Fidelidade Eterna
O futebol é a coisa mais importante
entre as coisas menos importantes.
Milton Neves
Meu padrinho, de nome Paes, era um português falante. Dono de lojas de sapatos no Rio de Janeiro, estava sempre a visitar São Paulo. Em uma oportunidade, tinha eu oito anos, presenteou-me com uma bola de borracha com cores e emblema da Portuguesa de Desportos. Nascia o torcedor. Gostava tanto daquela bola que, antes de dormir, deixava-a ao lado de minha cama. Curiosamente, meu pai, português, era são-paulino e convenceu dois de meus irmãos a aderirem à sua preferência. João Carlos e eu, que dormíamos no mesmo quarto, preservamos nossas origens. Torcer para a Portuguesa era um duplo orgulho, estruturado na paternidade e na cruz de Avis estampada na bola de borracha.
A Portuguesa, nas fronteiras dos anos 40-50, treinava no Parque do Ibirapuera. João Carlos e eu íamos a pé assistir encantados aos treinos. Certa vez, Nininho cobrou um pênalti – o goleiro era Caxambu – e a bola foi para fora, atingindo em cheio o rosto de meu irmão, que estava perto da trave. João deu uma pirueta e caiu desmaiado. Foi um susto!
A adolescência foi um desfilar de alegrias. Em meados dos anos 50, a Portuguesa tinha o melhor time do Brasil. Seis de seus jogadores foram convocados para a seleção brasileira e nove para a paulista. Um timaço que, não obstante a qualidade, não conseguia ganhar o campeonato estadual. Sempre faltou força da Associação Portuguesa de Desportos junto às Federações e aos Conselhos Arbitrais. O time era tão inconteste em sua qualidade que, apesar da desventura de não ter grande torcida e influência política, por duas vezes foi campeão do Torneio Gomes Pedrosa, que reunia os grandes clubes de São Paulo e do Rio de Janeiro. Lembro-me até hoje de um dos esquadrões extraordinários da Portuguesa: Muca, Nena e Noronha, Djalma Santos, Brandãozinho e Ceci, Julinho, Renato, Nininho, Pinga e Simão. Realmente, o timaço. Recebeu a Lusa, por três vezes, a Fita Azul, pois foi o time que, em três excursões à Europa, não perdeu nenhum dos 41 jogos disputados. Ou eram vitórias, ou empates. Sim, numa delas perdeu, contra o poderoso Arsenal, pois chegara pouco antes à Inglaterra, que passava por rigoroso inverno. Nenhum outro, na América Latina, superou esse recorde. O tempo passou, a Portuguesa formaria jogadores extraordinários, mas quase todos acabavam sendo comprados por agremiações mais poderosas financeiramente. Incontáveis os craques que vestiram sua camisa: Ipojucã – Pelé afirmaria, em depoimento, que quando jovem sonhava jogar como ele -, Ivair, Enéas, Dener, Leivinha, Ranulfo, Henrique, Dida, Neivaldo, Reinaldo, Zé Maria, Ditão, Jair Marinho, Jair da Costa, Servílio, Marinho Peres, Pontoni (argentino), Nair, Basílio, Daniel González e Taborda (uruguaios), Cabinho, Pampolini, Wilson Carrasco, os pontas velozes Wilsinho e Ratinho, Dicá, Edu Marangon, Rodrigo Fabri, Leandro Amaral, Ricardo Oliveira e goleiros como Caxambu, Lindolfo, Cabeção, Orlando, Félix – guardião da seleção brasileira campeã em 1970 -, Zecão, Miguel, Aguillera (paraguaio), Clemer… Alguns, como Badeco, maestro do meio campo, Djalma Santos – jamais vi puxetas tão precisas, inacreditáveis -, Capitão – o prenome verdadeiro é Oliude -, Zé Maria, o outro ótimo zagueiro, hoje na Itália, o grande Zé Roberto, jogador de carreira internacional consolidada na Alemanha e artista de nossas últimas seleções, são até hoje torcedores e ídolos da pequena, mas calorosa, torcida lusa. Quando a Portuguesa vai bem, esses torcedores, como em passe de mágica, multiplicam-se. É bom destacar que 8% de todos os jogadores que passaram pela seleção brasileira jogaram determinado período na Portuguesa, sendo que, 4% formaram-se nas escolinhas da lusa. A lista de bons jogadores é enorme e os citados vieram-me no momento da redação do post.
