Um CD de mérito
Le progrés en art ne consiste pas à l’étendre ses limites,
mais à les mieux connaître.
Georges Braque
Conheci Marta Menezes em masterclass que ofereci na Academia de Amadores de Música, em Lisboa, poucos anos atrás. Impactou-me a interpretação da jovem pianista em obras de Beethoven e Prokofief. Segurança plena, maturidade, estilo definido, propostas apresentadas com convicção, musicalidade e fraseado transparentes e perfil de uma já pianista. No diálogo existente nessa configuração difundida, em que a transmissão do executante com aquele que lhe dará possíveis sugestões é em princípio salutar, ficou clara a determinação de Marta Menezes e sua vontade de continuar rumo à ascensão. Em nenhum instante duvidei de suas aspirações interiores.
Não mais a vi, mas tenho trocado e-mails com Marta Menezes e é com alegria que assisto à sua evolução segura, muito bem conduzida também em seus intentos acadêmicos. Marta Menezes sabe o que quer e tem a certeza de trilhar caminho que já a conduz a ser nome de referência na pianística de Portugal.
Ao leitor que não a conhece, traria dados breves de seu perfil. Após estudos preliminares que lhe deram bases sólidas, concluiu Licenciatura e Mestrado na Escola Superior de Música de Lisboa, sob a orientação de dois competentes pianistas portugueses, Miguel Henriques e Jorge Moyano. Em 2013 terminou o curso de Master of Performance no Royal College of Music (Londres), iniciando Doutoramento em Música na Jacobs School of Music (Universidade de Indiana), na classe do igualmente competente pianista brasileiro Arnaldo Cohen. Tem se apresentado como solista com várias orquestras portuguesas e como recitalista em países europeus e nos Estados Unidos.
Destaquemos os prêmios que tem colecionado: 1º lugar no Concurso Beethoven no Royal College of Music (Londres, 2013) e no Concurso Internacional de Piano de Nice Côte d’Azur (2013), assim como outras láureas em Portugal, Espanha, França e Itália.
O CD Beethoven – Lopes-Graça (publicado em Portugal através de patrocínios, 2017) é revelador das qualidades de Marta Menezes, a partir da escolha do repertório. Poderia parecer antagônica a preferência da pianista para Sonatas de compositores tão distantes na história. Lopes-Graça sempre teve profunda admiração por Beethoven, sendo inclusive tradutor da extraordinária e extensa obra do grande escritor francês Romain Rolland (Beethoven – Les grandes époques créatrices), sob o título de Beethoven (Lisboa, Cosmos, 1960).
Após a apresentação de duas obras pouquíssimas vezes visitadas pelos pianistas, a Polonaise em Dó Maior, op. 89, e a Bagatela em Dó menor, Wo 52 de Beethoven, interpretadas com compreensão estilística e até humor – no caso da Polonaise -, Marta Menezes apresenta a última Sonata de Beethoven, a magnífica 32ª em Dó menor, op.111. Se as duas amostras iniciais têm características totalmente distantes da Sonata op. 111, a intérprete caracteriza no CD sua compreensão de um todo beethoveniano. Aliás, seu repertório já contempla outras Sonatas e concertos para piano e orquestra do compositor alemão.
Clique para ouvir a Polonaise em Dó Maior, op. 89 de Beethoven na interpretação de Marta Menezes
Abordar ainda na juventude adulta a Sonata testamentária de Beethovem poderia parecer uma ousadia. Obra de síntese a partir da presença de apenas dois movimentos, a op. 111 requer uma compreensão imensa das propostas que Beethoven imprime em toda a construção. Quantos não foram os posicionamentos ao longo da história sobre a presença de apenas dois andamentos? Sob outro aspecto, o compositor, já com problemas avançados de surdez, não deixa em inúmeras cartas de relatar esse desconforto, ainda mais para um músico. A sublime Sonata op. 111 já paira num plano que diria espiritual, quando o acúmulo de conhecimento que leva à essência essencial prevalece. Marta Menezes entendeu a obra, assimilou-a e nos dá uma versão condigna, austera e lírica, dinamicamente muito bem tratada, pianisticamente sans reproche. Apreende-se, através de sua bela interpretação, todo um conhecimento prévio de tantas outras sonatas e concertos de Beethoven.
Quanto à Sonata nº 3 de Lopes-Graça (1952), tem-se uma obra monolítica, pois o compositor interliga inúmeros “andamentos”, sem interrupção. Se não original, pois a prática estava a ser utilizada desde meados do século XIX com entendimentos diferenciados por parte dos compositores, a concentração dada por Lopes-Graça à 3ª Sonata evidencia, sob égides diferenciadas, influências oriundas de Liszt a Bela Bartok, este um de seus eleitos. Teria porventura Marta Menezes escolhido a Sonata nº 3 mercê dessa concentração que a antecede através da Sonata op. 111 de Beethoven? Sua interpretação convence e os vários “andamentos” da 3ª Sonata são muito bem estruturados, numa compreensão estilística louvável.
A escolha de Marta Menezes, a privilegiar obra relevante de Lopes-Graça, não se furtando ao grande repertório da tradição, é alvissareira. A gravação das extraordinárias seis Sonatas (integral) do Mestre de Tomar pelo notável pianista português António Rosado (2004) é reveladora da evolução escritural do compositor, sem que jamais a identidade de Lopes-Graça se perca. Suas impressões digitais estão sempre presentes. Marta Menezes, ao mostrar ao público sua atenção ao repertório português, presta serviço inestimável à causa tão propalada dessa necessidade de o músico nascido em Portugal difundir seus autores. No blog anterior, mencionei o organista nascido em França Antoine Siberttin-Blanc, radicado em Portugal a partir dos anos 1960, que tanto divulgou a obra para órgão composta em terras lusíadas ao longo da história. É pena que intérpretes portugueses superventilados pelo mundo insistam em negligenciar a criação musical em Portugal. Quando egos prevalecem à integração, pouco a fazer.
Marta Menezes já é uma realidade e, mercê da inteligência e do talento, saberá cultuar, paralelamente ao repertório tradicional, o que de mais valioso foi criado para piano em Portugal do barroco aos nossos dias.
It has always been a pleasure to meet a young pianist with real talent, sure about the path chosen, careful with repertoire selection. The Portuguese pianist Marta Menezes meets all the above requirements, as confirmed by her just released CD with works by Beethoven and Lopes-Graça. Winner of numerous national and international awards, among them first prize in the Royal College of Music Beethoven Competition and in the Concours International Côte D’Azur “Simone Delbert-Février”, her talents may be fully appreciated in the CD, in which tradition and novelty have been weaved into a daring whole. Exceptionally gifted musician, Marta Meneses will know for sure how to promote — together with the traditional piano repertoire —the best of the classical music produced in Portugal.
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