Ou Sua Ausência

'A feitura da ausência (ou da interpretação).' - Mathias, lápis de cor, 1984

Il faut avoir vis-à-vis de l’oeuvre que l’on écoute,
que l’on interprète ou que l’on compose, un respect
profond comme devant l’existence même.
Comme si c’était une question de vie et de mort.

Pierre Boulez

La relation entre la vie et la mort est la même que celle
qui existe entre le silence et la musique – le silence
précède la musique, et lui succède.

Daniel Barenboïm

Ao longo das décadas, constantemente ouvi debates acalorados, opiniões incisivas ou pálidas, mas jamais indiferença quando o tema é a Interpretação Musical. Paradoxalmente, seria no plano da própria performance que a “ausência” da interpretação pode existir. Todavia, para que tal ocorra, fatores internos do instrumentista atestariam a impossibilidade de vislumbre por detrás do pentagrama depositário da composição. Apesar de subjetiva em sua percepção, essa “ausência” interpretativa determinaria a não perenidade de um intérprete.
Igor Stravinsky (1882-1971) já observava que a entidade musical apresenta apenas duas formas de existência, separadas pelo silêncio do vazio, e que haveria somente duas espécies de músicos: o criador e o intérprete. A opinião do autor de Sagração da Primavera evidencia de um lado – ao se tratar de repertório que se estende do barroco às fronteiras da primeira metade do século XX – a criação imutável para sempre, quando definitivamente finda, e o instrumentista a conviver sob vários condicionamentos. Entre estes: tradição, talento, as várias culturas e mesmo a indiferença quanto ao aprofundamento do conteúdo musical. O amálgama entre as duas categorias propostas por Stravinsky pareceria irremediavelmente perdido pela existência, de um lado, da criação composicional fixada no papel pautado e, de outro, das infinitas flexibilizações interpretativas. Se racionalmente isso ocorre, as múltiplas performances de um mesmo texto podem convergir para um consenso sob a salvaguarda da tradição. A traditio possibilita, inclusive, a manutenção da excelência interpretativa ou da mediana execução, esta ditada por limitações involuntárias do intérprete. Ao considerar-se o vasto período do repertório mencionado, verifica-se que a tradição é fundamento essencial. Através dela, a obra perpetua-se, apesar das flutuações interpretativas individuais.
Talento é uma dádiva, mas não é tudo, apenas parcela do compromisso, e deveria estar a serviço da interpretação responsável, que excluiria o interpretar a atender ao vedetismo. Pode ser o espelho a refletir individualidades super autodimensionadas. Quando ocorre tal fato, a leitura da partitura estará apenas a valorizar egos, desviando-se da essencialidade. O intérprete, nessa única possibilidade proposta por Stravinsky, criador-intérprete, sobrepõe-se à obra e, por mais impacto que possa causar, haveria o simulacro. Subjetivo, é certo, mas ao longo da existência sua mensagem não deixa lastro referencial.
A cultura de um intérprete apresentar-se-ia como fator imperioso. Quantos não são os intérpretes superdotados, espalhados pelos continentes, com os quais é impossível um diálogo consistente por falta de estrutura cultural sólida? Quando talento faz-se acompanhado de uma apreensão das muitas culturas, há necessariamente acréscimo à consciência responsável, que leva a entender a obra escrita como definitiva e multireveladora, a ser respeitada em seus fundamentos. E dessa conscientização talvez nasça a interpretação que permanece.
Tem-se ainda a indiferença, tragédia da “ausência”, que o leigo nem sempre percebe ao ouvir um executante incensado pela mídia, talvez hábil instrumentista, mas a carecer da antítese do fugaz, a imanência. Habilidade e destreza são físico-motoras, inerentes em graus diferenciados a cada intérprete, mas passíveis de aprimoramento mercê de disciplina e de estudos prolongados. Se voltadas aos holofotes, podem tornar-se armadilhas obliterando a interpretação responsável. Em termos brasileiros, some-se a tragédia de outra ausência, a crítica mediática, praticada por diletantes ou aficionados possuidores de superficial camada de verniz musical e produtores de verdadeiras crônicas sociais, sem jamais atingir a compreensão e o resultado sonoro de um evento.
Se a partitura impressa revela parte considerável da criação, não tem ela contudo todos os elementos reveladores de uma obra. Hoje, mais e mais estão à disposição edições críticas e muitas vezes facsimiladas, a reproduzirem a coloração atual do papel, dispendiosas é certo, mas imprescindíveis à compreensão de atributos fundamentais da criação, inclusive a hesitação e a rasura, integrantes da dúvida, caminho para o acerto. O manuscrito, autógrafo ou não, rarissimamente é preocupação do intérprete voltado à rotina da carreira, que o faz ter de preparar, sempre em prazo certo, peças do repertório, preferencialmente obras impostas por sociedades de concertos ou empresários. E as temporadas musicais apresentam, quase sempre, a programação mais freqüentada.
A “ausência” da interpretação tem componente a ser compreendido. Mesmo em interpretação ausente, a obra automatizada, mas a servir a outros fins estereotipados, está a ser ouvida, faltando-lhe contudo a essência do interpretar, a anima misteriosa. Se a obra musical tiver uma leitura sem quaisquer elementos flexibilizantes, que caracterizam a palavra interpretare, pode perder a essencialidade da transmissão, que pressupõe sempre o envolvimento do instrumentista. Seria pois esse envolver, sob a égide da tradição, do talento responsável e das culturas, a única possibilidade da salvaguarda da interpretação.

