O Espírito de Síntese
Le progrès en art
ne consiste pas à
l’étendre ses limites,
mais à les mieux connaître.
Georges Braque
O tema é sempre instigante. Haveria período de regresso às estruturas e formas clássicas por criadores e intérpretes, após a chegada à plena maturidade? Mencionara texto de Elliot Jaques (vide Leituras sobre o Himalaia (III), categoria Leituras e Personalidades, 01/02/08), no qual fases distintas em torno da maturidade fazem-se atuantes.
Seria possível entender que o ser humano, ao atingir a plenitude da atividade, tenha reflexões em torno de um ocaso que, apesar de mais ou menos distante, antolha-se real, iniciando, mesmo em pleno desenvolvimento criativo, o caminho em direção à síntese. Pareceria normal esse trilhar, nem sempre aceito por muitos ao “não” sentirem realidades que se aproximam.
A revisita a padrões mais tradicionais, é seguida por quantidade apreciável daqueles que se dedicam às artes, criando ou reproduzindo – há sempre outra categoria de criação destinada ao intérprete. Não temos na língua portuguesa uma palavra equivalente à francesa classicisation, a definir essa “evolução” natural ao passado. Temos classicismo, que não tem o mesmo alcance. Contudo, a classicisation seria o debruçar de um criador sobre técnicas que já foram utilizadas. O novo approach traria, sob outra égide, “economia” de todo o material antes empregado, a depender das individualidades. O regresso estabelece o chamado espírito de síntese. Menos propenso a novas aventuras no campo da arte, todo o acervo apreendido ao longo da trajetória estaria como salvaguarda do que virá a ser criado.
A uma pergunta minha sobre dissertações e teses, o ilustre jurista e professor Guido Soares disse-me, no início dos anos 90, que a última das teses universitárias deve versar sobre aquilo que o docente mais conhece. Trata-se de um olhar, como se estivesse sobrevoando a sua especificidade. Contempla o conhecimento, sem tergiversar, pois a competência jamais assim deve proceder, e nesse sobrevôo vêm à pena o acúmulo da trajetória, os conceitos definitivos. Teríamos, pois, a síntese dimensionada.
Inúmeros foram os compositores que nos últimos anos de vida tiveram essa permanência na síntese. O caso de Franz Liszt (1811-1886) é flagrante. Dos anos de absoluto arrojo piano-virtuosístico, em que nenhum desafio deixava de ser transposto, à Sainte-Elisabeth e Christus, evidencia o autor o desinteresse pelo efeito até superficial e a concentração volta-se a interesses espirituais a agirem sobre a composição. Quando escreve Nuage Gris, pequena peça de apenas 48 compassos, dir-se-ia que a sínteses da síntese lá está contida. Escrita aos 24 de Agosto de 1881, a pequena peça revela algumas das mais marcantes características estruturais do compositor.
Do romantismo exacerbado, Alexander Scriabine (1872-1915) encaminha-se progressivamente ao entendimento da música como integrante de outras artes, num amálgama absoluto. Nos últimos anos de existência, a aspiração místico-reflexiva tornar-se-ia decisiva. Contudo, ingredientes do técnico pianístico, paradoxalmente, permaneceriam íntegros. Claude Debussy (1862-1918) realiza com os Études para piano, de 1915, síntese absoluta de seus procedimentos. Portador de um câncer que o levaria à morte, reconheceria, no período da composição da obra, que ela estava no cimo da criação. Meses após finalizar os 12 Études, escreve uma pequena peça de 21 compassos, Élégie, rigorosamente de síntese, onde nenhuma concessão existe, a evidenciar profunda austeridade.
Em aspecto outro, Henrique Oswald (1852-1931) recolhe-se no último decênio de vida à composição de obra sacra, movido por vários fatores. Sua obra camerística do período carrega elementos despojados, plenos de processos reutilizados, mas surpreendentes quanto ao emprego. Gilberto Mendes (vide Gilberto Mendes, Categoria Música, Personalidades, 13/10/07), ao escrever Étude de Synthèse a nosso pedido, buscou os acordes que mais tiveram guarida em seu pensar musical. Com fluidez, esses povoaram uma pequena peça em visitação amorosa ao passado.
