade de Ravel foi campo fértil para a apreensão, no caso de “Gaspard de la nuit”, de conteúdos românticos cinzentos.
Aos 17 de Julho de 1908, ano da composição do tríptico para piano, Ravel escreve à sua amiga Ida Godebska: “… De momento, a inspiração parece estar a fluir. Após longos meses de gestação, Gaspard de la nuit vai ver o amanhecer. Foi o diabo que veio, Gaspard, o que é lógico, uma vez que é ele o autor dos poemas”.
A primeira peça, Ondine, figura tão presente na imaginação de outros compositores, como Claude Debussy (8º Prélude do primeiro livro), flui na pena sensível de Ravel como sedutora a partir da estrofe do poema em prosa de Bertrand: “Murmurando uma canção, ela me suplica que coloque em meu dedo o seu anel para me tornar o esposo de uma Ondine e visitar com ela o seu palácio, tornando-me o rei dos lagos”. Ravel empregaria anteriormente em duas obras capitais, Jeux d’eau e Une barque sur l’océan (terceira peça de Miroirs), processos pianísticos muito próximos.
Le Gibet recebe, da parte do insigne pianista Alfred Cortot (1877-1962), uma observação essencial: “Seria difícil supor um contraste de sentimento mais impactante do que este que opõe, ao fluido encantamento anterior, o sinistro impressionismo do Gibet. Nessa peça, vemos Ravel se aventurar na interpretação musical das aterradoras imagens contidas no poema de Aloysius Bertrand com a mesma lucidez, a mesma pujança divinatória que ele emprega para definir as sensações mais familiares”. Tem-se como última estrofe do poema de Bertrand em prosa: “É o tilintar do sino nas muralhas de uma cidade sob o horizonte, e a carcaça de um enforcado avermelhada pelo sol poente”. O si bemol – parte central do teclado – a tilintar inflexível, dita a sombria evolução durante o transcurso de Le Gibet em sua impassibilidade, a configurar, ademais, uma das peças mais complexas para a interpretação. A obediência absoluta às indicações de Ravel, a não permitir qualquer desvio, é a possibilidade de uma interpretação adequada: “Sans presser ni ralentir jusqu’à la fin – Sourdine durant toute la pièce”. Sequeira Costa se mostra um mestre absoluto.
Scarbo, assim como Alborada del gracioso, quarta peça de Miroirs, estão entre as criações mais virtuosísticas do repertório raveliano. A figura de Scarbo é a de um anão diabólico e uma das estrofes de Aloysius o descreve: “O anão cresceu entre mim e a lua como o campanário de uma catedral gótica, com um sino de ouro a tilintar no seu chapéu pontiagudo!”. Sabe-se que, entre as intenções de Ravel, pairava a de compor algo mais difícil do que a dificílima Islamey de Mily Balakirev (1936-1910). O próprio Ravel definiria “Gaspard de la nuit” como de “virtuosidade transcendente”.
Clique para ouvir, na interpretação hors concours de Sequeira Costa, “Gaspard de la nuit”, de Maurice Ravel. A gravação foi realizada nos tempos dos LPs, com o atrito da agulha sobre o disco tantas vezes provocando ruídos:
https://www.youtube.com/watch?v=5C-cl8LgpcQ
Gaspard de la nuit, by the French poet Aloysius Bertrand, is a book of ghostly prose poems that had an influence on the poetic literature of the genre. Composer Maurice Ravel would write a triptych based on Bertrand’s poem, which would bear the same name, being one of the most challenging creations written for piano. The remarkable Portuguese pianist Sequeira Costa (1929-2019) made an anthological recording of Gaspard de la nuit.
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