Navegando Posts publicados em março, 2008

A Grandiosidade do Fragmento ou Esboço

Il semble que la perfection soit atteinte non quand il n’y a plus rien à ajouter, mais quand il n’y a plus rien à retrancher.
Saint-Exupéry

Desde Julho de 2000 intrigava-me a obra de Victor Servranckx. Fora à exposição de suas pinturas e desenhos no Museum Voor Schone Kunsten, em Gent, juntamente com meu amigo holandês Joep Huiskamp, professor da Universidade de Eidhoven e pintor de mérito. Neste ano, novamente na cidade, ao voltar do almoço no centro medieval de Gent passo por um antiquário e encontro, entre os livros de arte, um sobre Victor Servranckx (Bilcke, Maurits. Servranckx. Bruxelles, Meddens, 1964, 16 págs., 24 págs. de ilustrações). Um exemplar que adquirira no ano anterior extraviou-se em uma de minhas viagens.
Victor Servranckx é considerado o precursor oficial da arte abstrata na Bélgica. Importa considerar que, enquanto muitos artistas partiram da Bélgica para outros países, Paris como epicentro – entre estes Vantongerloo, Marthe Donas, Seuphor -, a permanência de Servranckx em território belga, fiel à arte abstrata, é um fato. Muitos de seus colegas retornaram ao figurativo, falta de uma recepção maior frente ao mercado. Segundo Marcel Duchateau, “por sua própria natureza Servranckx estava predestinado a pintar abstratamente”. Aos 16 anos, estudando na Academia, ainda tinha tempo para trabalhar em uma fábrica de papel pintado. Bem mais tarde, já como empreendedor, suas pesquisas relativas ao emprego das cores na arte do papel pintado teriam influência na Europa. Servranckx, a convite de Hannes Meyer, sucessor de Walter Gropius do Bauhaus de Weimar, estabeleceu, juntamente com Kandinsky, Feininger, Klee e outros, uma geração nova de artistas.
Na exposição de 2000, impressionou-me o sentido da dimensão de suas telas abstratas, o preenchimento dos espaços e a harmonia desses grandes “painéis” coloridos. Afirma Servranckx: “eu objetivo as formas puras e perfeitas”. E continua “tenho menos necessidade da arte pura do que da arte completa”.

Victor Servranckx: fragmento ou esboço.

Sob outra égide, fascinaram-me sempre as noções do fragmento e do esboço, idéias iniciais a levar à obra maior. Música, literatura, escultura, arquitetura, pintura conhecem bem os procedimentos geradores. Servem como propulsão às idéias que continuam a surgir e que encaminham pouco a pouco, ou num lampejo, à criação final. Faz parte do processo. Na minha área específica, a noção do fragmento pode ser observada através do esboço. Poucos compassos e o motivo gerador da composição norteia o criador. Observei muito esse procedimento em compositores como Claude Debussy (1862-1918) e Henrique Oswald (1852-1931). Cadernos de anotações ou folhas isoladas podem conter os princípios da obra finda. Temas, estruturas outras, fixadas em seu mínimo essencial, conduzirão o compositor à criação. Em contexto outro, quantas não são as miniaturas, gênero praticado por tantos – como o ilustre açoriano Francisco de Lacerda (1869-1934) (clique para ouvir Oraison dominicale des Castors e La Chanson des Pingouins) – a estabelecerem critérios de plena realização em estruturas reduzidas em sua essência. Estou a me lembrar de frase do pintor francês Georges Braque (1882-1963), lida em minha juventude e nunca esquecida: Le tableau est fini quand il a effacé l’idée. Haveria sempre uma distância entre o labor e a criação, paradoxalmente amalgamadas. Contudo, seria apenas na produção finalizada, seja pintura, obra literária, composição, ou mesmo interpretação, que deve ser esquecido o trabalho da edificação. Entre os pintores, tendo conhecido e freqüentado a casa de alguns membros do Grupo Santa Helena, como Mário Zanini e Manuel Martins, assim também a casa de Maria Isabel Oswald Monteiro, filha de Carlos Oswald, verifiquei dezenas de esboços e fragmentos em papéis de dimensões diferenciadas. O que causa a indagação, no caso de Servranckx, é a sistematização em mínimos retângulos apenas esboçados, ou findos, mas com as rubricas do pintor. É a engrenagem do pensar vislumbrando o macro. Diria, o multum in minimo na sua acepção total.

