Genro Exemplar

José Rinaldo - Desenho a lápis de Maria Fernanda Martins Rosella

Mon Dieu, vous l’avez voulu ainsi,
j’ai reconnu votre main.
J’ai cru la sentir sur mes lèvres.

Georges Bernanos

A vida salutar em família pressupõe entendimento, respeito e afeto entre os participantes. Poder-se-ia dizer que família unida é uma dádiva. Todos os membros seguem suas trajetórias, desenvolvem-se apreendendo todos os impactos da caminhada, assistem ao nascimento de outros entes, ajudando-os a entender o mundo, e encontram um dia o descanso final. Na grande maioria das vezes, seguimos o cortejo derradeiro de nossos ascendentes, conformando-nos com o destino, e aprendemos através de exemplos que tivemos o privilégio de presenciar. Alegrias e tristezas são divididas pelo clã, o que é salvaguarda da coexistência familiar.
Quando um ente querido parte prematuramente, a contrariar a lei natural, há sempre perplexidade. Se ancorado em solo seguro, onde a fé é fundamento, entende o clã como desígnio superior o acontecido. Em outra esfera, se aquele que nos deixa teve o dom da excepcionalidade moral e ética, dir-se-ia, um verdadeiro semeador, a partida é amenizada pelo exemplo. Budistas tibetanos entendem o desaparecimento daquele que só praticou o bem, como expurgo kármico, a levar o homem à compaixão como base para a eliminação dos ciclos da existência.
José Rinaldo Lazarini foi genro exemplar, portanto inesquecível. Estruturado em sólida formação cristã, católico de missa diária, foi filho, marido, genro, pai e amigo sem máculas. A tranqüila formação de berço em Batatais, onde seus pais apontavam-lhe as sendas da integridade do homem, apenas dimensionaria o aprofundamento individual futuro. Neste, todos os espaços foram preenchidos por visão que era motivo de admiração e respeito de todos que o cercavam.
Ao cursar a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (turma de 1987), conheceu nossa primeira filha Maria Beatriz, que comungava com ele princípios de vida. Do casamento, em 1990, nasceriam três de nossas netas. Rarissimamente conheci casal tão harmonioso, que entendia a vida sem choques, a resultar na mínima discórdia sequer.
Na vida profissional, José Rinaldo advogou, mas sua vocação mostrar-se-ia inequívoca, o magistério. Deu aulas em duas Instituições privadas, Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) até o peristilo da derradeira jornada e, durante certo período, nas Faculdades Oswaldo Cruz, a ser notória sua empatia com as sucessivas classes. Todos os anos era homenageado pelos formandos, resultado de ligação amorosa que mantinha com a função e com os alunos. A preparação das aulas traduzia-se na busca da mais aguda inteligibilidade, cercando-se de todas as informações jurídicas do passado e da atualidade que pudessem enriquecer ensinamentos a serem transmitidos aos alunos. Perguntei-lhe certa vez se gostaria de trabalhar em escritório de advocacia e sua resposta imediata não deixaria dúvidas quanto à sua real vocação.
Poderia testemunhar que conheci poucas pessoas tão bem informadas como José Rinaldo. Sua cultura geral tinha solidez e estava rigorosamente a par do que acontecia em nosso país e no Exterior. Todo esse acervo enriquecia ainda mais suas ponderações em classe a respeito de sua disciplina, Direito Tributário.
No cotidiano, sua preocupação fazia-se extrema no que se refere à educação e ao lazer de suas filhas. Acompanhava-as, seguia atentamente o seu desenvolvimento e nesse mister recebia sempre a colaboração inseparável de nossa filha.
Era torcedor do Corinthians. Constantemente freqüentava os jogos do “timão” e conversávamos muito a respeito, pois sabia tudo da minha Portuguesa, seu segundo time de coração. Acompanhei-o várias vezes aos estádios, a assistir ele, indiscriminadamente, jogos do Corinthians ou da Lusa. Num dia em que desabou um aguaceiro inusitado sobre a cidade, fomos, acompanhados de seu fiel amigo Elias, presenciar o jogo de seu time contra o Real Madrid no Morumbi, em certame que daria o título mundial ao Corinthians. Na ida ao estádio, compramos capa descartável de R$ 3,00 e, encharcados, mergulhamos até os joelhos naquela água pouco confiável, mas tudo era festa para José Rinaldo que se esquecia daquelas vicissitudes e externava uma sã alegria. Sua vibração era total.
Em uma manhã de Setembro de 2002, ligou-me a respeito de resultados de exames médicos. Um homem de fé, confiava-me, em momento emotivo, estar muito preocupado com a interpretação feita por seu clínico. Fui com ele à primeira visita ao cirurgião, que o operou semanas após. Começaria um longo calvário que terminaria no dia 29 de Janeiro de 2004. Acompanhamos, todos unidos, o mal que se difundia em seu organismo. Seus pais, sua irmã, minha mulher e eu nos irmanamos num amálgama absoluto. Esse período de tristeza imensa, mas de esperança para aqueles que acreditavam numa recuperação, deu-nos a grande dimensão de José Rinaldo e de nossa filha, que mostrava coragem e dedicação extremas. Se o seu sofrimento era notório, buscava retirar forças amparadas na fé inquebrantável. As crianças entendiam, através do convívio, essa passagem irremediável.
Mencionar alguns diálogos que mantive com José Rinaldo torna-se necessário, pois é a evidência das qualidades desse jovem extraordinário que nos deixou, tão pleno de projetos e de aspirações. Meses antes de sua partida, conversamos sobre o sofrimento. A certa altura, perguntei-lhe como ele apreendia, cônscio que estava do mal inexorável, a reação à dor. Disse-me que, diante de toda crise dolorosa que surgia com freqüência cada vez maior, oferecia seu sofrimento como penitência e orava para aqueles que, naquele instante, estavam a suportar dores mais intensas. Em outra oportunidade, a anteceder a derradeira internação hospitalar, perguntei-lhe a respeito de alguma orientação que quisesse porventura transmitir-me, a aliviá-lo naqueles momentos críticos. Asseverou-me que deixava nas mãos de Deus e de nossa filha a seqüência possível, mas lamentava não poder estar sentado na praia com seu pai a olhar o pôr do sol.
Dias após sua morte, viajava eu para a Bélgica, a fim de recitais e gravação de um CD de Música Contemporânea de compositores belgas. Três noites de registros fonográficos. Encerrada a última sessão, às 5 horas da manhã, pedi a Johan Kennivé, engenheiro de som, amigo e confidente, que apagasse todas as luzes da Capela de Sint-Hilarius em Mullem, deixando apenas aquela sobre o teclado do piano. Em plena comunhão com meu genro José Rinaldo, considerado um filho, prestei minha homenagem a essa figura querida, e os sons de Jesus Alegria dos Homens de J.S.Bach ecoaram pelas pedras milenares e pelo sacrário de Sint-Hilarius.

Clique aqui para ouvir “Jesus Alegria dos Homens” de J.S.Bach, transcrito por Myra Hess, com J.E.M. ao piano.

My son-in-law, José Rinaldo, died four years ago, in January 2004. A man of faith, a model son, husband and father, he met an early death after a long and painful illness that he accepted as a penitence. A few days after his death I flew to Belgium to record a CD of Belgian contemporary music. After three nights of recordings in a chapel in the city of Mullem, in a freezing winter dawn I paid a tribute to his memory with J.S.Bach’s Jesus Joy of Man’s Desiring. It is possible to listen to this recording by selecting the link embedded in the post.