Problemática e Possíveis Soluções
Quando teço reflexões a respeito
de meus sucessos e meus fracassos,
constato uma ligação estreita entre a vida que eu levava
durante os dias a precederem o resultado final.
O repouso, o estado de saúde,
o equilíbrio do corpo e do espírito são condições da realização.
Henrich Neuhaus (pianista e pedagogo)
Em post bem anterior abordei um mal físico que pode afetar os intérpretes de maneira temporária ou definitiva (vide L.E.R. – Lesão por Esforço Repetitivo, 16/11/07). Muitos são aqueles que, diante de empecilho a afetar dedos, mãos e braços, desiludem-se, frustram-se e buscam caminhos incertos.
Há contudo um mal comum à quase totalidade dos músicos, atores, bailarinos, atletas e acrobatas, possível de ser bem administrado durante toda a trajetória, mas a provocar, em pessoas mais sensíveis, danos irreparáveis na seqüência de seus desempenhos. Refiro-me ao medo do palco, le trac, em francês.
Dois livros exemplares, abordando essa presença que pode levar à insegurança total, esclarecem pontos até obscuros da problemática, e expõem várias categorias de tratamento (André-François Arcier. Le Trac: le comprendre pour mieux l’apprivoisier e Le Trac: stratégies pour le maîtriser. France, Alexitère – Collection Médicine des Arts, 1998, 288 págs. e 2004, 271 págs., respectivamente). Se no primeiro Arcier fixa com clareza fatores prováveis a favorecerem a inibição e aponta meios de administrar e até dominar a terrível, mas majoritária, presença do medo, no segundo, escrito alguns anos após, alarga as possibilidades de tratamentos, que se estendem desde medicamentos alopáticos, entre os quais as benzodiazepinas e os beta-bloqueadores, àqueles alternativos, como a homeopatia, a fitoterapia e a acupuntura. Aborda estratégias corporais que podem efetivamente levar à diminuição das tensões, como os métodos Feldenkrais e Jacobson ou a técnica Alexander, ou ainda o Yoga e outras práticas orientais. Pormenoriza as técnicas relaxantes, a sofrologia e penetra na seara da programação neurolingüística e do desenvolvimento da auto estima. “A estima de si mesmo se aprende e se cultiva” como afirma o autor, finalizando pelas estratégias comportamentais e cognitivas.
O domínio da angústia que antecede a apresentação pública é uma das preocupações de médicos, psicólogos, psicanalistas e especialistas nas muitas vertentes que levam ao relaxamento físico e mental, no desiderato de, através de estudos cada vez mais aprofundados, ao menos atenuar a real ansiedade que existe entre músicos, atores, atletas e outros, que têm de se defrontar com um público, seja este leigo ou especializado, entre os quais uma Comissão Julgadora quando de concursos tipificados. Arcier focaliza preferencialmente os músicos solistas ou de orquestra e atores, daí o palco ser o epicentro a causar a euforia, a plena realização ou o desequilíbrio físico-emocional que prejudica a performance. Os trabalhos de André-François Arcier poderiam ser entendidos como simplesmente acadêmicos, não fosse a quantidade apreciável de depoimentos fulcrais, de músicos e atores da maior respeitabilidade, que aprenderam a conviver com a aflição, entendendo-a, administrando-a da maneira a mais razoável possível e, em muitos casos, buscando auxílio médico, psicológico ou relaxante. Que le trac existe, existe. Ao apresentar estatísticas entre músicos de orquestra, é considerável o número daqueles que sofrem de ansiedade pré-apresentação.
Diferentes tipos de angústia exigem tratamentos variados, pois jamais o medo tem característica padrão, apresentando infinidade de nuances, conforme os perfis estudados por Arcier. Gráficos estão sempre a apontar, numa simplificação para o leitor, as modalidades, resultados, estatísticas. Quando segmentos do corpo humano são apresentados, locais onde nasce e age le trac são pedagogicamente explicados.
Há aqueles para os quais o palco tornou-se um terror. Muitas carreiras tiveram de ser interrompidas pela não adaptação à realidade necessária à performance, pois em cena a tensão pode traduzir-se em obstáculo insuperável. Determinados medicamentos alopáticos, como exemplo, podem ter eficácia para o executante de um instrumento e não para um cantor, outros podem agir atenuando transpirações pré-apresentação, batimentos cardíacos acentuados, problemas no aparelho digestivo, todos ocorrendo nos momentos que precedem a representação.
