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Uma Eterna Renovação
Este desenho de Cristo
É obra de longa data,
Mas pode ainda ser visto
Na minha casa da Mata.
Monsenhor Nunes Pereira
Aos 21 de Fevereiro, em plena quarta-feira de cinzas, quando pelo Brasil afora populações ainda se entregavam aos estertores do carnaval, estava eu a fazer as compras em uma loja de extensa rede de supermercados e fiquei surpreso ao ver, já devidamente pendurados acima de nossas cabeças e nas estantes específicas, centenas de ovos de Páscoa. A volúpia do lucro, rigorosamente semelhante àquela movida por madeireiros insensíveis ao amanhã, assim como pelas empresas poluidoras de toda espécie, atinge, no caso dos ovos de Páscoa, o ponto de descaso para com a Quaresma cristã. Se o ecossistema é atingido nos exemplos tipificados, não menos grave é o aviltamento imediato do espírito, provocado pela presença de uma mercadoria em hora imprópria, frise-se, com um único intuito, o lucro imediato.
Chegamos à Semana Santa, comemorada em tantos países onde há o cristianismo e, nesse grande rebanho, católicos e protestantes do Ocidente, assim como as várias vertentes da Igreja Ortodoxa, vivem intensamente a respeitar a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Cristo.
Quanto à latinidade, ela cultua, sobremaneira nos centros menores, a tradição a envolver as cerimônias da Semana Santa. Extraordinárias as manifestações que se processam nos países ibéricos, sendo que anualmente assistimos pela televisão, aos flashes de Sevilha em sua monumentalidade, ou à cerimônia do Lava-Pés e à missa solene do Domingo de Páscoa no Vaticano. No Brasil, as cerimônias e manifestações da Semana Santa em cidades de todos os Estados, preparadas durante meses, com maior ou menor intensidade revelam a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Cristo em cores locais, adaptando a cada Estado, cidade ou vila atávicas tradições. Uma delas, da Igreja Católica e vinda de Espanha, chegou há cerca de 250 anos ao Centro-Oeste e nos traz o maravilhamento através da Procissão do Fogaréu em Goiás Velho, onde membros da comunidade local, os farricocos, à meia noite da quarta-feira da Semana Santa, ou de trevas, atravessam a cidade descalços, encapuzados e segurando tochas acesas na representação da busca e prisão de Cristo. Tem-se também em Nova Jerusalém, no município Brejo da Madre de Deus, em Pernambuco, uma belíssima representação, com centenas de participantes das comunidades locais. Singelamente, no sul do Brasil, descendentes de vários povos europeus pintam carinhosamente ovos naturais a celebrar a data máxima. Esses poucos exemplos, nesse imenso país que comemora na fé a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Cristo, seriam a antítese da absoluta insensibilidade por parte dos mercadores do templo.
Se a Páscoa que os judeus comemoram todos os anos em lembrança da saída do Egito em direção à terra prometida de Canaã tem um significado transcendente, entre os cristãos a Páscoa irá celebrar a Ressurreição de Jesus Cristo. Precedendo esse ato final, a Paixão de Cristo abrangeria as provações recebidas por Jesus desde a sua prisão no horto à morte na cruz. As cerimônias cristãs comemorativas desse período da Paixão são fundamentais à compreensão da Semana Santa como uma culminância do espírito cristão.
O meu entendimento do sentido da Páscoa veio a partir da leitura, no início dos anos 60, de O Cristo Recrucificado (1954), do grande escritor grego Nikos Kazantzaki (1883-1957), na tradução francesa direta do grego. Trata-se de um dos mais extraordinários romances do século XX. Kazantzaki era um forte crítico da igreja ortodoxa grega e, na obra em questão, transcende a existência do homem, expondo os poucos moradores de um vilarejo grego à participação ativa na longa preparação da Paixão, da Morte e da Ressurreição. O cumprimento pascal dos aldeões no dia em que se comemora a ressurreição, Cristo ressuscitou, é a incorporação plena do significado da data. Seguindo a tradição, um deles personificará o Cristo durante a longa encenação. Manolios, o pastor, é o escolhido pelo Conselho de Anciões. É você, Manolios, que recebeu na divisão dos personagens a função a mais difícil, declara o padre em tom solene. Deus te escolheu para fazer reviver, com seu corpo, sua voz, suas lágrimas, a Santa Escritura…Você é quem receberá a coroa de espinhos, quem será flagelado, quem carregará a Santa Cruz e quem será crucificado. Deste dia em diante, até a Semana Santa do próximo ano, você não deve ter senão um pensamento, um só e único: como tornar-se digno de carregar o peso terrível da cruz. O relato mítico do autor envolve humildade, fé, liberdade, dignidade, amor ao próximo, sentimentos que, na pena do autor de Alexis Zorba (1946), tornam-se um libelo dessa perene luta do homem que busca o aperfeiçoamento espiritual contra as tentações.
A data máxima da cristandade é vivida sobremaneira nas comunidades mais simples, enquanto que nas cidades grandes, milhões de cristãos buscam, nos corações e na fé, a transcendência dessa Semana única. Para os que acreditam, é sempre uma renovação, um passo em direção à esperança.
Post Scriptum: Findava esse texto quando desço, a fim de atender o carteiro. Recebia naquele instante o livro O Canto da Paixão nos Séculos XVI e XVII: A Singularidade Portuguesa, do ilustre Professor da Universidade de Coimbra José Maria Pedrosa Cardoso, prefaciado por Rui Vieira Nery, eminente Professor da Universidade de Évora (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, 560 pgs). Precioso contributo à extraordinária presença da música litúrgica da Paixão em Portugal conservada em passionários.
Easter today: commerce and secularization in large cities, feast and faith in remote rural areas in Brazil and the story of Christ’s passion re-told in Nikos Kazantzaki’s book Christ Recrucified.
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