A dimensão de Carlos Seixas

Não vale mais a identificação do “Scarlatti português”
atribuído a Carlos Seixas ou de outras colagens
pretensamente niveladoras de mérito ou de valor estético por aproximação.
Como todos os povos, Portugal tem os seus nomes próprios,
os cérebros e os artistas que nasceram na identidade das suas fronteiras.
José Maria Pedrosa Cardoso (1942-2021)
(“Carlos Seixas de Coimbra” – Ano Seixas Exposição Documental IUC-2004)

Como nascem as afinidades? Na minha adolescência recebi da notável pianista polonesa Felicja Blumental (1908-1991), que residiu durante algum tempo no Brasil, um LP com sonatas ibéricas, sendo que algumas de Carlos Seixas. Era, ao que se sabe, a primeira gravação ao piano das Sonatas do compositor conimbricense escritas para cravo. Sabedora da minha admiração após a audição do LP, ofereceu-me os dois volumes dos “Cravistas Portugueses” editados pela Mainz: B. Schott’s Söhne, 1935 e 1950, (vide blog: “Felicja Blumental (1908-1991) – A Permanência através de Horizontes desbravados”, 13/12/2008). No primeiro recital que apresentei em Portugal (14/07/1959), a convite do notável compositor Fernando-Lopes-Graça (1906-1994), iniciei a récita com duas Sonatas de Carlos Seixas, sendo que em 2004 gravaria em Mullem, na Bélgica, para o selo De Rode Pomp, dois CDs contendo 23 Sonatas do genial compositor.

O repertório original para cravo foi gradualmente sendo interpretado ao piano, como salientei ao longo dos anos neste espaço. Do pianoforte, cuja criação se deve a Bartolomeo Cristofori (1655-1731), ao piano moderno houve um longo caminho, beneficiado pela indústria do aço no século XIX, a propiciar uma estrutura em metal que permitia suportar a grande tensão das cordas doravante maiores, pois cruzadas e sensivelmente mais resistentes, sendo que a tábua harmônica dos pianos precedentes sofreria fortalecimento.

Duas posições fulcrais têm interesse, apontando para as composições escritas originalmente para cravo e, em sequência histórica, executadas ao piano. Macario Santiago Kastner, cravista e musicólogo mencionado no blog anterior, máxime especializado na música ibérica para cravo, escreve, subjugado pela interpretação das Sonatas de cravistas portugueses ao piano: “Eu fiquei encantado ao encontrar em Felicja Blumental a maravilhosa intérprete dos cravistas portugueses, e que interpreta essa música com o verdadeiro sentido estilístico, tocando com alma e compreensão do som e da proporção”. Sob outra égide, o ilustre musicólogo francês François Lesure (1923-2001) escreveria no encarte da minha gravação da integral de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) ao piano (De Rode Pomp, Bélgica, duplo CD): “O tempo do Barroco integrista passou, o uso dos instrumentos de época deixou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos. Um dos maiores biógrafos de Rameau – Cuthbert Girdlestone – defendeu com força a ideia de que a música de Rameau ‘ganha ao ser transferida para o piano’ e que sua escrita encontra neste instrumento, de uma melhor maneira, o seu dinamismo”. Endosso essa posição no que concerne igualmente às criações de Domenico Scarlatti e Carlos Seixas.

O saudoso amigo e ilustre musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso escreveria o encarte do CD a conter Sonatas de Carlos Seixas extraídas do álbum mencionado (Casa de Portugal-Banif). Apreendeu com maestria essencialidades do compositor nascido em Coimbra. O texto completo está inserido em meu blog (Carlos Seixas – 1704-1742 -, de 22/10/2010).

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em dó menor (16), na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=hzCdNgCwHUg

