TTTT e o saber viver
Il n’y a rien au monde qui soit plus avide de beauté,
il n’y a rien au monde qui s’embelisse plus aisément qu’une âme.
Il n’y a rien au monde qui s’élève plus naturellement
et s’ennoblisse plus promptement.
Maurice Maeterlinck
De regresso à minha cidade-bairro, Brooklin, rememoro episódios, pessoas e emoções vividas. Vêm-me à mente uma figura singular em Gent: Tony Herbert. Visito a cidade flamenga na Bélgica desde 1995. Foram 18 viagens ao país e a constância a Gent é fato (vide Gent, categoria Impressões de Viagem, 28/04/07). A partir de 1997, passei a hospedar-me em um Bed & Breakfast, tão comum em determinados países. Preço mais módico, fica-se em casa de família, com direito ao pequeno almoço e ao possível convívio com habitantes da localidade.
Tony Herbert e Tania Coppens recebiam pessoas indicadas por amigos do casal. No meu caso, André Posman, da gravadora Rode Pomp. Não tinham filhos, mas dois gatos ilustravam o símbolo da casa, Zig e Zappa. Vários amigos franceses lá estiveram a apreciar a hospitalidade do casal, assim como minha mulher e uma de nossas filhas, Maria Beatriz. Em casa de Tania e Tony conheci outro amigo fiel, Joep Huiskamp, que se desloca todos os anos da Holanda, juntamente com sua mulher Jonneke, a fim de assistir aos meus recitais em Gent.
Tania é psicóloga e exerce sua atividade em estabelecimento público na Antuérpia. Todas as manhãs, bem cedo, vai da casa à estação ferroviária de Dampoort de bicicleta, como centenas e centenas de pessoas assim procedem em toda a região flamenga. Passa um cadeado em seu transporte e, de comboio, dirige-se ao trabalho. Lá chegando, uma outra bicicleta leva-a ao consultório. Gent é povoada desses práticos veículos e a ausência de violência urbana faz-nos sentir seguros. Altas horas da noite, moças e rapazes transitam normalmente de bicicleta. Quanto a Tony, trabalha em casa, tantas vezes de madrugada, a produzir vídeos com real talento. Um homem sempre a criar.
Quando nasceram Tycho (homenagem a Tycho Brahé -1546/1601- o famoso astrônomo dinamarquês) e mais tarde Trixie, o casal deixou a atividade paralela do Bed & Breakfast. Contudo, jamais permitiram que eu ficasse em outro lugar quando em Gent, o que para mim é motivo de alegria, pois continuo o único dos ex-freqüentadores a manter o privilégio. Além disso, há um piano vertical sempre à minha disposição. Os gatos que ficavam livres, em casa, muros e telhados encontraram outros locais. Desapareceram naturalmente, possivelmente entendendo que as atenções do casal estariam preferencialmente dirigidas aos miúdos. Os felinos domésticos são animais compreensivos e despediram-se em silêncio dos agora TTTT.
Da janela do “meu” apartamento, vejo a confluência de dois canais, ao fundo a estação de Dampoort e, nas águas ou no ar, dezenas de gaivotas e outro pássaros aquáticos emitindo sons típicos e denunciadores das presenças bem-vindas. Poucos cisnes e alguns barcos particulares completam a bucólica paisagem nesse trecho gantois. Conheci todas as estações do ano, e sempre me encantei com a luminosidade tão diferenciada, a depender das temperaturas e das preferenciais tonalidades plúmbeas do céu.
Minha estada é sempre em torno de dez dias, para recitais e gravações. Almoço nos restaurantes ou lanchonetes próximos. Geralmente, come-se bem a preço razoável. Nestes últimos anos Tony quase sempre me acompanha. Antes, era divertido vê-lo passando com uma mochila às costas, deslocando-se em skate pelas ruas. Ao ver-me em um dos restaurantes, parava e vinha tomar um copo ou um café. Admiro em Tony a sua maneira de encarar a vida. Em certos dias da semana, as pessoas depositam em lugar determinado objetos que não mais serão utilizados. Quantas não foram as vezes que o sentia feliz ao chegar com alguma moldura com vidro encontrada e que já tinha, em sua mente, destinação para uma fotografia especial. Está sempre com um apito, que serve para identificá-lo quando em passeios em parques e jardins, acompanhado de Tania, Tycho e Trixie. Procura brinquedos diferenciados para seus filhos, um indicativo de sua índole voltada à busca de soluções originais, seja singelo ou não o resultado.
Quando do aniversário de sua mãe, encontrou na feira de fim de semana na pequena praça de Sint-Jacobs – freqüento-a sempre, quando em Gent – um belíssimo álbum com fotos de família do século XIX. Não teve dúvidas e substituiu todos os rostos por aqueles de sua família e dos amigos de sua progenitora. Sem destruir os originais, acoplou réplicas nesse álbum e o todo ficou pleno de humor. Foi motivo de muita alegria, ao que soube. A foto ilustrativa apresenta Tony e Tania caracterizados.
Todas as pinturas, do interior ou exterior da casa, são feitas por ele. Homenageou até seu amigo geograficamente distante com as cores brasileiras na fachada da casa. O blog de Tony, apesar de desatualizado, apresenta parte desse humor que lhe é tão característico, assim como lindas fotos de Tycho e Trixie.
Gent tem sempre surpresas. Em uma das lanchonetes da cidade, onde, quando com tempo exíguo, tomo uma sopa, entre tantas a escolher, e mais algum sanduíche, Tony fez-me observar a toalha individual de papel a forrar as mesas. Tem graça. Se o serviço demora, há como chamar um funcionário em tom mais elevado; se alguma bonita gantoise estiver em mesa próxima, prender sua atenção é possível. Em outra lanchonete que oferece comidas turcas, Mola, o proprietário, já é um velho conhecido.
Fevereiro próximo tenho novo encontro em Gent. Recital na temporada da Rode Pomp e, dada a acolhida do recital para as crianças deste ano (vide Recitais Diferenciados, categoria Impressões de Viagem, 18/03/08), Tony e André Posmam pediram-me para ampliar essas apresentações sui generis, o que farei com muito gosto.
Participar dessa adorável família é para mim felicidade e extensão de tantos momentos vividos com os meus em nossa São Paulo, cidade infelizmente tão plena de problemas insolúveis.
My friendship with Tony Herbert, an amusing fellow, dear friend and talented video producer with creativity in full bloom, always imagining ways to innovate that were not conceived of before. Whenever I visit Gent, I stay with Tony and his family, in their home on a street facing the river with a distinctive Belgian atmosphere.