Quando Interesses Fazem Esquecer a Essência do Homem
Cá-que-rá-cá!…
Acordou tudo.
Foi como se de repente caísse um raio no galinheiro
e despertasse a mãe, os irmãos e as primas.
Ele próprio, mal a voz lhe voou da boca, se pôs frio.
E, à semelhança dos outros,
ficou reduzido a uma pergunta e a um pasmo.
Mas não acabara sequer de entender o que se passava,
e já novo brado a sair-lhe do bico:
Cá-que-rá-cá!…
Miguel Torga – Bichos
Um bem antigo ditado reza que a primeira impressão é a que fica. Quantas não foram as vezes em que o impacto inicial tornar-se-ia decisivo. É claro, igualmente, que nem sempre isso ocorre, mas se a máxima perpetuou-se, é porque repetições sedimentaram conceitos.
Pelos anos 70, caminhava pelas ruas do centro velho de São Paulo, quando pela primeira vez tive a sensação auditiva, verdadeira analogia, de estar próximo de uma granja. Desde criança habituara-me ao cacarejar das galinhas e ao portentoso canto de um galo soberano, pois meus pais mantinham no quintal de nossa casa um bem cuidado galinheiro e incubadeiras. Conhecíamos bem sons e ruídos emitidos por galinhas, galos, frangos e pintinhos. Naquele dia, ao me aproximar mais do foco de uma desordenada gritaria, vi por uma janela, quase à altura do piso, em um plano interno que me pareceu um subsolo, quantidade de homens gesticulando e desafiando a possibilidade auditiva normal. Os decibéis eram altíssimos. Aos berros, esses operadores empunhavam papeletas e sempre numa agitação generalizada, deslocavam-se e buscavam sobrepujar no grito concorrentes, colegas de trabalho e sabe-se lá quem mais. Logicamente permaneci na espreita por pouco tempo e fui à escuta de outros sons ou ruídos menos perturbadores. Presenciara instantes do andamento de pregão da bolsa de valores.
Hoje informatizadas, as bolsas passaram por grandes transformações, inclusive a BOVESPA, que extinguiu os gritadores, mas que aquela primeira impressão permaneceu, permaneceu. A tal ponto que, ao assistir nos nossos dias, pela televisão, a flashes desse mercado “diferenciado”, a agitação frenética dos operadores trouxe-me à lembrança a antiga imagem. Neste ano a Bolsa uniu-se à BM&F (Bolsa de Mercadorias e Futuros) sob nova sigla – BM&FBOVESPA – e muitos ainda continuam a vociferar no segmento do Mercado Futuro.
Nestes últimos meses, assistimos ao absoluto desnorteamento das bolsas, com oscilações que beiram o desvario, pois a globalização faz com que todas, pelo mundo inteiro, sofram impactos. Voltei a pensar no que ocorre igualmente numa granja. Um amigo do interior, criador de frangos, certa vez contou-me algo que jamais esqueci. Quando uma raposa ou um gambá se avizinham de uma granja, as aves enlouquecidas dirigem-se todas para um canto do retângulo e amontoam-se. A tragédia é conhecida pelos responsáveis quando de manhã verificam um grande número de galináceas mortas, aquelas que ficaram por baixo. Não é bem parecida a cena com aquilo que presenciamos presentemente? Todos na bolsa “correm” para determinadas posições, ações despencam e quão mais caem, mais parecem se dirigir ao abismo. No caso da bolsa, basta uma notícia, um boato, a fala de uma autoridade de plantão e as recuperações das posições acontecem, para logo a seguir, dependendo de outros pronunciamentos, outros boatos, tudo voltar a descer. É impressionante como o homem repete essa triste sina. E como não lembrar, tecendo outra analogia, do estouro de uma boiada nos antigos filmes de faroeste que encantaram minha adolescência? Bastava um tiro, geralmente do bandido, e toda a manada saía em desabalada corrida, tudo destruindo em sua passagem.
