O Lúdico e o Alento
A atividade pianística levou-me a muitos lugares. Habitualmente, o público de concerto tem perfil definido. Se a geografia muda, se a recepção do ouvinte tem percepção diferenciada, tanto no quesito repertório como da própria escuta, o inusitado, a surgir esporadicamente fica gravado na memória. Quantos não foram os recitais por mim esquecidos e pelo público também, assim como aqueles que indelevelmente permanecem registrados.
O fato de apresentar-me em Gent em dois recitais extras para uma platéia de crianças, a convite de meu bom amigo André Posman, é estimulante e faz-me recordar outras poucas apresentações. Há certa aproximação emotiva entre duas categorias de recitais: o frente às crianças e aquele diante de enfermos. Diria que um outro approach se verifica, tornando-nos mais sensíveis à mínima recepção de público particularizado.
Aqui em Gent, dei prioridade às obras que pudessem tocar o interior de cada criança. As peças descritivas dos notáveis cravistas provocam reações positivas nos miúdos. Querem saber mais, entendem associações título-música, encantam-se com o canto dos pássaros ou o movimento do rodamoinho expressos por Jean-Philipe Rameau. Do romantismo, peças desse Eu interior despertam uma espécie de comoção, e o ondular da barcarola é facilmente apreendido pela geração a despertar. Se ritmos brasileiros podem parecer estranhos, aqueles mais internacionalizados permanecem preferenciais.
Essa experiência salutar levou-me a pensar em outras três, ocorridas bem anteriormente. Estou a me lembrar de um recital em Garches, bem perto de Paris, quando em 1959 apresentei-me para paraplégicos e tetraplégicos. Foi uma sensação única para o jovem que eu era. Figuras nos leitos, colados ao piano, reagiam a cada melodia, a cada acorde e a empatia foi total. Não me esquecerei jamais daqueles rostos que recebiam, através dos sons, mensagem de alento, a traduzir-se em sorrisos compadecidos.
Em outra oportunidade em 1992, na bela cidade da Horta, capital do Faial, uma das nove ilhas do arquipélago dos Açores, fui convidado à noite, após o recital oficial, para uma apresentação junto aos miúdos do Conservatório local, muitíssimo bem equipado, diga-se. Outro repertório, que foi ouvido com toda a atenção pelos meninos. Faziam-me perguntas e eu respondia com alguma obra pertinente. Essa interação, também inesquecível, fez-me pensar nessa participação tão importante, praticada aliás por tantos intérpretes, e que se diferencia absolutamente do contacto com o público habitual dos concertos.
Na cidade que viu minha mãe nascer, Ribeirão Preto, certa vez apresentei-me em um hospital frente a muitos doentes, alguns terminais. Foi após um recital patrocinado por sociedade de concertos da cidade. Sabedor da qualidade dos enfermos, escolhi obras que pudessem exaltar o ser humano, criações que tivessem conteúdo religioso ou de apelo à natureza. O resultado foi extraordinário e soube, através de médicos do hospital, que muitos dos doentes comentaram durante dias a apresentação, menos pelo intérprete, mais pelo que de significativo a apresentação transmitiu.
Saio hoje absolutamente pleno dessa apresentação em Gent. Ao tocar Viva-Villa de Gilberto Mendes, vários miúdos subiram a escada que leva ao palco e começaram alegremente a dançar. Nunca presenciara tal fato! As crianças captaram mensagens que foram passadas com sinceridade.
A noite reserva-me o último dia de gravação de mais um CD para o selo De Rode Pomp. O coração está em paz. Bem haja!
On how a recital for children in Gent reminded me of other occasions when I faced special audiences: for disabled persons in Garches (France); for children of the Conservatory of Music in Faial (Azores); for patients of a hospital in Ribeirão Preto (Brazil) and, most recently, for elementary school children in Gent (Belgium).