Organização: Oswaldo Giacoia Junior
Com efeito, para Nietzsche, como para o nosso Machado de Assis,
alguns pensadores nascem póstumos:
a força de seu legado é privilégio dos pósteros.
Oswaldo Giacoia Junior
Sem a música a vida seria um erro
Friedrich Nietzsche
O conhecimento das figuras luminares e perenes se dá essencialmente através das suas obras. Biografias têm importância na medida em que penetram no âmago da trajetória existencial de um autor, pertença ele às mais variadas áreas. Contudo, é através da importância do legado que o personagem ilustre se pereniza.
Oswaldo Giacoia Junior (1954-) é um dos mais relevantes especialistas em filosofia, máxime concernente às obras de Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger e Augusto Comte. Professor titular aposentado do Departamento de Filosofia (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular do programa de pós-graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Oswaldo Giacoia Junior é autor de várias obras referenciais em sua área de atuação. Teve a grata ideia de organizar precioso livro ao selecionar textos basilares de Friedrich Nietzsche (1844-1900) em “O leitor de Nietzsche” (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2022).
A seleção de segmentos fulcrais extraídos das obras de Nietzsche é precedida por esplêndida introdução do organizador (93 pgs) e de uma bibliografia ampla, antecedida de explicações: “Breve nota histórica sobre a edição crítica das obras completas de Friedrich Nietzsche ‘KGW’, a Edição Colli-Montinari”. A longa introdução do autor e organizador do livro é igualmente didática e conduz o leitor a entender os textos por ele selecionados de maneira clara e objetiva, tornando o percurso dos escritos de Nietzsche reveladores. Os 18 textos inclusos no livro em pauta proporcionam uma visão do pensar do filósofo alemão, a servir de estímulo ao provável aprofundamento do leitor. A salientar a tradução criteriosa realizada por Giacoia.
Mercê do espaço a que me proponho no blog, selecionei dois textos, que se relacionam mais especificamente à relação entre Nietzsche e Richard Wagner (1813-1883). O filósofo Nietzsche foi igualmente músico, pianista e compositor que, apesar de longe da notoriedade como notável pensador, compôs obras de interesse, cerca de 70 criações para piano, canto e piano, orquestra e coral. Tendo uma boa formação pianística, Nietzsche tinha em seu repertório criações de Bach, Haendel, Haydn, Mozart, Beethoven e Chopin. Gostava imenso do compositor polonês. Após a crise mental que o acometeu em 1889, e mesmo posteriormente, internado em uma clínica psiquiátrica em Iena com as atividades cerebrais comprometidas, não deixou de tocar piano e de apreciar Chopin.
Os dois textos de Nietzsche incluídos no livro em apreço, “Considerações Extemporâneas: IV. Richard Wagner em Bayreuth” e “O caso Wagner”, bem posicionam a crítica de Nietzsche a Wagner. Todavia, em dois outros, “Crepúsculo dos Ídolos” e “Ecce Homo”, os segmentos escolhidos por Giacoia não personalizam o compositor da Tetralogia, mas são fundamentais para a apreensão das duas figuras exponenciais. Outras obras filosóficas de Nietzsche também fazem referências à música.
Quando admirador da obra de Wagner, Nietzsche apresentou uma sua composição a Hans von Bülow (1830-1894), ex-marido de Cosima, filha de Liszt e doravante casada com Wagner. Bülow, pianista, professor e regente de várias óperas de Wagner, simplesmente abominou com palavras duras a composição de Nietzsche, “Manfred-Meditation”, criação gestada durante alguns anos, plena da influência de Schumann (Abertura Manfred, op. 115) e de Wagner, mas que, apesar do emprego de processos wagnerianos advindos certamente da grande admiração pela sua obra, tem interesse. O episódio teria consequências no que tange ao respeito àquele que até então era idolatrado. François Noudelmann entende que os ataques de Nietzsche contra Wagner “implicam uma crítica em três níveis: filosófico e histórico, estético e político, psicológico e fisiológico” (vide blog: “Le toucher des philosophes – Sartre, Nietzsche et Barthes au piano” 20/10/2012).
Clique para ouvir, de Nietzsche, “Manfred-Meditation” 1872) para piano a quatro mãos, na interpretação do duo John Bell Young e Thomas Coote:
https://www.youtube.com/watch?v=vcvINsq1KSw
As críticas de Nietzsche a Wagner se acentuaram com o passar do tempo. Oswaldo Giacoia comenta: “Para Nietzsche, a conclusão da tetralogia do Anel de Nibelungo com o Parsifal reconstitui a saga do próprio Wagner, que é também a rendição total da obra de arte aos ideais ascéticos, um testemunho em grande estilo da sublimação da ascese na moderna cumplicidade velada entre a ciência, a moral utilitarista, a política e a arte operística (arte da recreação), todas elas figuras espirituais do niilismo, da nostalgia pelo nada, do cansaço e da impotência ressentida”. O “Anel de Nibelungo” corresponde a quatro óperas essenciais de Wagner, gestadas de 1848 a 1874: “Ouro do Reno”, “Valquíria”, “Siegfried” e “Crepúsculo dos Deuses”. Entendia Nietzsche um totalitarismo nas criações monumentais de Wagner e a teatralidade exacerbada. Todavia, alguns dos processos escriturais wagnerianos, como o cromatismo e as modulações “infinitas”, corroboraram o advento do atonalismo no início do século XX.