Em 1973, disputávamos o campeonato paulista e tivemos de dividir a taça com o Santos por erros do árbitro Armando Marques. Durante a partida, cometeria uma falha imperdoável ao anular um gol legítimo do ótimo centro-avante luso Cabinho. Na decisão por pênaltis, a Portuguesa desperdiçara três e o Santos acertara dois quando Marques, equivocadamente, encerrou a partida. Errou na matemática, mas nosso Presidente, Osvaldo Teixeira Duarte, entendeu lindamente que houve um êrro de Direito e pediu ao time que se retirasse do campo. Apesar do imbroglio, foi uma alegria. Em 1975, disputamos a final com o São Paulo e perdemos por falhas da arbitragem que, aliás, sempre pendem contra a Lusa. É uma injustiça histórica. Quando a Portuguesa disputou a final do Campeonato Brasileiro em 1996 com o Grêmio, em Porto Alegre, poderíamos até perder por um tento de diferença, mas o gol do time gaúcho ao final levou-nos a esperança de sermos campeões.
Dias difíceis vieram. Nesta década, fomos não apenas para a segunda divisão do campeonato brasileiro, como para a segundona do paulista , categoria que dá “cãibra na vista”, na opinião do célebre Dadá Maravilha. Amargamos e, neste 2007, retornamos às divisões principais dos dois campeonatos.
No dia seis de maio, ganhamos a série B do certame estadual. Um feito. Acabara de dar um recital de piano em Paris e fui ao computador mais próximo, acompanhado da amiga e excelente pianista Sônia Rubinsky. Fiquei eufórico ao saber do título conquistado. Minha mulher, Sônia e eu fomos, a seguir, jantar no apartamento dos amigos Roberts, onde todos aguardavam o instante em que a televisão apresentaria a foto do Presidente eleito da França, pois era o dia do segundo turno. Quando, às oito horas em ponto – tradição no país gaulês –, foi mostrado o retrato de Nicolas Sarkosy, houve alegrias e tristezas. Um amigo, adepto de Segolène Royal, perguntou sobre minha preferência. Disse-lhe apenas que estava um tanto quanto decepcionado. De fato gostaria de ver na tela o emblema da Lusa. Enfim, serviu para boas risadas.
Meu irmão João Carlos, torcedor-símbolo da Portuguesa, convida-me sempre para acompanhá-lo ao estádio quando o jogo é em São Paulo, no Canindé. Não vou. Meu amor pela Lusa é íntimo. Nem pela TV assisto aos jogos, conhecendo os resultados ao final das contendas. Sofro menos. Voltado ao passado, reverencio o trabalho de um grande torcedor, Eduardo Campos Rosmarinho, fundador do Museu Histórico, hoje dirigido pelo competente Vital Vieira Curto. Quantas glórias contidas!
Por outro lado, meu afeto pela Portuguesa data de período romântico, em que jogadores permaneciam nos clubes e amavam a camisa. Hoje tudo mudou. Diria que a massificação do futebol – o esporte mais ventilado em todo o mundo – cresceu de maneira desmesurada e os tempos da moralidade esportiva desapareceram. São os grandes clubes, sempre os mesmos, que estão a ser beneficiados perenemente no Brasil e no Exterior. Nenhum time de nosso país pode manter jogadores, que bem jovens, quando talento existe, vão para todos os continentes. Esses atletas, no estágio brasileiro em clube celeiro, grande ou pequeno, só pensam, não sem razão, no sonho d’além-mar. Só esse fato já não evidenciaria um desequilíbrio abissal entre os melhores times do Brasil e os referenciais de Espanha, Itália, Inglaterra? Se, em disputas de, na realidade, um jogo, times sul-americanos levantam taça em Tóquio quando da Copa Toyota, “aparência” da verdade, nenhum, mas nenhum time latino-americano resistiria minimamente a torneios de longa duração disputados na Europa, justamente pela falta de jogadores extraordinários, pois os melhores de todo o mundo estão a jogar no Velho Continente. É fato.
Sob outra égide, mormente em nossas terras, dirigentes são com freqüência personagens de colunas policiais, a arbitragem é seguidamente contestada, torcidas uniformizadas tornaram-se gangues violentas, bilhetes são adulterados ou ficam em mãos de cambistas, lavagem de dinheiro com a compra e venda de jogadores envolve muita gente e é notíciário constante. Haveria prazer para um torcedor nefelibata, que se afeiçoou um dia a uma bola de borracha com o emblema da terra de seu pai, em freqüentar estádios? Difícil, todavia a fidelidade ao meu time é real, solitária e sem quaisquer possibilidades de abalo.
E a saga da Portuguesa continuará. Prejudicada sempre pelas arbitragens, ela resiste. A esperança está representada por sua pequena, mas fidelíssima torcida, constituída por adultos e jovens. A velha nau encontrou uma vez mais seu rumo, apesar das intempéries, retornando à Série A do Campeonato Brasileiro. Louros ao nosso ex-jogador e hoje técnico Vagner Bennazzi, que conseguiu fazer ressurgir a gloriosa Portuguesa de Desportos. Bem haja, lusa de meu universo lúdico.