Aspectos comparativos nas linguagens pianísticas
Pessoalmente, estou ansioso por encontrar tudo o que me falta
e angustiado por terminar qualquer coisa, a qualquer custo!
É uma doença curiosa que Leonardo da Vinci tinha.
Só que, ao mesmo tempo, ele era um génio. Isso facilita muitas coisas.
Eu me contento em ter uma paciência incansável,
o que, como dizem, às vezes pode substituir o gênio.
Claude Debussy (1862-1918)
Desejo ação, quero saciar-me dessa ação.
A ação é criação – criação de algo novo – diferenciação – individualização.
Afasto-me de algo, como oposição a isso, como diferenciação,
como nova individualidade, – sacio-me dessa atividade,
sinto felicidade e, novamente, caio na indiferença.
Alexandre Scriabine (1872-1915)
Dos seis artigos que escrevi para os Cahiers Debussy, publicação do “Centre de Documentation Claude Debussy”, Paris, “Quelques aspects comparatifs dans le langage pianistique de Debussy et Scriabine” foi o primeiro e data de 1983 (nº7). Apresento neste espaço uma síntese do artigo.
Despertou-me vivo interesse o fato de três respeitáveis musicólogos, V. Fédorov, J. Kremlev e Edward Lockspeiser, terem sugerido, no colóquio “Debussy et l’évolution de la musique au XXème siècle”, organizado em Paris pelo Centre Nationale de Recherche Scientifique (C.N.R.S.) em 1962, pesquisas relacionadas às relações entre os dois compositores. Foi naquela década que paulatinamente incorporei obras dos dois notáveis músicos no meu repertório: de Debussy, a edificação da opera omnia para piano (1982) e, progressivamente, parte considerável da criação de Scriabine, como a integral dos Estudos e dos Poemas, duas das dez Sonatas e obras avulsas. À medida que penetrava nessas composições para piano do maior quilate, mais encontrava determinados traços que, sob égides específicas, poderiam estabelecer comparações entre as linguagens dos dois compositores.
Primeiramente, os caminhos composicionais de Debussy e de Scriabine. Das primeiras composições até o início do século XX, Debussy é bem tradicional. Mas, a partir de D’un cahier d’esquisses e das Estampes (1903), e dos dois cadernos de Images (1904-1907), notam-se preocupações voltadas à busca de sonoridades diferenciadas, o interesse maior pelas baixas intensidades – aproximadamente 80% da obra para piano entre p e pp -, a captação de aspectos da natureza como Reflets dans l’eau, a passagem do vento nos Préludes (1909-1912), Le vent dans la plaine ou a sua história Ce qu’a vu le vent d’ouest, movimentos que podem ser sintetizados em Mouvement (1904), do 1º caderno de Images, ou no Estudo Pour les huit doigts (1915). A poética está sempre presente na obra de Debussy. Não escreveria em Outubro de 1915 ao regente Bernardo Molinari: “Que beleza há na música ‘por si só’, aquela que não é um preconceito, uma busca para surpreender os chamados ‘diletantes’… A emoção total que ela contém é impossível de se encontrar em qualquer outra arte, não é verdade? Estamos ainda na ‘marcha da harmonia’, e raros são aqueles a quem basta a beleza do som”, referindo-se às “amarras” da harmonia, sistema que trata da formação e encadeamento dos acordes obedientes à tonalidade. A célebre Clair de lune (1990) e Les terrasses des audiences du clair de lune (1912), logicamente diferentes no tratamento, têm poética bem próxima. A atitude frente à poesia esteve presente desde o início da juventude madura e a ligação de Debussy com os poetas do passado e aqueles com os quais conviveu propiciou a inserção de precioso material nas suas criações destinadas ao canto e piano. Em 1915, ao compor En Blanc et Noir para dois pianos e os extraordinários 12 Études, Debussy se apresenta mais hermético e abstrato e observa a respeito dos Estudos: “escrevi como um louco, ou como aquele que deve morrer no dia seguinte”, em carta ao seu editor Durand. Não obstante, é possível reconhecer, em criações tardias para piano, traços da sua linguagem musical bem anterior, a salientar sempre essa busca da “beleza do som”.
