A Grandiosidade do Fragmento ou Esboço
Il semble que la perfection soit atteinte non quand il n’y a plus rien à ajouter, mais quand il n’y a plus rien à retrancher.
Saint-Exupéry
Desde Julho de 2000 intrigava-me a obra de Victor Servranckx. Fora à exposição de suas pinturas e desenhos no Museum Voor Schone Kunsten, em Gent, juntamente com meu amigo holandês Joep Huiskamp, professor da Universidade de Eidhoven e pintor de mérito. Neste ano, novamente na cidade, ao voltar do almoço no centro medieval de Gent passo por um antiquário e encontro, entre os livros de arte, um sobre Victor Servranckx (Bilcke, Maurits. Servranckx. Bruxelles, Meddens, 1964, 16 págs., 24 págs. de ilustrações). Um exemplar que adquirira no ano anterior extraviou-se em uma de minhas viagens.
Victor Servranckx é considerado o precursor oficial da arte abstrata na Bélgica. Importa considerar que, enquanto muitos artistas partiram da Bélgica para outros países, Paris como epicentro – entre estes Vantongerloo, Marthe Donas, Seuphor -, a permanência de Servranckx em território belga, fiel à arte abstrata, é um fato. Muitos de seus colegas retornaram ao figurativo, falta de uma recepção maior frente ao mercado. Segundo Marcel Duchateau, “por sua própria natureza Servranckx estava predestinado a pintar abstratamente”. Aos 16 anos, estudando na Academia, ainda tinha tempo para trabalhar em uma fábrica de papel pintado. Bem mais tarde, já como empreendedor, suas pesquisas relativas ao emprego das cores na arte do papel pintado teriam influência na Europa. Servranckx, a convite de Hannes Meyer, sucessor de Walter Gropius do Bauhaus de Weimar, estabeleceu, juntamente com Kandinsky, Feininger, Klee e outros, uma geração nova de artistas.
Na exposição de 2000, impressionou-me o sentido da dimensão de suas telas abstratas, o preenchimento dos espaços e a harmonia desses grandes “painéis” coloridos. Afirma Servranckx: “eu objetivo as formas puras e perfeitas”. E continua “tenho menos necessidade da arte pura do que da arte completa”.
Sob outra égide, fascinaram-me sempre as noções do fragmento e do esboço, idéias iniciais a levar à obra maior. Música, literatura, escultura, arquitetura, pintura conhecem bem os procedimentos geradores. Servem como propulsão às idéias que continuam a surgir e que encaminham pouco a pouco, ou num lampejo, à criação final. Faz parte do processo. Na minha área específica, a noção do fragmento pode ser observada através do esboço. Poucos compassos e o motivo gerador da composição norteia o criador. Observei muito esse procedimento em compositores como Claude Debussy (1862-1918) e Henrique Oswald (1852-1931). Cadernos de anotações ou folhas isoladas podem conter os princípios da obra finda. Temas, estruturas outras, fixadas em seu mínimo essencial, conduzirão o compositor à criação. Em contexto outro, quantas não são as miniaturas, gênero praticado por tantos – como o ilustre açoriano Francisco de Lacerda (1869-1934) (clique para ouvir Oraison dominicale des Castors e La Chanson des Pingouins) – a estabelecerem critérios de plena realização em estruturas reduzidas em sua essência. Estou a me lembrar de frase do pintor francês Georges Braque (1882-1963), lida em minha juventude e nunca esquecida: Le tableau est fini quand il a effacé l’idée. Haveria sempre uma distância entre o labor e a criação, paradoxalmente amalgamadas. Contudo, seria apenas na produção finalizada, seja pintura, obra literária, composição, ou mesmo interpretação, que deve ser esquecido o trabalho da edificação. Entre os pintores, tendo conhecido e freqüentado a casa de alguns membros do Grupo Santa Helena, como Mário Zanini e Manuel Martins, assim também a casa de Maria Isabel Oswald Monteiro, filha de Carlos Oswald, verifiquei dezenas de esboços e fragmentos em papéis de dimensões diferenciadas. O que causa a indagação, no caso de Servranckx, é a sistematização em mínimos retângulos apenas esboçados, ou findos, mas com as rubricas do pintor. É a engrenagem do pensar vislumbrando o macro. Diria, o multum in minimo na sua acepção total.
Da exposição daquele ano, algo contundente ocorreria, fazendo-me partir para muitas elucubrações que se mantiveram no de profundis durante tantos anos. Em determinada sala, enormes molduras expunham muitas dezenas de pequenos desenhos, cuidadosamente cortados na dimensão aproximada de uma caixa de fósforo, e estávamos diante de traços, riscos apenas, contornos que poderiam resultar em telas futuras. Como se não bastasse, parte considerável desses esboços tinha as iniciais do autor ou algo que a identificava. Essa atitude pressupõe a obra finda, mesmo que em seu sentido embrionário. Haveria a plena consciência da valoração de um mínimo fragmento. Guardou-os, o que representa a possibilidade da perpetuação da memória. Na realidade, lá estaria Servranckx, paradoxalmente, a indicar o princípio e o fim. As telas monumentais do artista denunciariam a idéia geradora, fragmentos de segmentos essenciais de seus grandes trabalhos pictóricos, a levarem o futuro observador a montagens hipotéticas, uma espécie de puzzle imaginário, onde as peças, no caso, assemelham-se à grande obra, mas não necessariamente se justapõem. Em outro contexto, Servranckx observa: “Interessa-me menos a obra de arte do que o ‘signo’ sob o qual ela nasce, que a ‘revolve’ e de onde ela emana. A obra de arte não é, na minha opinião, OBJETO de arte, mas o conteúdo intrínseco, a qualidade, no tempo e no espaço, de uma experiência vital construtiva e criativa”.
Saí do antiquário plenamente feliz com o livro sobre Servranckx. Estimulava a inspiração para o recital de amanhã, 13 de Março, na Rode Pomp, lugar que há treze anos é parte integrante de minha vida.
Considerations on the works of the Belgian abstract painter Victor Servranckx (1897 – 1965) and his notion of fragment.