A Depender da Atividade
De homem sem barba,
Põe-te a salvo.
Adágio Açoriano
Quando escrevi sobre a aplicação da força muscular através da digitação sobre o teclado (vide L.E.R. – Lesão por Esforço Repetitivo, 26/11/07), abordava o tema da baixíssima pressão exercida por um digitador frente a um computador e a gama enorme de intensidades extremas praticadas por um pianista. Recebi inúmeros e-mails de portadores da L.E.R., assim como de alunos de piano e professores. O tema é de suma importância, e nunca se faz tarde ratificar que a Previdência Social despende verbas imensas com sofredores do mal que deixam seus trabalhos e buscam auxílios governamentais. Partiria do Estado a iniciativa para que o problema seja debelado, ou ao menos minimizado? Difícil cogitar tal possibilidade.
O homem sempre teve de pensar no uso da força. Milênios foram necessários para que inventasse a alavanca. Quando o esforço físico depende unicamente do desempenho do homem, sem qualquer outro artifício externo, tem-se igualmente de verificar, para as múltiplas aplicações desse potencial, longas gestações através da história.
A força humana pode comportar muitas categorias. Entre essas, duas foram objeto de recente reflexão, pois apresentam-se antagônicas quanto à destinação. A força bruta de um lutador de boxe, a partir de longa preparação corpórea como um todo, mas potencializada nos braços, punhos, pernas e pés, assim como estratégias definidas visando a embates; e aquela do pianista ao realizar altas intensidades, quando todo um sistema muscular tem de estar amparado sólida e cientificamente, mercê, igualmente, de longa preparação, que remonta à infância.
Quando estudava em Paris, ouvi reiteradas vezes o excelente pianista búlgaro radicado em França, Yuri Boukoff (1923-2006). Fora também aluno de Marguerite Long, a legendária pianista e professora francesa, mas em período bem anterior ao meu. Era muito forte e, por vezes, visitava a nossa mestra, apresentando-se prazerosamente em seu curso, o que era maravilhoso para todos nós que estudávamos na Academia de Madame Long. Apreendi que na juventude praticara pugilismo com desempenho acima da média, apesar de ter iniciado bem cedo seus estudos pianísticos, com resultados surpreendentes. O célebre crítico do Le Figaro, “Clarendon”, pseudônimo de Bernard Gavoty, escreveria sobre Boukoff: “Grande pianista de porte atlético que nos faz pensar, logo que ele surge em cena, se não vai, por pura diversão, carregar o instrumento em seus fortes braços”. Chamou-me a atenção esse desempenho de Yuri Boukoff em esporte de impacto, contado por colegas da renomada escola de música. Intérprete pujante – a gravação de Boukoff da integral das Sonatas de Prokofiev é considerada referência -, mas pleno de lirismo, primeiro pianista a realizar uma tournée na China, no longínquo 1956, praticou atividade que poderia levá-lo a sérios comprometimentos físicos, esporte que para os maiores aficionados é considerado como “nobre arte”.
Fui assistir no dia 11 de Março último a abertura da temporada da Orquestra Filarmônica Bachiana, sob a regência de João Carlos Martins. Um grande sucesso, e a certeza de que o carisma do irmão, no que concerne à música erudita no Brasil, é absolutamente único. No intervalo, Jorge, dileto amigo com quem conversava, aproximou-se de Adilson Maguila Rodrigues, o nosso maior campeão dos pesos-pesados e, sem que eu percebesse, disse-lhe, referindo-se a mim, que se tratava do irmão do Maestro do Povo. Imediatamente o conhecido lutador apertou-me a mão, diria, triturou-a, sempre a sorrir. Minha filha Maria Fernanda não perdeu a oportunidade e preparou sua digital. Maguila desde logo fez pose como se estivesse a lutar, sugerindo que fizesse o mesmo. Daí a foto descontraída. Após aqueles instantes alegres, fomos assistir à segunda parte do concerto, e estive a pensar. Toda aquela massa bruta, força da natureza e de treinos incansáveis, assim como de uma disciplina necessária, fizeram com que Maguila se tornasse campeão brasileiro, sul americano e das Américas. É uma figura lendária, pois enfrentou, apesar de ter perdido nos primeiros rounds, Evander Holyfield e George Foreman, dois extraordinários campeões mundiais. Subir no ringue e desafiá-los nos Estados Unidos já pressupõe uma tremenda coragem e sangue gélido. Ao mostrar-me as mãos, verifiquei a descomunal estrutura que a vida imprimiu às ferramentas de trabalho de Maguila. Naquela proverbial simplicidade, o campeão afirmou, contraindo mãos e braços: “é rocha pura”. No todo, um verdadeiro armário colossal. Simpatia simplória e direta, inclusive. Sob outra égide, se aquele punho mostrado na foto atingisse o meu rosto, estaria certamente agora navegando no sono da eternidade. Mãos e mãos, destinos diferenciados. Em ambos os casos, elas buscam traduzir intenções acalentadas longamente. Para o pugilista, há as luvas que atenuam os choques; para o pianista, as mãos estão a serviço de infinitas gradações de intensidade, através dos dedos. Boxeador e pianista têm seus sonhos. Neles, deve haver muita analogia. Mas a posição deste intérprete para com aquela “rocha pura”, amostra de tantas outras espalhadas pelo mundo e que acalentam atingir cinturões da glória, era e continua a ser de profundo respeito.
At one of the concerts of my brother João Carlos Martins and his Bachiana Chamber Orchestra, I met by chance the boxer Adilson Maguila, a retired Brazilian heavyweight champion who in the past fought two world champions: Evander Holyfield and George Foreman. We were photographed together and afterwards I paused to think of the use of the hands in different professions: the brutal strength of a boxer’s fists and the measured strength of a pianist in pursuit of countless nuances of intensity.
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