Pour José Eduardo et João Carlos Silva Martins en souvenir d' Alfred Cortot 1953.

Alfred Cortot (1877-1962) diria, em conferência sobre a obra de Robert Schumann, que “ A arte do intérprete – para aquele, ao menos, que não se limita unicamente às insuficientes proezas ditadas pela virtuosidade – tem como objeto essencial a transmissão dos sentimentos ou das impressões da qual a idéia musical é o reflexo” e que “o artista dever estar preocupado menos com a nota (figura musical), mas sim em traduzir o espírito que a anima, esforçando-se em apoiar sua concepção no estudo da vida dos compositores e, singularmente, na interrogação dos mínimos fatos de sua existência íntima”. É lógico que o grande mestre pressupõe todo um conhecimento das estruturas composicionais, apriorístico para o músico e indispensável à qualquer formação. Todavia, a opinião de Cortot quanto ao pleno conhecimento de um compositor por parte do intérprete pode ser exemplificada em frase reveladora de Francis Poulenc (1899-1963), quando de uma entrevista ao musicólogo francês Roland Manuel (1891-1966). Diria o autor que “meus melhores achados da escritura pianística surgiram ao escrever o acompanhamento de minhas melodias”, a demonstrar característica essencial que deve ser apreendida pelo intérprete. O posicionamento de Poulenc pode ser estendido a outros compositores em idênticos ou outros contextos.
As considerações de Cortot, absolutamente colocadas em prática pelo notável e paradigmático pianista, seriam, além disso, a evidência de um respeito à tradição – da qual foi ele um cultor -, da plena exemplificação de um talento extraordinário e de uma das mais abrangentes culturas entre os intérpretes em todos os tempos.
A ausência da interpretação seria o vazio que, tantas vezes não entendido como tal, tem contudo permanência circunstancial, prazo limitado durante parte da trajetória de uma carreira, esquecida após estiolar-se a “magia”. O tempo encarrega-se de apagar traços na areia, ou de dar continuidade às vagas do oceano.

L’intérprétation musicale et quelques attributs: tradition, talent responsable, cultures. L’ indifférence au sujet d’une connaissance plus profonde du contenu musical et le besoin d’éblouir le public, facteurs qui mènent à l’absence de l’intérprétation.

Tradition, talent, technique, intellectual depth are some of the aspects affecting the outcome of a musical performance. Many interpreters content themselves with a flawless technique, sometimes belittling the research that could help them play a piece of music as the composer envisioned it. My point is that a thoughtful interpretation, when tempered with precise technique and emotion, enhances the performance of a musical work. A flamboyant display tends to be enough to mesmerize audiences and gratify inflated egos, and also to make sounds become void of meaning.