Eterna Sina
Caíam-lhe soltas no colo vergado
As longas madeixas em brancos anéis:
Que nobre semblante de rugas sulcado,
Sulcado dos anos, e mágoas cruéis !
Antônio Augusto Soares de Passos
A saga de Sísifo prossegue (vide Sisuphos 22/03/07, categoria Cotidiano). Diariamente continua a passar em frente de minha casa levando em seu carrinho de mão as mesmas coisas. Nada é alterado. Roupas velhas, placas de papelão, jornais, tudo prossegue exatamente como sempre.
Ultimamente, fato novo tem irritado profundamente nosso Sísifo. Seu velho veículo já encerrou o ciclo da resistência. Com freqüência a roda sai do eixo, obrigando o ancião a tudo retirar, a fim de conserto provisório. Essa mazela não afetou jamais o Sisuphos mitológico, obrigado a levar imensa pedra ao topo da montanha, sem atribuição outra a sobrecarregar o triste fardo. Portanto, nosso condenado é ainda mais infeliz ao ser atingido por fatores que independem de sua sina primeira, carregar nesse carrinho os mesmos objetos.
Sua irritabilidade é levada a extremos, mercê desse problema relacionado ao seu transporte. Se por algum motivo se desespera pelo destino implacável, chega a vociferar e mesmo a cuspir em transeuntes. Sua índole não é má, mas sabe-se lá a ação dessa roda que teima em sair do eixo sobre a mente de Sísifo. Há não mais de um mês, o ancião cuspiu em uma senhora. Ato indigno, é certo, mas perdoável naquele destinado ao drama da rotina exemplar. Soube que um jovem celerado que descia a minha rua viu o acontecido e, indo rápido em sua direção, aplicou-lhe uma “tesoura voadora”, a atingir em cheio as costas de nosso pobre homem, jogando-o ao chão. Apreendi que o delinqüente continuou o seu caminho, sem o mínimo remorso pelo ato covarde, pois certamente descarregara em um indefeso toda a ira contida e disposição para a violência. Mercê do temor a que estamos submetidos diariamente frente a tais elementos, não houve a mínima reação por parte dos transeuntes. É a aplicação absoluta de uma lei “subjetiva”, a implicar o silêncio e o não ver. Algum morador atencioso, que assistira à cena de uma janela, chamou a ambulância, e lá foi Sísifo acidentado para algum Pronto Socorro. Cheguei logo após o ocorrido e marcas de sangue em plena rua atestavam ser o nosso Sísifo bem humano. Pensei que o combalido cidadão não fosse resistir à fúria do tresloucado. Se Sísifo tivesse morrido haveria mais um assassino à solta. Não apenas o Poder Público não protege o cidadão da violência alarmante e vergonhosa a imperar nesse país, como não atende aos milhares de Sísifos, pois esses não votam. O assistencialismo demagógico passa bem distante das tragédias vividas pelos moradores de rua.
Durante um bom mês, a réplica do personagem mitológico condenado pelos deuses desapareceu do Brooklin-Campo Belo. Regressou há cerca de duas semanas com os cabelos cortados e com seu desastrado carrinho. Este teimava em quebrar.
Um dia desses, ouvi pela manhã alguém praguejar em alta voz. Fui à janela e vi Sísifo, que olhava seu veículo e gritava. Novamente o drama da roda. Retirou tudo do carrinho e estava a consertá-la, quando desci e fui ter com ele. Perguntei-lhe se gostaria de um outro novo, a aguardar até uma negação. Olhou-me e respondeu afirmativamente, com um esboço de sorriso sem esperança e com o olhar perdido, reflexo de tantos outros dramas vividos, de tantas andanças sem destino. Fui a uma casa comercial bem próxima e adquiri um novinho. Levei pessoalmente a nova “viatura” a Sísifo, num percurso de cerca de cem metros, a sentir que mesmo sem nada ele tem peso considerável. Um surdo obrigado foi o sinal da aprovação. Subi para os meus estudos e cerca de uma hora após vi que transferira todo o seu universo para o novo carrinho. Curiosamente, levou os dois, a alternar pequenos trajetos. Deixou bem na esquina o velho companheiro de infortúnio, acabado, com o eixo torto, as barras de sustentação completamente desalinhadas, mas bem limpo. É possível que tenha pensado que o antigo carrinho pudesse ainda servir a alguém. Nesses infortunados há generosidade que não buscamos conhecer.
Segue Sísifo o caminho de sua desdita. Pelo menos, um fardo saiu de seus ombros. Talvez pragueje menos, mas a sina, esta continuará até o final de seus dias, pois os deuses parecem assim querer, com o beneplácito de nossos homens públicos.
Another post about Sisyphus, the homeless old man who wanders incessantly across the streets of my neighborhood pushing a handcart piled high with trash, reminding me of the mythical king of Corinth condemned to roll a huge block up a hill only to watch it roll down again, making his toil endless.
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