A Fazer Lembrar o Passado

Carlinhos e seu universo. Clique para ampliar.


Redescobrir, certamente,
não é tão importante como descobrir.
Às vezes, porém, chega a ser altamente gratificante.

Frederico Branco

O passar do tempo é inflexível para todos, a afetar sensivelmente atividades humanas que perduram desde há muito. O pequeno comércio foi, para os mais velhos, para aqueles que sobreviveram às muitas décadas, um dos encantos do relacionamento humano. A mercearia da esquina; a quitanda; o chaveiro e o serralheiro; a papelaria dos cadernos, lápis, borracha e tintas Parker e nanquim; aquela porta de garagem que ao se abrir apresentava todos os produtos indispensáveis à manutenção da casa; a lojinha que vendia armarinhos e toda espécie de quinquilharias. Frequentava mais, quando miúdo, esta última, a fim de comprar botões especiais para mantôs ou sobretudos, a fim de reforçar o meu time de futebol de mesa, assim como bolinhas de gude para os torneios que realizávamos na escola primária. Ainda escreverei sobre esses jogos e as técnicas diferentes utilizadas por João Carlos e por mim. Uma constante alegria.
Hoje, o pequeno comércio foi praticamente banido pela invasão de super-mercados e shoppings calcados nas especialidades ou diversidades. Combalidas, aquelas lojinhas se fixaram preferencialmente na periferia, mas é um prazer verificar a existência de algumas ainda espalhadas pela grande cidade em seus incontáveis bairros. Em tantas ruas e avenidas que cortam regiões da urbe pode-se notá-las em sequência. Agrupadas, simbolizam em parte a classe social de moradores do entorno. Muitos dos que trabalham nesses pequenos estabelecimentos são prestadores de serviços: sapateiro, chaveiro, barbeiro, eletricista, encanador, borracheiro. As lojas de comércio sobrevivem à custa de freguesia fiel que permanece a comprar determinados produtos no estabelecimento onde não falta o bom papo com o dono. Em cidades do interior, pequenos comerciantes e trabalhadores autônomos existem como respiração pausada da comunidade.
Carlinhos tem um pequeno estabelecimento comercial na Vila Olímpia, bairro contíguo ao Brooklin e separado pelo corredor entupido de caminhões, a Av. dos Bandeirantes. Diferencia-se de outros congêneres pelo isolamento, pois não há o vizinho lojista. Os mais variados produtos lá se encontram. Detergentes, creolina, sabão líquido, tudo se pode comprar aos litros. Sacos de lixo de todas as dimensões. Em um pequeno espaço, há um chaveiro de plantão. A frequência é aquela dos vizinhos e de moradores da redondeza. Habituei-me a comprar em sua loja. Cortês, troca sempre algumas palavras em torno do que se compra, ou de um fato político recente. Lá encontrei, em uma dessas manhãs, Hélio Gomide, cronista que escreveu para a Folha e para O Estado. Ótima conversa, aos 77 anos tem muitas histórias para contar. Em determinado momento surgiu o nome de meu irmão, Ives. Carlinhos imediatamente disse que era seu profundo admirador, o que me deixou curioso. Nada disse, mas dias após resolvi escrever esse texto tendo como temas Carlinhos e o pequeno comércio, uma de minhas gratas lembranças da infância.
Aproveitei as primeiras horas de uma manhã ensolarada e fui a pé até a loja do amigo. Contou-me que, entre muitas atividades exercidas, foi gráfico em firma de consultoria. Nas horas vagas, frequentava a biblioteca da empresa e lia os artigos e trechos de livros de meu irmão. “Era muito instrutivo e tudo o que eu pude ler do Dr. Gandra batia com o que eu pensava também”, afirmou-me Carlinhos. Hoje, acompanha a trajetória do Ives através da Linha de Frente da Rádio Jovem Pan. Fiquei deveras impressionado, pois ele assimilou bem o que leu e ouviu, enumerando temas que são estandartes do grande jurista. Quando não a Joven Pan, ouve a Cultura FM, pois gosta mesmo é de música erudita.

Durante forte aguaceiro, o encontro das águas da Av. dos Bandeirantes e da Rua Alvorada.

O estabelecimento comercial de Carlinhos inundado.

Tirei uma foto de Carlinhos em frente a sua loja. Como aquele trecho da Rua Alvorada fica numa baixada, perguntei-lhe se as últimas chuvas o importunaram. Mostrou-me fotos alarmantes tiradas com seu celular. Comumente, no verão os aguaçeiros levam a enchentes, e a loja é inundada por boas dezenas de centímetros desse caldo grosso pouco confiável. Sente que as águas vão chegar e retira o que tem de ser retirado. Nada que transforme o seu bom humor e o faça pensar em mudança, pois há dez e tais anos está instalado no lugar de que gosta. Todavia, uma das imagens reproduz a confluência dos “rios” da Rua Alvorada e da Av. dos Bandeirantes, que têm sua “nascente” à altura da Av. Santo Amaro. Basta uma chuva mais forte e toda a região que se estende do Brooklin – circa Hípica Paulista – à Vila Olímpia transforma-se no desaguadouro de “corredeiras”, levando transtornos a todos. Na realidade, nem vale mais a pena esperar solução para as enchentes, tema fulcral de todo político, sem exceção alguma, em época de eleição. Basicamente inexiste área verde naquele vasto espaço, dominado pelo asfalto e pelo cimento. Durante o bom tempo que permanecemos a conversar, inúmeros transeuntes o cumprimentavam, sempre festivamente, o que demonstra a sua popularidade. A todos respondia pelo nome e sempre a sorrir.
Carlinhos é um desses personagens que o tempo fará desaparecer, infelizmente, das grandes cidades. Para as novas gerações, a existência de figuras humanas como a dele tornar-se-á cada vez mais vaga. Acostumadas à impessoalidade das enormes redes de supermercados ou dos shoppings que proliferam nos espaços abertos à força pela especulação imobiliária, a nova gente saberá da existência dos tantos bons Carlinhos que resistem, através dos relatos dos mais velhos, ou de ilustrações, ou de filmes, ou enfim a partir de escritos sobre eles. Existirão nos centros das grandes metrópoles bem isoladamente, como raridades, tema para cartões postais. Acredito que sobreviverão por mais tempo apenas no interior do país, onde será possível acompanhar suas respirações cadenciadas. Oxalá perdurem.

Carlinhos is the owner of a tiny cleaning products store near my home. Friendly and polite, knowing his customers by name and offering expert advice, his shop turned into a meeting point for the neighborhood. Unfortunately such family-owned businesses are condemned to death. Fragile and vulnerable, they are all cracking under the pressure of supermarkets and shopping centers and tend to survive only in small cities.