Navegando Posts publicados em março, 2008

Lenda Viva

Comparada às instituições de ensino de música na Europa, a Academia dos Amadores de Música é pequena e instalada em local até acanhado, no segundo andar de velho prédio situado à Rua Nova da Trindade, em Lisboa (vide Academia de Amadores de Música, categoria “Impressões de Viagem”, 26/05/07). Contudo, o que fez com que se tornasse verdadeira referência foi o fervor a impulsioná-la em períodos distintos.
Sua criação data de 1884. A partir da ação determinante de figuras ilustres de Portugal, nasceria a Real Academia de Amadores de Música, hoje designada Academia de Amadores de Música. Assistiu a instituição a inúmeros empreendimentos, que se tornaram exemplos na cultura musical portuguesa.
Logo após as guerras de 1914/18 e 1939/45, sofreria a Academia sensíveis declínios, que soube atenuar com o tempo. Frisem-se duas direções extraordinárias, integração absoluta na condução da instituição. Primeiramente, o Padre Tomás Borba e, mais tarde, o grande compositor e pensador português Fernando Lopes-Graça (1906-1994). O ilustre músico entrou para o corpo docente da Academia em 1941, participando da direção juntamente com o Padre Tomás Borba até a morte deste.
A Academia está a complementar o ensino de Música em Portugal de maneira competente, corroborando a ação do Conservatório Nacional, situado bem próximo, do qual o Padre Tomás Borba foi igualmente um dos mais ilustres professores.
Em 1949, Lopes-Graça seria mentor da criação do coro misto. Durante o longo período em que essa figura maior da música portuguesa do século XX esteve à frente da Instituição, foram criados movimentos como a Sonata, realização de concertos históricos, guardiões da cultura musical de vanguarda em Portugal. José Gomes Ferreira relata, em livro já mencionado no post de Maio passado, debates acalorados, nos quais personagens ilustres nas áreas de música, artes plásticas e literatura confrontavam idéias.
Reduto de resistência ao regime ditatorial de Salazar, a Academia teria sempre de enfrentar sérias dificuldades. Instalada há décadas no mesmo endereço, segue seu caminho honesto, dedicado, e o fervor impregnado em suas paredes, que tanto viram e ouviram, testemunha o compromisso.
A convite de Lopes-Graça, dei meu primeiro recital de piano em Portugal em Julho de 1959, na velha Academia. Personalidades convidadas pelo generoso músico lá estiveram e, para o jovem que eu era, foi um maravilhamento. Dias após, Lopes-Graça generosamente convidou-me para o convescote anual do coro da Academia de Amadores de Música, por ele dirigido. Fomos de comboio a cantar até Sintra. Plena felicidade.
Tantas vezes cá me apresentei… Nas décadas de 80 e 90, visitava, sempre que possível, o extraordinário músico Lopes-Graça, personalidade de fortes posições, contrárias à ditadura imposta por Salazar, o que lhe valeria sérios dissabores. Jamais cedeu em suas convicções. Um íntegro.

Nesta semana, dou pela primeira vez um curso na Academia. O ótimo professor Antônio Ferreirinho, violonista e músico sensível, organizou com cuidado, junto à Direção da Academia, a programação intensa: seis conferências e seis master classes. É comovente a participação de alunos tão interessados nas conferências, apresentando-se com imenso amor à música. Ouço talentos autênticos, muito bem preparados por mestres competentes.
Revisitar a velha Academia e subir as escadas de madeira, gastas pelas passadas de tanta história, fazem-me refletir e perceber que valeu à pena trilhar um caminho amoroso, em comunhão total com a música. Lopes-Graça está lá a assistir. Não é difícil entender seus eflúvios. Basta liberar o pensamento.


Academia de Amadores de Música – A Living Legend
Once again in Lisbon, for the first time I gave a course at the Academia de Amadores de Música: six conferences followed by six master classes. Revisiting the Academia, climbing its old stairs full of the memories of remarkable moments of the past, feeling the impalpable emanations of the great Portuguese composer Lopes-Graça all over the place, everything stirs up pleasant sensations, making me think my lifetime commitment to music was well worth the effort.

Meu Desiderato Sonoro

Detalhe da torre da Capela de Sint-Hilarius, séc. XI, Mullem - Bélgica

O retorno à Capela de Sint-Hilarius, em Mullem, é sempre precedido de expectativa (vide Mullem, 01/05/07 e A Comunhão das Pedras, 03/05/07, Categoria Impressões de Viagem). Se a comunhão se dá entre o templo e o intérprete nesses quase dez anos, considere-se que a permanência deste é tão ínfima comparada aos dez séculos da construção da Capela. Sob outra égide, durante um ano preparo-me para viver os três dias de magia, nos quais as pedras milenares, o piano absoluto, a apurada técnica do engenheiro de som Johan Kennivé e eu nos integramos. Nós dois estamos sempre a buscar os limites de nossas possibilidades.
Nestes três dias frios na planície flamenga, só existe um compromisso, expressado em nossa serenidade e comunhão com o ambiente. Questiono sempre a respeito da noção de felicidade. Ela existe no sentido de sabermos o patamar para a colocação de nossos almejos. Creio que, nesses dez anos, Mullem tem sido o meu norte sonoro, o lugar em que o resultado da decantação da idade desvela a intensidade da frase de meu amigo André Posman da Rode Pomp, que antes da primeira gravação na planície disse-me afetuosamente que chegara o momento em que deveria deixar a minha herança musical. Esta, adquirida através das décadas, assim entendo hoje, tem o seu momento de encontro com o registro. Muito está em texto anterior (vide Interpretação IV, Categoria Música, 29 de Fevereiro), quando abordo a síntese. Ampliaria o conceito. Haveria, em acréscimo, a síntese da identificação. Sint-Hilarius ali está em sua religiosidade milenar a acolher o nosso de profundis. Como reza o Eclesiastes, há “O” tempo para tudo. Importa entender a sua passagem e viver a realidade de sua transitoriedade. Os três dias de gravações fixaram aquilo em que acredito, a leitura do autor escolhido e acalentado durante o ano. Essa interação, muito menos do que estipular juízo de valor, serve para externar o limite pessoal, a fim de que a herança não permita o mínimo sentido do simulacro. Gabriel Fauré (1845-1924) foi o compositor escolhido. Música do inefável. As modulações constantes que convidam às diferenciações dos timbres, aos diversos relevos mercê da polifonia de extrema elegância e à pedalização plena de flexibilizações, ecoaram pelas paredes acolhedoras do templo.
Após os dias mágicos, a volta a Gent, nesta gélida manhã, faz-me considerar Sint-Hilarius. A Capela tem-me acolhido generosamente nestes dez anos. Ela permanecerá a acalentar tantos sonhos de outros músicos, como os meus, nas próximas décadas ou séculos.

