Meu Desiderato Sonoro
O retorno à Capela de Sint-Hilarius, em Mullem, é sempre precedido de expectativa (vide Mullem, 01/05/07 e A Comunhão das Pedras, 03/05/07, Categoria Impressões de Viagem). Se a comunhão se dá entre o templo e o intérprete nesses quase dez anos, considere-se que a permanência deste é tão ínfima comparada aos dez séculos da construção da Capela. Sob outra égide, durante um ano preparo-me para viver os três dias de magia, nos quais as pedras milenares, o piano absoluto, a apurada técnica do engenheiro de som Johan Kennivé e eu nos integramos. Nós dois estamos sempre a buscar os limites de nossas possibilidades.
Nestes três dias frios na planície flamenga, só existe um compromisso, expressado em nossa serenidade e comunhão com o ambiente. Questiono sempre a respeito da noção de felicidade. Ela existe no sentido de sabermos o patamar para a colocação de nossos almejos. Creio que, nesses dez anos, Mullem tem sido o meu norte sonoro, o lugar em que o resultado da decantação da idade desvela a intensidade da frase de meu amigo André Posman da Rode Pomp, que antes da primeira gravação na planície disse-me afetuosamente que chegara o momento em que deveria deixar a minha herança musical. Esta, adquirida através das décadas, assim entendo hoje, tem o seu momento de encontro com o registro. Muito está em texto anterior (vide Interpretação IV, Categoria Música, 29 de Fevereiro), quando abordo a síntese. Ampliaria o conceito. Haveria, em acréscimo, a síntese da identificação. Sint-Hilarius ali está em sua religiosidade milenar a acolher o nosso de profundis. Como reza o Eclesiastes, há “O” tempo para tudo. Importa entender a sua passagem e viver a realidade de sua transitoriedade. Os três dias de gravações fixaram aquilo em que acredito, a leitura do autor escolhido e acalentado durante o ano. Essa interação, muito menos do que estipular juízo de valor, serve para externar o limite pessoal, a fim de que a herança não permita o mínimo sentido do simulacro. Gabriel Fauré (1845-1924) foi o compositor escolhido. Música do inefável. As modulações constantes que convidam às diferenciações dos timbres, aos diversos relevos mercê da polifonia de extrema elegância e à pedalização plena de flexibilizações, ecoaram pelas paredes acolhedoras do templo.
Após os dias mágicos, a volta a Gent, nesta gélida manhã, faz-me considerar Sint-Hilarius. A Capela tem-me acolhido generosamente nestes dez anos. Ela permanecerá a acalentar tantos sonhos de outros músicos, como os meus, nas próximas décadas ou séculos.
During three nights, in the millenary chapel of Sint-Hilarius, in Mullem, I recorded a CD with the ineffable music of the French composer Gabriel Fauré (1845 – 1924). Now, on my way back to Gent, I think of the past, on how generously this chapel has received me for the last ten years and on how it will go on fulfilling the dreams of other musicians, as it did with mine, for the next decades, or centuries.