Quando Apropriações Estranhas Criam Distorções
O espaço e o tempo são formas da criação,
sensações – seu conteúdo…
Eu quero criar, e pela vontade, criar o múltiplo,
o múltiplo no múltiplo e o único no múltiplo (o não-eu e o eu)…
Eu desejo a ação, eu quero me saciar dessa ação.
A ação é criação – criação de novo – diferenciação – individualização…
Criar alguma coisa significa criar tudo.
Alexander Scriabine
Tem-se em nosso país o hábito, em certas camadas da sociedade, da apropriação de determinados termos pertencentes às mais variadas áreas, “institucionalizando-os”. Revela esse uso, por parte daqueles que utilizam vocábulos reinterpretados, a pobreza quanto ao conhecimento do vernáculo e a necessidade de evidenciar a apreensão dos modismos. Os integrantes dessas categorias reverenciam pares e outros personagens, a haver reciprocidade.
Palavras de áreas específicas são por analogia transplantadas para determinado contexto, e aqueles que as utilizam com outras roupagens exploram ad nauseam o vocábulo incorporado. O significado tradicional do termo, agora fantasiado com tantos panos estranhos, passa a ter doravante seu sentido original negligenciado. Outrora estaríamos diante de heresias, que apenas não ocorriam pelo devido respeito à linguagem de determinado povo. Substantivos tornam-se verbos, palavras características de outras áreas travestem-se em vestimentas multiaplicáveis. Nestas últimas semanas, os vocábulos tóxico (adjetivo) e toxidade ou toxidez (substantivos) passaram a ser empregados por um sem número de economistas repletos de “sabedoria”, no desiderato de explicar a crise que se alastra pelo mundo. Anteriormente, os mesmos senhores utilizaram “artigos podres” para designar outra anomalia. A aplicação é bem vista pelos pares, e entrevistadores e entrevistados não se cansam de repetir as “palavras-chave”. Todos falam com seriedade e o ouvinte menos atento concorda como se o oráculo lá estivesse. Os vocábulos ficam incorporadas ao léxico nessas novas interpretações que lhes são “outorgadas”. Também outros, como alavancar, inicializar, laborista, grade (para designar partitura, cerceando de fato o elevado significado original), assim como plugar e deletar servem para “enriquecer” textos e discursos nas mais distintas áreas. À maneira de um camaleão, as mais diversas colorações surgem a partir das palavras eleitas. O trinômio verbo-substantivo-adjetivo funde-se numa parafernália sem fim. Entrevistados tornam-se os arautos da língua-mãe em ebulição estranha. Sem esquecer de quantidade de termos em inglês, massacrantemente expostos no original, este pertencente ao universo globalizado. Se fizerem estatísticas quanto à utilização nos últimos meses, em todos os meios de comunicação, dos vocábulos commodities e spread, como meros exemplos, certamente ficaríamos estarrecidos.
Há cerca de um mês fui ao lançamento de um livro. Apresentaram-me a um cidadão, figura destacada em firma de publicidade e marketing. Após poucos segundos de amenidades próprias a essas circunstâncias, incorpora-se ao pequeno grupo um seu companheiro de trabalho, por ele introduzido na conversa como criativo da empresa. Perguntei-lhe: “criativo”? Sim, respondeu-me. Silenciei. Semanas após, ouvindo pelo rádio um dos noticiários matinais, exibiram trechos de longa entrevista com outro profissional de publicidade e marketing, anunciando-o como “O” criativo de determinada empresa. Reiteradas vezes o especialista focalizado referiu-se a si próprio, com ênfase e galhardia, como “criativo”.
Consultando o célebre Dicionário Moraes da Língua Portuguesa, de 1889, tem-se “Criador, a, substantivo. O que dá o ser tirando do nada. Deus, o criador do mundo. § (Por ext.) O inventor, o primeiro autor.” O Caldas Aulete (1968, 5º edição) completa: “Inventivo, um talento criador. Do latim Creator.” No termo “Criar”, o Moraes contempla “v. trans. verifica-se entre outras aplicações: criar um gênero literário”, e mais: “§ Criar um papel; diz-se do ator que dá a um papel que representa pela primeira vez uma interpretação original e feliz”.