“O nome de Carlos Seixas é um dos mais registrados na discografia portuguesa e corresponde a um compositor que viveu apenas 38 anos na primeira metade do século XVIII. No seu tempo viviam nomes cimeiros do barroco musical, tais como A.Vivaldi (1678-1741), J-P, Rameau (1683-1764), J.S.Bach (1685-1750) e G.F.Haëndel (1685-1759). Estes compositores não se encontraram pessoalmente – à exceção de Scarlatti e Seixas -, mas suas obras não passaram despercebidas e serviram mesmo de modelo mútuo. Provavelmente, sem conhecer aqueles nomes e provavelmente número reduzido de suas obras, Carlos Seixas nasceu e estudou em Coimbra. À sombra da Sé e da Universidade, teve apenas por mestres seu pai, o organista titular proveniente de Tomar, e Fr. Nuno da Conceição, um trinitário lisboeta, lente de música e Mestre de Capela da Universidade. Herdando o cargo do pai aos 14 anos, emigrou pouco depois para Lisboa, aos 16 anos, tornando-se organista da Igreja Patriarcal. Sua troca do Mondego pelo Tejo só se pode explicar pela sua ânsia de horizonte: a música, como outras artes, estava a fazer de Lisboa uma grande capital europeia. Ali haviam chegado já vários músicos italianos, entre eles Domenico Scarlatti, o famoso mestre da capela papal, que trocou Roma por Lisboa, certamente à custa de condições salariais de exceção, graças ao poder mecenário de D.João V e, indiretamente, ao ouro do Brasil. O jovem Seixas chegou, convenceu os melhores, assimilou as correntes estilísticas da Europa e venceu como executante e compositor. Barbosa Machado, que o conheceu de muito perto, fala de uma produção excepcional, que se perdeu na maioria, certamente devorada pelo terremoto de 1755. Mesmo assim, Carlos Seixas é um dos maiores vultos do período barroco português e um dos mais notáveis na história da música em Portugal. Para além de três significativas composições para orquestra e algumas excelentes peças corais, conhecem-se dele mais de uma centena de sonatas para instrumento de tecla. Algumas dessas sonatas, também chamadas tocatas, parecem adequadas ao órgão; outras, todavia, têm claramente carácter de música para outros teclados. Atribui-se habitualmente esta produção de Seixas ao cravo, instrumento que o jovem compositor deve ter praticado e ensinado na sociedade aristocrática de Lisboa; contudo, o carácter expressivo de algumas daquelas sonatas parece sugerir o clavicórdio ou até o fortepiano, como defende José López-Calo. De resto, as sonatas de Carlos Seixas, longe de dependerem, ou mesmo imitarem, a vasta e preciosa produção de Domenico Scarlatti, apresentam geralmente um estilo personalizado que, acusando de certo modo a tradição organística ibérica, possui características inovadoras, sobressaindo não apenas o pendor para o estilo galante de muitas delas, mas sobretudo a sua dimensão de sonata em vários andamentos, com a inclusão frequente do minueto”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em sol menor (50), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=uIUhQc_giNs

Santiago Kastner insere em seu livro “Carlos Seixas” (1947) a posição de José Mazza (1771-1797), italiano ou descendente, que, em seu “Dicionário Biográfico de Músicos Portugueses”, menciona  informações que Mazza recebeu de coetâneos de Seixas, seja mesmo pela oitiva. A edição do Dicionário de 1944-1945 tem notas e prefácio do P. José Augusto Alegria (1917-2004). Kastner previne o leitor: “Dada a ascendência italiana de Mazza, não é crível as suas notícias pecarem por xenofobia ou por patriótica louvaminhice portuguesa, que em face dos estrangeiros sempre deixa transluzir essa doença dos complexos de inferioridade”. Tem interesse o que Mazza escreve sobre aquilo que teve conhecimento a respeito de Scarlatti ao ouvir Seixas, dezenove anos mais novo: athé ao presente não teve Portugal outro organista tão famoso, quis o Sereníssimo senhor Infante D.António que o grande Escarlate, pois se achava em Lisboa no mesmo tempo lhe desse alguma Lição regulandosse por aquela idêa errada de que os Portugueses por mais que fação nunca chegão a fazer o que fazem os Estrangeiros, e mandou ao dito; este apenas o vio por as mãos no Cravo conhecendo o Gigante pelo dedo lhe disse = Vossa mercê hé que me pode dar lições, e encontrandosse com aquele Senhor lhe disse = V.ª Alteza mandou-me examinar, pois saiba que aquele sujeito hé dos maiores Professores que eu tenho ouvido. Kastner observa com acuidade que a diferença “entre Scarlatti e Seixas não era tão grande como geralmente se supõe”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em lá menor (71), na interpretação de J.EM. no Convento N.ª Senhora dos Remédios em Évora, Portugal. Gravação ao vivo:

https://www.youtube.com/watch?v=BP3Aic2bvac

Tendo percorrido ao piano parte substancial do repertório barroco de J.S.Bach (indispensável, na verdade), G.F.Haendel, Scarlatti, e gravado as integrais de J-P Rameau (1683-1764) e das “Sonatas Bíblicas” de Johann Kuhnau (1660-1722), assim como o álbum duplo com Sonatas de Carlos Seixas, tenho a mais absoluta certeza de que o compositor coimbrão é um dos grandes autores para teclado no período, sendo que o quase absoluto descaso por parte de governantes e o pouco interesse de legião de intérpretes têm razões precisas ou, talvez, “que a própria razão desconhece”.

No próximo blog abordarei algumas diferenças no tratamento técnico-tecladístico e aspectos formais concernentes realizados por Scarlatti e Seixas. Aspectos esses percebíveis no programa que Regina e eu escolhemos, interpretando os dois grandes compositores nesse Quarto Encontro.

Some aspects concerning Carlos Seixas, a major composer of the Portuguese Baroque and author of 105 published sonatas, while hundreds of other sonatas were consumed by the earthquake of 1755.