Clique para ouvir, de Wagner, “Morte de Isolda”, na transcrição de Liszt da ópera “Tristão e Isolda”, na excelsa interpretação de Antonieta Rudge (1885-1974):
https://www.youtube.com/watch?v=Je4FdUW6xpg&t=10s
Da confessa admiração ao oposto, Nietzsche se posiciona. Nas “Considerações Extemporâneas: IV. Richard Wagner em Bayreuth” há a nítida admiração de Nietzsche, potencializada pela sua presença no ato da colocação da pedra fundamental na colina de Bayreuth, em Maio de 1872, daquele que viria a ser um templo de arte voltado às representações das óperas de Wagner. Nietzsche o louva pelo “que ele é e o que ele será”. O templo de arte em Bayreuth, após inúmeras tratativas para a sua edificação, foi inaugurado em 1876 com a apresentação da Tetralogia do “Anel de Nibelungo”. O teatro construído para as apresentações de suas obras, o Festspielhaus de Bayreuth, perpetua-se até os dias atuais com afluxo intenso, a reunir cultores da música e camadas privilegiadas da sociedade.
Em “O caso Wagner” Nietzsche é impiedoso e admirador: “Em Wagner, no início encontra-se a alucinação: não de sons, mas de gestos. Para estes, ele busca então a semiótica sonora. Se queremos admirá-lo, examinemo-lo em ação aqui: como ele separa, como ele conquista pequenas unidades, como ele as anima, impele para fora, torna-as visíveis. Mas nisso se esgota a sua força: o resto não presta para nada”. Faz a crítica a determinadas criações de Wagner: “O que importa a nós a provocativa brutalidade da abertura de Tannhäuser? Ou do ciclo das Valquírias? Tudo o que se tornou popular da música de Wagner, também fora do teatro, é de gosto duvidoso e corrompe o gosto. A marcha de Tannhäuser me parece suspeita de pieguice; a abertura para o Holandês Voador é um barulho para nada; o prelúdio de Lohengrin fornece o primeiro exemplo, apenas demasiado capcioso, apenas demasiado bem-cunhado, de como também com a música se hipnotiza (-não aprecio toda música cuja ambição não vai além de convencer os nervos). Mas, deixando de lado o Wagner hipnotizador e pintor de afresco, existe ainda um Wagner que coloca ao lado pequenas preciosidades: nosso maior melancólico da música, cheio de olhares, ternuras e palavras de consolo, que ninguém lhe antecipou, o mestre nos sons de uma nostálgica e sonolenta felicidade. [...] Um léxico das mais íntimas palavras de Wagner, autênticas coisas curtas de cinco até quinze toques, autêntica música, que ninguém conhece. [...]. Wagner tinha a virtude dos décadents, a compaixão”.
Teria sido após sua estadia em várias cidades do Mediterrâneo ― Gênova, Roma e Veneza ― que a transformação se dá ao ouvir os compositores italianos. O “bel canto” o seduz. A ópera do compositor francês Georges Bizet (1838-1875), “Carmen”, as melodias do autor e toda a encenação causaram forte impressão em Nietzsche. Poderia parecer paradoxal tal escolha, se comparada for a enorme dimensão de Wagner com as composições de Bizet. As várias apresentações de “Carmen”, na Itália, Espanha e França, tiveram a presença do admirador Nietzsche.
O que reza a história, apesar da dualidade das posições de Nietzsche a respeito de Wagner, é que ambos são rigorosamente extraordinários quanto aos legados oferecidos aos pósteros em suas áreas fulcrais. A História tem exemplos de expressivas figuras em todas as áreas que tiveram sérios antagonismos com seus pares.
Recomendo vivamente “O leitor de Nietzsche” do insigne filósofo Oswaldo Giacoia Junior. Indispensável a leitura da “Introdução”, que abre as mentes para a compreensão maior do grande pensador alemão. Giacoia soube, nessa cuidadosa seleção, apreender os várias e admiráveis caminhos do pensar de Nietzsche. Se abordei os capítulos a envolver Wagner e Nietzsche, a causa principal foi assinalar igualmente a importância da música para o pianista e compositor Friedrich Nietzsche, algo extraordinário na opera omnia do pensador alemão, pois a abranger duas das mais importantes fontes do saber, a música e a filosofia. Boris de Schloezer (1881-1869), escritor e musicólogo, irmão de Tatiana de Schloezer, primeira esposa de Alexandre Scriabine (1872-1015), elencou, em sua biografia sobre o notável compositor russo, alguns dos títulos voltados à filosofia na biblioteca do seu ex-cunhado (1902-1903), destacando “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche. Saliente-se que o ilustre músico Richard Strauss (1864-1949) compôs um Poema Sinfônico (1896) após a leitura de “Assim falou Zaratustra”, obra maiúscula do compositor teutônico.
Wagner e Nietzsche continuam a ser cultuados. Duas figuras maiores em suas respectivas áreas. Para ambos, “sem a música a vida seria um erro”. A perenização se dá pelo legado.
Clique para ouvir, de Friedrich Nietzsche, “Hymnus an das leben” (Hino à vida), na interpretação da Orchestra do Conservatório de Como e do Coral da mesma instituição, sob a regência do Maestro Domenico Innominato:
https://www.youtube.com/watch?v=FIOIUlDB5yU&list=RDnZ-OQpgNoJs&index=2
The book “O leitor de Nietzsche” (The Reader of Nietzsche), edited by Oswaldo Giacoia Junior, retired professor of the Department of Philosophy at the State University of Campinas (Unicamp) and professor of philosophy at the (PUCPR), specialist in Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger and Auguste Comte, is of significant importance. Of particular interest is the magnificent introduction (93 pages) and the selection of 18 texts extracted from Nietzsche’s various works. I focused on those referring to the philosopher and the composer Richard Wagner.
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