Apesar de propagada a palavra entre publicitários, acredito estejamos diante de uma atitude a configurar apropriação indevida. À força da repetição continuada, mais e mais o termo “criativo” é atribuído a uma categoria de profissionais que não obstante o grande mérito de tantos deles, deveria ater-se aos vocábulos de suas reais qualificações, ou seja, especialistas em marketing e propaganda, ou ainda diretor de criação, editor de arte, gestor, redator, como alguns pouquíssimos exemplos. Digo apropriação indevida, pois entendo como um capitis diminutio interpretativo dessa palavra a sua aplicação como substantivo, o que pretensamente nivelaria os transformadores do termo criativo aos luminares da própria criação. Leonardo da Vinci, Beethoven, Goethe, Charles Chaplin, Picasso, Debussy, Auguste Rodin, apenas para situar poucas figuras paradigmáticas, foram absolutamente criativos.
O publicitário, ao atribuir-se o vocábulo, não estaria minimizando a própria qualidade de reflexão, ao considerar-se acima da conceituação sacralizada das palavras criação e criador?
Determinadas religiões têm Deus como Criador, e a natureza, o homem, a mulher teriam surgido como criações decorrentes. O extraordinário compositor russo Alexander Scriabine (1872-1915), ao se considerar um criador, imbuíra-se conscientemente do fato. Escreveria sobre o grande Eu (ato de compor) a contrapor-se ao pequeno eu do cotidiano que lhe era necessário. O idealismo fê-lo sentir-se um Messias. Nesse mister, foi caso isolado, mas suas concepções a respeito da criação influenciariam decididamente a evolução de sua escrita musical voltada à ascensão de toda a humanidade em direção à comunhão com o Cosmos.
Já estava a pensar no presente post, quando encontrei o dileto amigo Luca Vitali, excelente artista plástico ( www.lucavitali.com ). Trocamos idéias sobre o tema. No mesmo dia, Luca enviou-me espontaneamente o desenho que ilustra o texto. Se de um lado a figura revela a magia que vem de nosso imaginário lúdico, sob aspecto outro pode servir às mais variadas interpretações… Criativa lembrança.
O termo criativo teria de ser aplicado sempre àquele que descobre, inventa, cria. Nenhuma necessidade de torná-lo um substantivo particularizado a explicar uma atividade profissional específica e limitada. Deve integrar a ação, não ser a ação. Pessoas simples, mas talentosas, estão diuturnamente criando soluções as mais inusitadas. Criar é parte integrante do homem que pensa. Descartes afirmaria: je pense, donc je suis. A grandeza do pensar estabelece a fixação na história daqueles que ultrapassaram barreiras. Assim como todos pensam e a todos é permitido criar, uma das salvaguardas de perpetuação do ser pensante é traduzir, através dos milênios, incomensurável quantidade de idéias em inventos e descobertas. Contudo, há criação e criação em gama infinita de valor, e o respeito àqueles que em todos os domínios chegaram a criar e a permanecer na história impede-nos de vulgarizar a palavra. Valor intrínseco, não poucas vezes extraordinário, existe na propaganda e marketing, mas a mínima reflexão evidenciaria exagero no emprego de criativo como profissão especializada.
Se o nosso vernáculo é tão rico, se termos estão à disposição para as mais diversas atividades, a apropriação de palavra que especifica um ato tão nobre reduz inclusive a capacidade da verdadeira dimensão do homem de propaganda e marketing, banaliza a conceituação tão precisa do vocábulo, cerceando-o em compartimento estreito. Atribuir-se a primazia da criatividade é no mínimo entender mal palavra tão abrangente. Esperemos que, à força da repetição indevida, não nos esqueçamos do verdadeiro e autêntico significado da palavra criativo.
Old words, new meanings: a reflection on the appropriation of certain words by professionals of different areas, who grant them a new, “expanded” – but not always suitable – meaning, that soon finds its way into the idiom.
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