Se os poucos exemplos citados estariam a revelar um retorno a padrões mais tradicionais por parte de tantos criadores, não se descarte a presença da síntese em compositores do nível de Franz Schubert (1797-1828) ou Wolfang Amadeus Mozart (1956-1991), a atestar que o caminho da classicisation pode acontecer na denominada “juventude da idade madura”, segundo a conceituação de Elliot Jaques.
Se a música depende prioritariamente do intérprete para sua execução, não se pode excluir o espírito de síntese que ocorreria na plena idade madura. A leitura de uma partitura é sempre desveladora de segredos. Aspectos ligados ao mistério da criação, contudo, pareceriam insondáveis. Se, sob certa égide, o intérprete deveria apreender a trajetória de um compositor em direção à síntese, sob aspecto outro é a sua própria que está em questão em período preciso da existência. A classicisation pode ocorrer, a depender do mundo interior de cada intérprete. A composição lá está para a leitura que dará vida sonora à partitura. O entendimento na idade madura pode revelar segredos que passaram despercebidos décadas antes. Ao tocar em 1955 uma obra de Robert Schumann (1810-1856) para a extraordinária Guiomar Novaes (1894-1979), disse-me ela que ingredientes só são revelados com o transcorrer da vida e que apenas naquela época compreendera conteúdos de alguns quadros do Carnaval op. 9 do grande compositor alemão, antes não desvelados em seu entendimento. Frise-se, a interpretação dessa obra sempre esteve em nível elevado na execução de Guiomar Novaes.
Observando-se gravações de pianistas que viveram muito e tiveram registros fonográficos das mesmas obras em épocas distintas, pode-se compreender esse espírito de síntese. Poissons d’or, de Claude Debussy, tem duas interpretações distintas por parte de Arthur Rubinstein (1887-1982), sendo que a gravação derradeira mantém, mais serena, uma primazia quanto às intenções.
Cláudio Arrau (1903-1991), nas entrevistas a Joseph Horowitz em 1980-1981, revelaria: “Quando nos meus vinte anos, as pessoas achavam que tocava muito rápido. Isso durou anos. E eu assim procedia pelo amor físico relacionado ao piano e aos meus dedos. Talvez buscasse a ovação. Conscientemente há muito tempo, muito tempo mesmo, eu assim não procedo. Num certo sentido, é para mim igual agradar ou desagradar. Preocupar-se com a reação do público é algo que pode realmente assassinar a interpretação”. Continua o grande pianista; “Você sabe, todos aqueles que questionam sobre minha idade falam imediatamente em serenidade e transfiguração. É um absurdo. A intensidade expressiva, na minha opinião, é muito mais forte, mais concentrada em comparação aos anos de minha juventude. Há, atrás dessas conceituações uma ilusão rotineira. As pessoas acreditam que, com a idade, tornamo-nos serenos. Ocorre exatamente o contrário. Amamos muito mais a vida e sentimos muito mais fortemente. Imaginam que ficamos indiferentes e até mais relaxados. Eu acredito que isso ocorra com a maioria, que se enfraquece ao chegar à velhice. Todavia, se durante toda a vida você foi intenso, será ainda mais ao chegar a idade avançada”.
Seria possível imaginar a síntese como pertencente a um patamar preciso, mas a ter como salvaguarda o momento desconhecido que leva à depuração. Seria igualmente oportuno ter-se em mente que, basicamente, não há antagonismos entre as distintas fases. A própria caminhada faz com que a idade madura, que leva à síntese, acumule imagens e as selecione. Essa escolha do já visto e daquilo que está para acontecer faria a diferença na criação e no interpretar a obra conclusa.
On how a synthesizing tendency seems sometimes to prevail in the later works of those who create art or demonstrate it. It is the artist’s revision of his own earlier periods, leading to the full expansion of the techniques previously employed. This revisitation of artistic standards of the past and their combination into a new and coherent whole, more restrained in style, is what I call “spirit of synthesis”.
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