Victor Servranckx: fragmento ou esboço.

Da exposição daquele ano, algo contundente ocorreria, fazendo-me partir para muitas elucubrações que se mantiveram no de profundis durante tantos anos. Em determinada sala, enormes molduras expunham muitas dezenas de pequenos desenhos, cuidadosamente cortados na dimensão aproximada de uma caixa de fósforo, e estávamos diante de traços, riscos apenas, contornos que poderiam resultar em telas futuras. Como se não bastasse, parte considerável desses esboços tinha as iniciais do autor ou algo que a identificava. Essa atitude pressupõe a obra finda, mesmo que em seu sentido embrionário. Haveria a plena consciência da valoração de um mínimo fragmento. Guardou-os, o que representa a possibilidade da perpetuação da memória. Na realidade, lá estaria Servranckx, paradoxalmente, a indicar o princípio e o fim. As telas monumentais do artista denunciariam a idéia geradora, fragmentos de segmentos essenciais de seus grandes trabalhos pictóricos, a levarem o futuro observador a montagens hipotéticas, uma espécie de puzzle imaginário, onde as peças, no caso, assemelham-se à grande obra, mas não necessariamente se justapõem. Em outro contexto, Servranckx observa: “Interessa-me menos a obra de arte do que o ‘signo’ sob o qual ela nasce, que a ‘revolve’ e de onde ela emana. A obra de arte não é, na minha opinião, OBJETO de arte, mas o conteúdo intrínseco, a qualidade, no tempo e no espaço, de uma experiência vital construtiva e criativa”.
Saí do antiquário plenamente feliz com o livro sobre Servranckx. Estimulava a inspiração para o recital de amanhã, 13 de Março, na Rode Pomp, lugar que há treze anos é parte integrante de minha vida.

Considerations on the works of the Belgian abstract painter Victor Servranckx (1897 – 1965) and his notion of fragment.

Revisitar Emoções

J.E.M. em desenho de Maria Fernanda Martins Rosella, Março de 2008.

Retornar à Bélgica e ao Portugal de meu sangue é sempre prazeroso, pois revisito sensações musicais e olhares amigos. A ansiedade só existe quando o local é desconhecido. Este, ao tornar-se familiar, apenas caracterizará expectativa de novos encontros.
O ato voluntário de hoje preferenciar pouquíssimas apresentações públicas, que ocorrem basicamente no Exterior, seria conseqüência de longa reflexão a respeito da música e de sua importância em minha vida. Se o estudo pianístico permanece um norte, gravação e repertório são decorrências e continuam a povoar meu universo sonoro. Sob aspecto outro, há determinadas fases da existência em que bifurcações na senda trilhada fazem-nos escolher um caminho a apresentar paisagens que imaginávamos existir, mas diversas de outras tantas, fosse diferente a estrada. Esta pode ser plena de gente, iluminada, mediática, provavelmente a expor pouca margem à introspecção. Aquela, voluntariamente serena, a evidenciar o que sabemos amar, fulcro da paz interior acalentada e perene meta a ser atingida. Cada CD gravado na planície flamenga, na milenar Capela de Sint-Hilarius, em Mullem, é um ato de afeto. Toda a longa preparação tem datas e horários previstos com um ano a anteceder o encontro. Atravessar o oceano para esse amálgama, que só entendo se absoluto, leva-me à felicidade de antever momentos únicos, quando busco os meus limites na interação com as reverberações que Sint-Hilarius me proporciona.
Haverá os recitais em Gent, um integrando a temporada da Rode Pomp, o outro para crianças. Após, curso em Lisboa e recitais em Évora, Coimbra e Braga. Estarei atento e a escrever posts para o blog. Em São Paulo, Magnus e Regina Maria cuidarão das inserções com competência e dedicação. Minha filha Maria Fernanda deverá encontrar-se com o pai em Lisboa, e idéias não faltarão para seus desenhos.
As viagens do ano passado resultaram em textos. Eles continuarão a surgir, pois o olhar estará a observar as transformações dos lugares, das pessoas e as nossas também. Cada ano acumulamos sensações que provocam o sentir diferentemente. O certo, contudo, é reencontrar intensidades emotivas permanentes, pois as mudanças, quando fidelidade na amizade existe, não atingem essencialidades.

J.E.M. em desenho da neta Emanuela, 4 anos.

