Discordâncias que fazem pensar

Acho que estamos passando por tempos excepcionalmente terríveis.
Eles sempre são terríveis, mas, no momento estão muito terríveis.
Estão piores que o habitual.
Há guerras acontecendo por todos os lados,
líderes autoritários surgiram em vários países nos últimos anos.
Woody Allen
(“Entrevista”)

Encontrei o amigo Marcelo na feira de sábado no Brooklin-Campo Belo. O prazer de encontrá-lo se prolongou num curto em uma das cafeterias do bairro. Sabedor das minhas gravações no Exterior lançadas em CDs europeus e do desaparecimento progressivo desse veículo, considerou as transformações dos vários outros processos fonográficos que foram desativados, à medida que um novo surgia no mercado. E veio a pergunta: legados permanecem? A simples observação me fez explanar alguns aspectos, que transmito neste post ao leitor.

Em blog bem anterior publiquei um post sobre “A problemática do legado” (27/04/2019), no qual o notável filósofo português Eduardo Lourenço (1923-2020) dialogava com o arquiteto Álvaro Siza Vieira (1933-) a respeito do legado e a sua permanência histórica ou não. Na amistosa conversa, Eduardo Lourenço observa: “O problema é que, consciente ou inconscientemente, escrevemos como se fôssemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós não escreveríamos nada de realmente grandioso. O que os homens querem é que aquilo se transfigure numa espécie de estátua, que se pode tocar, viver e permanecer através dos séculos. Hiroshima existia e foi destruída em nove segundos. É como se fossem feridas que a Humanidade faz a si mesma, não é? E essas sem reparação. Porque foram destruídas e não podem ser reconstruídas de nenhuma maneira. Aquilo que de mais belo há na humanidade é que nós somos submetidos às mesmas forças que regem realmente o mundo, porque é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”.

Recentemente li uma entrevista de Woody Allen a Alessandra Monterastelli (Folha ilustrada, 9/9/2024) sob o título “Quando eu morrer, podem jogar meus filmes no mar, diz Woody Allen, aos 88 anos”. O cineasta tece comentários a respeito do seu quinquagésimo filme, “Golpe de Sorte em Paris”. Durante a entrevista desfaz o mito do legado: “Eu não sou uma pessoa muito ligada a legados. Sempre que faço um filme, nunca mais o vejo novamente. Fiz meu primeiro filme em 1968 e desde então, nunca mais o vi”. O nosso grande pianista Nelson Freire (1944-2021) admitiria em entrevista, décadas atrás, que após um disco seu ser lançado, nunca mais o ouvia. Continua o cineasta: “Depois que termino meus filmes, não me importo mais com eles. E tenho 88 anos, logo estarei morto, então não me importo nem um pouco com meu legado, ele não significa nada para mim. Se, quando eu morrer, pegarem meus filmes e os jogarem no oceano, ou queimarem, não me importa. Estarei morto. Quando você está morto, nada importa. Um legado é uma fantasia que as pessoas têm, é como os religiosos que acreditam na vida após a morte. Mas você não existe, então quem se importa com meus filmes? Eu não”. O comentário de Woody Allen faz-me lembrar do “Prefácio à segunda edição” de “A velhice do Padre Eterno”, do notável escritor português Guerra Junqueiro (1850-1923): “Um livro atirado ao público equivale a um filho atirado à roda. Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte. Que seja feliz é o que eu lhe desejo; mas, se o não for, também não verterei uma lágrima”.

Antolha-se-me que a posição de Woody Allen é ambígua, mormente pela enxurrada noticiosa a envolver o cineasta em um possível estupro de uma menina de sete anos, sua enteada, filha da atriz Mia Farrow. A investigação concluiria que não houve abuso, sendo que Woody Allen sempre negou a ocorrência. Deu-se, a partir dos noticiários que estavam em curso durante as investigações, o cancelamento do cineasta por parte de considerável parcela dos cinéfilos e da opinião pública em geral. A irreverência em tantos filmes de Wood Allen, somada ao desinteresse da indústria cinematográfica para com ele pelo caso, levou-o a considerar: “Se é para ser cancelado por uma cultura, esta é a cultura”.

Artistas, literatos, cientistas que constroem um legado de valor habitualmente o fazem sabedores de que o post mortem preservará a opera omnia construída ao longo e que, na realidade, é uma das razões primordiais das suas existências. Para o significativo cineasta ficaria a mágoa desse olvido, motivado pela repercussão do rumoroso processo e da mínima afluência ao seu último filme, “Golpe de sorte em Paris”, fato que deve ter calado fundo. “Jogar no mar” não elimina os efeitos junto à opinião pública, sempre ávida de notícias a envolver personalidades. Edificação e destruição de Mitos têm efeitos bombásticos na mente do povo. Desprezar o rico legado é uma forma de protesto e Woody Allen possivelmente se equivoca, pois mesmo jogada ao oceano a criação de valor tem o poder de navegar até um porto seguro.

O desdém, acredito que aparente, para com a obra cinematográfica completa, sob aspecto outro, demonstra algo preocupante em se tratando do brilhantismo incontestável de Woody Allen. Artilharia contra tudo e contra todos, destruindo aquilo que foi essencial em sua vida e que o levou à glória, pode tê-lo desviado do essencial. A luta solitária do homem contra parte da sociedade que o denegriu, embate solitário, só dele, deveria poupar a obra, pois essa tem a aura intocável. “Jogar no mar” não teria o mesmo significado da célebre frase francesa “après moi, le déluge?” O crítico de arte e poeta norte-americano Peter Schjeldahl (1942-2022) já não apregoava que “A morte não é uma escultura, que se olha de todos os lados. É uma pintura, tem de ser encarada de frente porque o avesso nos é vedado”. Tanto as criações do notável Guerra Junqueiro “não foram jogadas à roda” e o escritor continua a ser visitado pelos leitores e pesquisadores, assim também a filmografia de Woody Allen não morrerá afogada. Ela já figura no panteão das grandes criações do gênero.

Quanto à duração dos legados, nada sabemos. Eduardo Lourenço tem lá suas razões.

On the legacy. Cultivate it or despise it. Reflections after an interview with the illustrious filmmaker Woody Allen.