André-François Arcier penetra fundo em todos os possíveis traumas causadores do trac, passível de múltiplos tratamentos. Não obstante o “medo” do inesperado existir para todos os que enfrentam o palco, o autor preocupa-se com aqueles para os quais a ansiedade ultrapassa a razoabilidade. Considera também que a ausência absoluta do medo pode caracterizar até um outro tipo de anomalia.
Traumas oriundos da infância, quando de apresentações não satisfatórias; pressão dos pais nessa antevisão do menino prodígio a provocar no futuro a idiossincrasia absoluta pelo palco por parte do jovem, já não mais uma revelação; a insegurança frente a um repertório musical ou teatral; a presença de um público competente; a banca examinadora de concursos; episódios múltiplos de ordem absolutamente individual, mas com antecedentes preocupantes; a necessidade – para muitos – de ser o melhor, o que os torna sensíveis à recepção que o público fará de suas apresentações; o terror das falhas técnicas ou do chamado “branco” em relação à memória, todos são fatores que levam intérpretes e atores ao stress, à instabilidade emocional frente ao público e, quando o limite é sentido, a algum acompanhamento médico, terapêutico, fisiológico, relaxante ou psicanalítico.
Quando o pianista canadense Glenn Gould asseverava não sentir le trac antes da apresentação, evidenciava contudo um problema em torno do medo, o pavor de verificar o seu batimento cardíaco aumentar – uma variante da ansiedade, causa provável que o levou a abandonar a apresentação pública, dedicando-se a certa altura da brilhante carreira unicamente às gravações. Teria sido esse sofrimento cênico que conduziria ilustres intérpretes, em períodos determinados, ao afastamento temporário ou definitivo do palco. Vladimir Horowitz teve traumas provocados pela ansiedade pré-apresentação. Martha Argerich confessa, segundo o exposto na obra de Arcier (2004): “Hoje, eu poderia muito bem deixar de dar concertos. É um ato contra a natureza. O prazer é tão raro. No palco não temos a naturalidade de quando em nossa casa, pois não realizamos os mesmos gestos com as mãos frias, há os joelhos que tremem, o nariz que escorre. A interpretação se modifica. E mais, o peso dos olhares sobre você… O efeito da multidão que te observa… julga. Eu não suporto mais ser prisioneira de uma programação, eu que hesito, tateio permanentemente… Hoje, quando te apreciam, fixam um novo encontro dentro de três anos. Eu tenho pesadelos ao pensar”. A grande pianista refere-se às temporadas musicais acima do equador, sempre agendadas com enorme antecedência. Por sua vez, o extraordinário pianista Georges Cziffra afirmou que “adentrar um palco é um ato de coragem. É nesse instante que reside a fragilidade do intérprete. Leva-se uma mensagem que tem de ser passada em hora precisa, por vezes fixada anos antes, sendo um paradoxo que oscila entre a ação de graça e o suplício de Tântalo”. A uma pergunta a respeito do prazer de tocar em público, o pianista Murray Perahia afirmaria: “Não, não é um trauma, se bem que sinto le trac que não é tão indolor como eu desejaria, mas a música é comunicação e é comunicando-se que aprendemos, daí serem necessários os concertos”. E a convivência com essa angústia indesejada, mas sempre presente, seria um fato. Talvez possamos entender as considerações do pianista francês Jean-Philippe Collard citadas por Arcier como uma síntese existente do medo do palco. Considera Collard le trac um companheiro que o pianista conhece bem, entendendo-o necessário, impedindo-o, por vezes, de exprimir-se como gostaria. E afirma: “um companheiro que torna algumas apresentações dolorosas comparadas à fugacidade dos instantes de embriaguês impalpável que existem apenas na geografia de uma sala”.
Entre músicos e atores, a ansiedade pode advir no instante a preceder a apresentação, ou horas, dias ou meses antes de um evento. Dependerá das estruturas mentais de cada artista. Haveria, como afirma André-François Arcier, a necessidade não de suprimir le trac, mas de domesticá-lo. Saber entender que a existência do medo a preceder a apresentação faz parte dessa íntima relação intérprete-público é compreender não apenas a responsabilidade do artista frente àqueles que estão ávidos por receber a mensagem, como também entender a fragilidade humana perante o desafio.
A few comments on two books written by the French doctor André-François Arcier, a research on the causes and effects of stage fright – “trac” in French, the performance anxiety to some extent affecting all performers, from beginners to professionals, when they step on-stage – and a variety of strategies to control it.
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