Possivelmente escreverei posts mais curtos, devido à imprevisibilidade do tempo disponível. Serão constantes, porém. Quebrada a rotina, está-se a mercê do imponderável. Novamente, buscarei acentuar mais o que me causa emoção àquilo que, mesmo a provocar impacto, pode ter tido germinação fugaz. Que sejamos cúmplices nessa nova peregrinação sonora e visual.

Emotions Revisited:
Once more a fly to Belgium and Portugal for recitals and to record a new CD. My posts will not be interrupted, but will be shorter and more frequent. Let us be partners in this new experience.

O Espírito de Síntese

Gravura japonesa - Metamorfose da Lua, tocador de biwa. Autor: Hônen. 1891

Le progrès en art
ne consiste pas à
l’étendre ses limites,
mais à les mieux connaître.

Georges Braque

O tema é sempre instigante. Haveria período de regresso às estruturas e formas clássicas por criadores e intérpretes, após a chegada à plena maturidade? Mencionara texto de Elliot Jaques (vide Leituras sobre o Himalaia (III), categoria Leituras e Personalidades, 01/02/08), no qual fases distintas em torno da maturidade fazem-se atuantes.
Seria possível entender que o ser humano, ao atingir a plenitude da atividade, tenha reflexões em torno de um ocaso que, apesar de mais ou menos distante, antolha-se real, iniciando, mesmo em pleno desenvolvimento criativo, o caminho em direção à síntese. Pareceria normal esse trilhar, nem sempre aceito por muitos ao “não” sentirem realidades que se aproximam.
A revisita a padrões mais tradicionais, é seguida por quantidade apreciável daqueles que se dedicam às artes, criando ou reproduzindo – há sempre outra categoria de criação destinada ao intérprete. Não temos na língua portuguesa uma palavra equivalente à francesa classicisation, a definir essa “evolução” natural ao passado. Temos classicismo, que não tem o mesmo alcance. Contudo, a classicisation seria o debruçar de um criador sobre técnicas que já foram utilizadas. O novo approach traria, sob outra égide, “economia” de todo o material antes empregado, a depender das individualidades. O regresso estabelece o chamado espírito de síntese. Menos propenso a novas aventuras no campo da arte, todo o acervo apreendido ao longo da trajetória estaria como salvaguarda do que virá a ser criado.
A uma pergunta minha sobre dissertações e teses, o ilustre jurista e professor Guido Soares disse-me, no início dos anos 90, que a última das teses universitárias deve versar sobre aquilo que o docente mais conhece. Trata-se de um olhar, como se estivesse sobrevoando a sua especificidade. Contempla o conhecimento, sem tergiversar, pois a competência jamais assim deve proceder, e nesse sobrevôo vêm à pena o acúmulo da trajetória, os conceitos definitivos. Teríamos, pois, a síntese dimensionada.
Inúmeros foram os compositores que nos últimos anos de vida tiveram essa permanência na síntese. O caso de Franz Liszt (1811-1886) é flagrante. Dos anos de absoluto arrojo piano-virtuosístico, em que nenhum desafio deixava de ser transposto, à Sainte-Elisabeth e Christus, evidencia o autor o desinteresse pelo efeito até superficial e a concentração volta-se a interesses espirituais a agirem sobre a composição. Quando escreve Nuage Gris, pequena peça de apenas 48 compassos, dir-se-ia que a sínteses da síntese lá está contida. Escrita aos 24 de Agosto de 1881, a pequena peça revela algumas das mais marcantes características estruturais do compositor.
Do romantismo exacerbado, Alexander Scriabine (1872-1915) encaminha-se progressivamente ao entendimento da música como integrante de outras artes, num amálgama absoluto. Nos últimos anos de existência, a aspiração místico-reflexiva tornar-se-ia decisiva. Contudo, ingredientes do técnico pianístico, paradoxalmente, permaneceriam íntegros. Claude Debussy (1862-1918) realiza com os Études para piano, de 1915, síntese absoluta de seus procedimentos. Portador de um câncer que o levaria à morte, reconheceria, no período da composição da obra, que ela estava no cimo da criação. Meses após finalizar os 12 Études, escreve uma pequena peça de 21 compassos, Élégie, rigorosamente de síntese, onde nenhuma concessão existe, a evidenciar profunda austeridade.