Duas composições feéricas, L’Isle Joyeuse (1904), de Debussy, e Poème Tragique (1903), de Scriabine, duas origens distintas. Contudo, apesar das diferenças escriturais, fazendo parte do contexto de um período.
Clique para ouvir de Claude Debussy, L’Isle Joyeuse na interpretação de J.E.M., em gravação ao vivo na Concertzaal Parnassus em Gent, Bélgica (Fevereiro de 2009):
https://www.youtube.com/watch?v=58P13OaRfxM&t=17s
Clique para ouvir de Alexandre Scriabine, Poema Trágico, op. 34, na interpretação de J.EM.,
https://www.youtube.com/watch?v=K0k7wUwHAn8&t=1s
Os caminhos de Scriabine foram bem compartimentados e não tiveram o fluxo detectável durante basicamente todo o percurso composicional de Debussy. De uma fase plena de um romantismo intenso, tributo sensível ao legado de Chopin inicialmente e, numa fase intermediária, ao de Liszt, Scriabine compõe, a partir do início do século XX, essencialmente movido por uma amálgama do pensamento místico-filosófico, obras que se encaminham sempre mais acentuadamente para os seus aprofundamentos extramusicais, o que faz com que basicamente não se possa entender as criações tardias como sendo do mesmo compositor. Hugh Mac Donald afirma que “a distância entre Prometheus (1910) e a Primeira Sinfonia (1899-1900) é incomensurável e mal se pode reconhecer como obras de um mesmo compositor” (“Skrjabin”, London, 1978). Marina Scriabine, filha do compositor, escreve: “É preciso compreender que nós não estamos diante, em se tratando de Scriabine, de duas atividades distintas e paralelas, de uma parte a criação musical, de outra a especulação filosófica. Existia uma experiência única, o nascimento, no seio de uma tensão espiritual contínua, de um pujante desbordamento criador que se manifestava nas formas musicais, poéticas ou filosóficas, sendo que nenhuma era a tradução ou a adaptação da outra, mas que se apresentavam como signos polimorfos de uma realidade interior.” Scriabine costumava dizer: “Eu não vivo que no futuro”.
Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Vers la Flamme op. 62 (1912), na interpretação de J.E.M. Vers la Flamme é exemplo transparente do estágio composicional de Scriabine imbuído dessa apreensão místico-filosófica. Gravação realizada ao vivo no Convento Nª Senhora dos Remédios, em Évora, Portugal, 2017:
https://www.youtube.com/watch?v=wdgfEnv51MI
Nos 12 Études, Debussy é hermético e abstrato. Escreve ao seu editor Jacques Durand, pouco antes de finalizá-los: “Esteja certo de que meus dedos param às vezes diante de certas passagens. Sinto necessidade de retomar a respiração como após uma ascensão… na verdade, esta música paira sobre os cimos da execução! Haverá belos recordes a alcançar… Não duvide, Jacques, eles contêm ardente rigor”.
Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude Pour les huit doigts” (1915), na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=D85tz0ibqRk&t=2s
Em relação à terminologia destinada à compreensão do conteúdo musical, Debussy e Scriabine, sem se conhecerem, empregam termos ou frases praticamente com o mesmo sentido. No Cahier Debussy mencionado, inseri uma tabela que bem exemplifica essa proximidade terminológica:
À medida que as linguagens de Debussy e Scriabine se revelam em nível pianístico e também orquestral, percebe-se que, por coincidência, a dinâmica, as mudanças de movimento, a articulação e o timbre, resultando na «beleza do som», explicados por uma certa terminologia, conferem à textura musical (quase sempre observada, nas análises tradicionais, como melodia, modalidade, tonalidade, harmonia e ritmo), uma dimensão que ainda demandará pesquisas aprofundadas.
The article “Some Comparative Aspects of Debussy and Scriabin’s Piano Languages” was published in Cahiers Debussy (No. 7) in 1983, a publication of the Centre de Documentation Claude Debussy, Paris.
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