Sob outra égide, que qualidade de vida pode ter um operador diante desse massacre? Onde ficam a serenidade, a família, o desenvolvimento espiritual frente à tresloucada movimentação especulativa que move o mundo? Poderíamos acreditar que nesse mercado um operador de viva-voz ou aquele preso à tela do computador deixam de vislumbrar seu mundo interior, pois suas aspirações naturais ficam sufocadas pelo coletivo neurótico e descalibrado. Parece muito difícil que alguém possa manter a tranqüilidade nessa situação de permanente stress. Muitos fazem ginástica em horários (im)possíveis, “malham” a fim de diminuir tensões, mas é difícil entendê-los vivendo a possível normalidade. Sabe-se de operadores que no passado tiveram sérios problemas nas cordas vocais, muitas vezes de maneira definitiva, o que possibilitou até ações trabalhistas contra corretoras ou bancos. E de pensar que eles basicamente executam ordens de superiores igualmente estressados, que sonham diuturnamente com cifrões, senhores “aparentes” da moeda real e virtual.
A televisão mostra o interior do Prédio da antiga Bovespa não mais com os operadores a gritar, pois o pátio virou quase um museu, dando a impressão de serenidade. Hoje, muitos dos operadores, economistas, gestores e traders trabalham em corretoras e bancos, em ligação permanente com as bolsas daqui e de outros países. Internet e telefonia são seus meios de comunicação. A tensão é absoluta e muitos tornam-se insones, pois com o mercado globalizado há a necessidade do acompanhamento das bolsas asiáticas. Ações, juros, moedas, commodities, papéis de renda fixa e tantas outras funções podem levar o novo operador ao quase desligamento de uma vida normal. Se acertar, será incensado durante o período que durar a boa dica; se cometer um erro, o seu destino em direção ao infortúnio estará traçado. Uma constante gangorra à mercê dos acontecimentos reais ou fictícios.
Devido ao desaparecimento progressivo da gritaria, o operador “moderno” tenderia a sentir “aparente” melhoria ditada pela tecnologia. Ledo engano. O especialista atual fica frente a computadores, tendo de ser ágil a fim de responder às demandas do mercado e dos clientes, permanecendo sentado, o que é gravíssimo, sob o mais massacrante stress. Sedentarismo sob tensão.
O triste é que, mais os interesses se tornam poderosos; mais aqueles poucos controladores do mundo financeiro realizam estranhas negociações; mais o dinheiro compra dinheiro; mais os que vivem como operadores de bolsas e corretoras, exercendo tantas outras funções ligadas ao mercado de ações, estarão naquela infausta posição mencionada, por baixo dos mais fortes, mesmo que sem gritarias como n’outros tempos. Na realidade, o mundo de hoje não pode prescindir das bolsas. Inimaginável. Mas, assim como governos se aglutinaram para tentar resolver a grave crise financeira do momento, não poderiam também os “donos do dinheiro” buscar lucros menos exorbitantes e, sobretudo, propiciar qualidade de vida mais saudável a essa legião de operadores que, na realidade, apenas executa ordens? Saliente-se que o operador da bolsa é um trabalhador infatigável, figura fulcral para o bom andamento de todo esse segmento da economia. Mas, seria o homem em sua essência uma preocupação para os que mantêm o Sistema? Preso a este, o ansioso operador – nem sempre ele assim entende – segue o seu destino e, se praticamente não vocifera mais, o que é bom para a paz auditiva dele e de todos que o circundam, exacerba sua mente e sua visão nas telas do computador em constantes mutações. Eleger a dignidade do ser humano seria pois uma utopia, se considerado for o status quo atual que beira a irracionalidade. Creio que nada a fazer nessa tão absurda realidade materialista e…monetarista.
A look at the trading floor of the São Paulo Stock Exchange some years ago, with traders nervously shouting orders and flashing signals across the room, reminded me of the excited crackles coming from the chicken yard we had at home when I was a boy. Nowadays the open outcry system is being replaced by electronic networks, but the stress is the same. This episode came back to my mind after the recent stock market crash, leading me to reflections on gains and losses, on success measured by the amount of profit made, on the dignity of man.
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