Em aspecto outro, Henrique Oswald (1852-1931) recolhe-se no último decênio de vida à composição de obra sacra, movido por vários fatores. Sua obra camerística do período carrega elementos despojados, plenos de processos reutilizados, mas surpreendentes quanto ao emprego. Gilberto Mendes (vide Gilberto Mendes, Categoria Música, Personalidades, 13/10/07), ao escrever Étude de Synthèse a nosso pedido, buscou os acordes que mais tiveram guarida em seu pensar musical. Com fluidez, esses povoaram uma pequena peça em visitação amorosa ao passado.
Se os poucos exemplos citados estariam a revelar um retorno a padrões mais tradicionais por parte de tantos criadores, não se descarte a presença da síntese em compositores do nível de Franz Schubert (1797-1828) ou Wolfang Amadeus Mozart (1956-1991), a atestar que o caminho da classicisation pode acontecer na denominada “juventude da idade madura”, segundo a conceituação de Elliot Jaques.
Se a música depende prioritariamente do intérprete para sua execução, não se pode excluir o espírito de síntese que ocorreria na plena idade madura. A leitura de uma partitura é sempre desveladora de segredos. Aspectos ligados ao mistério da criação, contudo, pareceriam insondáveis. Se, sob certa égide, o intérprete deveria apreender a trajetória de um compositor em direção à síntese, sob aspecto outro é a sua própria que está em questão em período preciso da existência. A classicisation pode ocorrer, a depender do mundo interior de cada intérprete. A composição lá está para a leitura que dará vida sonora à partitura. O entendimento na idade madura pode revelar segredos que passaram despercebidos décadas antes. Ao tocar em 1955 uma obra de Robert Schumann (1810-1856) para a extraordinária Guiomar Novaes (1894-1979), disse-me ela que ingredientes só são revelados com o transcorrer da vida e que apenas naquela época compreendera conteúdos de alguns quadros do Carnaval op. 9 do grande compositor alemão, antes não desvelados em seu entendimento. Frise-se, a interpretação dessa obra sempre esteve em nível elevado na execução de Guiomar Novaes.
Observando-se gravações de pianistas que viveram muito e tiveram registros fonográficos das mesmas obras em épocas distintas, pode-se compreender esse espírito de síntese. Poissons d’or, de Claude Debussy, tem duas interpretações distintas por parte de Arthur Rubinstein (1887-1982), sendo que a gravação derradeira mantém, mais serena, uma primazia quanto às intenções.
Cláudio Arrau (1903-1991), nas entrevistas a Joseph Horowitz em 1980-1981, revelaria: “Quando nos meus vinte anos, as pessoas achavam que tocava muito rápido. Isso durou anos. E eu assim procedia pelo amor físico relacionado ao piano e aos meus dedos. Talvez buscasse a ovação. Conscientemente há muito tempo, muito tempo mesmo, eu assim não procedo. Num certo sentido, é para mim igual agradar ou desagradar. Preocupar-se com a reação do público é algo que pode realmente assassinar a interpretação”. Continua o grande pianista; “Você sabe, todos aqueles que questionam sobre minha idade falam imediatamente em serenidade e transfiguração. É um absurdo. A intensidade expressiva, na minha opinião, é muito mais forte, mais concentrada em comparação aos anos de minha juventude. Há, atrás dessas conceituações uma ilusão rotineira. As pessoas acreditam que, com a idade, tornamo-nos serenos. Ocorre exatamente o contrário. Amamos muito mais a vida e sentimos muito mais fortemente. Imaginam que ficamos indiferentes e até mais relaxados. Eu acredito que isso ocorra com a maioria, que se enfraquece ao chegar à velhice. Todavia, se durante toda a vida você foi intenso, será ainda mais ao chegar a idade avançada”.
Seria possível imaginar a síntese como pertencente a um patamar preciso, mas a ter como salvaguarda o momento desconhecido que leva à depuração. Seria igualmente oportuno ter-se em mente que, basicamente, não há antagonismos entre as distintas fases. A própria caminhada faz com que a idade madura, que leva à síntese, acumule imagens e as selecione. Essa escolha do já visto e daquilo que está para acontecer faria a diferença na criação e no interpretar a obra conclusa.

On how a synthesizing tendency seems sometimes to prevail in the later works of those who create art or demonstrate it. It is the artist’s revision of his own earlier periods, leading to the full expansion of the techniques previously employed. This revisitation of artistic standards of the past and their combination into a new and coherent whole, more restrained in style, is what I call “spirit of synthesis”.