During three nights, in the millenary chapel of Sint-Hilarius, in Mullem, I recorded a CD with the ineffable music of the French composer Gabriel Fauré (1845 – 1924). Now, on my way back to Gent, I think of the past, on how generously this chapel has received me for the last ten years and on how it will go on fulfilling the dreams of other musicians, as it did with mine, for the next decades, or centuries.

O Lúdico e o Alento

Recitais extras em Gent, para uma platéia de crianças

A atividade pianística levou-me a muitos lugares. Habitualmente, o público de concerto tem perfil definido. Se a geografia muda, se a recepção do ouvinte tem percepção diferenciada, tanto no quesito repertório como da própria escuta, o inusitado, a surgir esporadicamente fica gravado na memória. Quantos não foram os recitais por mim esquecidos e pelo público também, assim como aqueles que indelevelmente permanecem registrados.
O fato de apresentar-me em Gent em dois recitais extras para uma platéia de crianças, a convite de meu bom amigo André Posman, é estimulante e faz-me recordar outras poucas apresentações. Há certa aproximação emotiva entre duas categorias de recitais: o frente às crianças e aquele diante de enfermos. Diria que um outro approach se verifica, tornando-nos mais sensíveis à mínima recepção de público particularizado.
Aqui em Gent, dei prioridade às obras que pudessem tocar o interior de cada criança. As peças descritivas dos notáveis cravistas provocam reações positivas nos miúdos. Querem saber mais, entendem associações título-música, encantam-se com o canto dos pássaros ou o movimento do rodamoinho expressos por Jean-Philipe Rameau. Do romantismo, peças desse Eu interior despertam uma espécie de comoção, e o ondular da barcarola é facilmente apreendido pela geração a despertar. Se ritmos brasileiros podem parecer estranhos, aqueles mais internacionalizados permanecem preferenciais.

Club des Jeunes de Garches, 1959. (clique para ler a íntegra)

Essa experiência salutar levou-me a pensar em outras três, ocorridas bem anteriormente. Estou a me lembrar de um recital em Garches, bem perto de Paris, quando em 1959 apresentei-me para paraplégicos e tetraplégicos. Foi uma sensação única para o jovem que eu era. Figuras nos leitos, colados ao piano, reagiam a cada melodia, a cada acorde e a empatia foi total. Não me esquecerei jamais daqueles rostos que recebiam, através dos sons, mensagem de alento, a traduzir-se em sorrisos compadecidos.


Horta, Faial, Açores, 1992.

Em outra oportunidade em 1992, na bela cidade da Horta, capital do Faial, uma das nove ilhas do arquipélago dos Açores, fui convidado à noite, após o recital oficial, para uma apresentação junto aos miúdos do Conservatório local, muitíssimo bem equipado, diga-se. Outro repertório, que foi ouvido com toda a atenção pelos meninos. Faziam-me perguntas e eu respondia com alguma obra pertinente. Essa interação, também inesquecível, fez-me pensar nessa participação tão importante, praticada aliás por tantos intérpretes, e que se diferencia absolutamente do contacto com o público habitual dos concertos.
Na cidade que viu minha mãe nascer, Ribeirão Preto, certa vez apresentei-me em um hospital frente a muitos doentes, alguns terminais. Foi após um recital patrocinado por sociedade de concertos da cidade. Sabedor da qualidade dos enfermos, escolhi obras que pudessem exaltar o ser humano, criações que tivessem conteúdo religioso ou de apelo à natureza. O resultado foi extraordinário e soube, através de médicos do hospital, que muitos dos doentes comentaram durante dias a apresentação, menos pelo intérprete, mais pelo que de significativo a apresentação transmitiu.

Gent, Bélgica, 2008.

Saio hoje absolutamente pleno dessa apresentação em Gent. Ao tocar Viva-Villa de Gilberto Mendes, vários miúdos subiram a escada que leva ao palco e começaram alegremente a dançar. Nunca presenciara tal fato! As crianças captaram mensagens que foram passadas com sinceridade.
A noite reserva-me o último dia de gravação de mais um CD para o selo De Rode Pomp. O coração está em paz. Bem haja!

On how a recital for children in Gent reminded me of other occasions when I faced special audiences: for disabled persons in Garches (France); for children of the Conservatory of Music in Faial (Azores); for patients of a hospital in Ribeirão Preto (Brazil) and, most recently, for elementary school children in Gent (Belgium).