Opções que se Apresentam
Depois, há outra coisa importante a considerar:
a gravação trouxe exigências tais na execução
que elevaram esta a um nível que por via de regra
nos garante estarmos a ouvir obras interpretadas
nas melhores condições pelos conjuntos ou solistas
mais qualificados – e não é certamente este um dos
menores préstimos de que somos devedores ao disco,
esse “humanismo que bem mereceu do Espírito”,
no justiceiro dizer de André Coeuroy.
Fernando Lopes-Graça (1953)
Estava a conversar com uma amiga sobre minha recente viagem, recitais e o lançamento de mais um CD. Christina repentinamente me questiona: “há gravações suas ao vivo?” De meus 19 CDs gravados no Exterior, apenas umas poucas faixas registradas em Moscou ao vivo, no longínquo 1962, foram vertidas para CD. Após 5 LPs gravados no Brasil nos anos 80, sempre em condições insatisfatórias, somente em meados da década de 90 iniciei as gravações na Europa. Em teatros e estúdios, na Bulgária e em Portugal, mas sobremaneira na mágica capela Sint-Hilarius em Mullen, na Bélgica Flamenga, essas últimas sob a supervisão técnica desse extraordinário engenheiro de som que é Johan Kennivé. Um mestre absoluto. Muitas vezes, apresentações ao vivo foram registradas, mas por falta de interesse de minha parte não foram traduzidas para CD. É também uma questão de preferência, ou de estilo.
Nada tenho contra as gravações ao vivo. Representam elas o pulsar momentâneo no instante do acontecido, pressionado pela situação, pela reação do público, pela empatia que se tem pelo local onde nos apresentamos. Anteriormente já abordara quais as reações que um intérprete pode sentir antes e durante uma apresentação (vide O Medo do Palco – Problemática e Possíveis Soluções, 04/10/08). Dependem de tantos fatores!
Quanto à gravação sem público, entendo ser uma forma onde a responsabilidade e o preparo devam ser outros. Maiores ao meu ver; diferentes, sem dúvida. A gravação ao vivo pode admitir pequenas incorreções. Elas existem e são perdoáveis. Sob outra égide, a colocação dos microfones em um espetáculo com sala plena é feita aprioristicamente. Haverá sempre alteração sonora durante o concerto, por pequena que seja, devido à presença do público, suas vestimentas, ruidos orgânicos por vezes incontroláveis… Nos registros fonográficos sem público, anteriores à segunda metade do século XX, podem-se perceber falhas do intérprete, pois havia geralmente uma só captação sonora, por ser o processo extremamente dispendioso àquela altura. Entretanto, nestas últimas décadas a gravação, apenas frente ao instrumental que deverá captar o som, evoluiu muito e encarrega-se de transmitir a verdade sem concessão, pois de inteira responsabilidade do intérprete. Daí entender que, se possível for, só deve ser feita em condições excepcionais de tomada de som e na utilização do instrumento, o melhor que houver. Dessa maneira, a prévia preparação realizada pelo intérprete, a buscar esse desiderato último, estará sendo contemplada. O nosso de profundis tem de fluir inteiramente. Conditio sine qua non. O meu dileto amigo e professor de guitarra na Academia de Amadores de Música de Lisboa, António Ferreirinho, escreveu-me recentemente: “Um dia perguntaram ao escritor António Lobo Antunes se um dado romance seu tinha alguns aspectos autobiográficos. Ele respondeu simplesmente que tudo o que um escritor escreve é autobiográfico. Isto vem a propósito do CD dedicado a Fauré… Voltando ao Lobo Antunes, diria que todos os CDs do José Eduardo são autobiográficos. Tudo aquilo que o José Eduardo é está lá.” Esse conteúdo intrínseco, observado por generoso amigo, intransferível, fronteiriço ao limite individual, tem de estar presente. Somos nossos acúmulos. Quando ouço uma gravação, sinto se o intérprete transmite. Tudo está presente. É só estar aberto aos eflúvios que o registro tem de conter em sua essência. Se o executante mostra-se apenas um hábil instrumentista, sem penetrar no âmago da criação, desde logo foge-se do que deve ser exposto, dito, interpretado. Ouvidos sensíveis sabem distinguir. Sempre. Habilidade sem anima é como um prato sem tempero.
Christina insiste: “Você guarda gravações de recitais antigos ou recentes?” Sim, respondi. Quando, por motivos ligados a determinada organização, o recital é gravado, recebo quase sempre o resultado e ouço pelo menos uma vez. Serve como parâmetro, essencial para aperfeiçoamentos. O caminho do intérprete não tem fim. Não obstante o fato, prefiro sempre a gravação realizada sem o público. É também lenda não poder o instrumentista transmitir toda a emoção diante apenas de “frios” microfones. Considero que a alma penetra, sim, naqueles pequenos receptores de sons que estão a captar tudo. Nosso interior é insondável, mas o que temos a dizer através dos sons deve fazer parte de nosso respirar.
Já estávamos a tomar café em um desses pequenos recintos na nossa Brooklin-Campo Belo e Christina volta ao tema fulcral. Ela sentia, nas gravações ao vivo, essas pequenas incorreções, mas gostava de participar das tosses, pigarros e aplausos presentes nessas tomadas diretas. É como se estivesse in loco. Citei Glenn Gould que, precocemente, não mais se apresentou em público, gravando apenas em locais vazios. Essa opção tem de ser considerada. Depende muito de cada intérprete verificar qual o veículo que melhor se adequa aos seus propósitos. Se ele se apresenta poucas vezes, como no meu caso, a escolha tem lá seus fundamentos. Christina pareceu compreender meu posicionamento, rigorosamente pessoal, favorável à gravação sem público, acrescentando que também gostava imenso delas. O café selaria um acordo, pois. Desde logo entendemos serem válidas as duas categorias e que o importante é a transmissão da mensagem musical, não importando o veículo.
Tendo interpretado os dois cadernos de Images de Debussy no recital do dia 14 de Fevereiro último em Gent, na Bélgica, e sabedor de que Cristina é fiel leitora de meus posts, insiro, no presente, o segundo caderno dessa excelsa coletânea que tem como peças: Cloches a travers les feuilles, Et la lune descend sur le Temple qui fut e Poissons d’or. A gravação foi feita ao vivo em antiga igreja dominicana, hoje Parnassus, sobre o patrocínio da De Rode Pomp, recital este em benefício da Unicef. O piano, um Bösendorfer de ¾ de cauda.
On the differences between performing in the intimacy of a recording studio or at a concert hall before an audience.
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