Yasmina Reza (1959- )
Voilà la méchanceté du temps. Ce qu’est le temps.
Le temps: le seul sujet.
Yasmina Reza (Hammerklavier)
Há muito tempo não ia ao teatro. Minha filha Maria Beatriz assistira à peça O Homem Inesperado, de Yasmina Reza, encantando-se com o texto e também com a atuação de Nicette Bruno e Paulo Goulart. Ofereceu-nos os ingressos, como presente aos pais pela passagem dos 45 de casamento, a dizer-nos que ficaríamos fascinados igualmente. Confesso ter relutado inicialmente, por evitar sair à noite em São Paulo, mas fui com Regina ao Teatro Renaissance.
Conhecia a importância de Yasmina Reza, nascida em Paris, filha de uma violinista húngara e de um engenheiro e músico amador russo-iraniano de origem judaica. É autora de récits relevantes e peças de teatro. Algumas são montadas com freqüência nos países em que o teatro é tradição enraizada. Lera Hammerklavier (Paris, Albin Michel, 1997, 120 págs.), “Art” e L’Homme du Hasard ora em questão (Théatre: L’Homme du hasard, Conversations après un enterrement, La Traversée de l’hiver, “Art”. Paris, Albin Michel, 1998, 251 págs.). Confesso preferir ler textos teatrais a assisti-los ao vivo. Talvez essa prática tenha origem nos retornos que realizo quando de frases entendidas essenciais e nas encenações criadas em meu imaginário.
Quando da visita a Hammerklavier, a curiosidade maior veio do título homônimo da Sonata para piano op. 106 de Beethoven, obra monumental. A ascendência musical de Yasmina Reza poderia parecer pouco importante, não fosse a ligação afetiva que manteve com seus progenitores, a receber toda uma herança sonora que perpassa por seus textos, não na superficialidade facilmente detectável, mas num conhecimento de escutas atávicas. Hammerklavier é um conjunto de curtas narrativas basicamente autobiográficas, constância da autora, a revisitar desde o passado longínquo, enriquecido por lembranças afetivas nas quais seu pai sobressai. Escrito dois anos após L’Homme du Hasard, não deixa a autora de colocar os problemas do cotidiano, existenciais em sua essência, de maneira a revelar, sem barreiras, o seu pensar do instante, pois nada parece ficar nebuloso, antes mostra-se despojado, sem censura. Nessa narrativa, parte de um repertório da música sacralizada, motivo de recordações, é projetado nas intenções de Yasmina Reza. Beethoven, Schubert, Haëndel, Mozart, Stockhausen são ouvidos em concerto e a lembrança de seu pai emerge. A referência a Hammerklavier faz-se necessária para o melhor entendimento de O Homem Inesperado, pelas reiteradas menções à música e a compositores e pelas reflexões sobre a existência.
Quanto a L’Homme du Hasard, O Homem Inesperado na tradução de Flávio Marinho para o Português, tem-se um texto de humor aparente. Contudo, é bem mais perspicaz. Poder-se-ia entender como um acúmulo de situações humanas não resolvidas, mas a atingir com o desenrolar da peça o final feliz. Um primeiro impacto já é salutar. Sabe-se que a concentração estará voltada ao texto e à interpretação de dois atores. É uma salvaguarda para a não dispersão das idéias, a depender da qualidade dos intérpretes. O tema aparentemente é banal: Paul Brodsky e Marta, ele um escritor famoso, ela uma mulher de classe média com aspirações absolutamente rotineiras, leitora anônima das obras do autor à sua frente, não se conhecem e estão sentados em poltronas vizinhas num comboio que os levará de Paris a Frankfurt. Durante o decorrer da peça, até quase o seu fim, tem-se solilóquios alternando preocupações do homem de nossos dias, solidão, carência afetiva, hesitação, neurastenias, não aceitação da velhice, frustrações existenciais, mas a contrapor momentos de fina dose de humor. O Homem Inesperado revela a morna angústia do homem urbano, sua indiferença diante dos outros, seu egocentrismo de contágio.
A evidenciar a familiaridade com a música, Yasmina Reza menciona compositores e seus atributos na fala de Paul Brodsky: Debussy em duas peças sacralizadas que ele dedilha, a impossibilidade de poder tocar L’isle Joyeuse ou obras de Scriabine, ou ainda Scarbo, de Ravel, sua dificuldade no uso dos pedais, sentindo-se bem em não usá-los em um Impromptu de Schubert. Menciona Cenas da Floresta, de Schumann, também uma melhora de sua mão esquerda graças a Bach e o melhor desempenho de seu amigo Youry Kogloff ao tocar. Pensa: “Fácil ouvir os outros, ouvir-se a si mesmo, eis a dificuldade”. Nesse monólogo interior, a comparação com Youry é musical; no início da peça, refere-se a uma relação amorosa do amigo com uma japonesa. Desvantagens a ferirem Paul Brodsky.
Todo texto teatral depende fundamentalmente de fatores que interferem na apreensão de conteúdos. Mais focalizado o aspecto extratexto, menor a captação de mensagens. A globalização fomentou egos exagerados, que privilegiam encenações de impacto, deixando o essencial em segundo plano. Meritórias pois a direção de Emílio de Mello e a cenografia e concepção de imagens de Marcos Flaksman para a edificação de O Homem Inesperado. Chegou-se ao multum in minimo, a proporcionar a plena valorização do texto de Yasmina Reza.
Admiro há décadas o talento e a vocação para o teatro de Nicette Bruno e Paulo Goulart. Conservando a essência do DNA cênico, apesar de atuarem freqüentemente em novelas televisivas, não se deixaram contaminar, quando na ação teatral ao vivo, pelos vícios daquele meio, amálgama de joio e trigo, onde o talento de alguns grandes atores e a mediocridade plena de outros convivem num universo repetitivo. Versáteis, íntegros e competentes, Nicette Bruno e Paulo Goulart estiveram extraordinários em suas representações. Domínio da cena, dicções perfeitas a nada se perder, carisma insofismável do casal ficam evidentes. O texto inicial de Paulo Goulart e o brilhante final de Nicette Bruno testemunham maestria absoluta. É um privilégio poder assisti-los em peça teatral que poderia tornar-se verdadeira armadilha, não fossem suas qualidades maiúsculas. Comovente performance.
Ouça por J.E.M.:
- A. Scriabine – Estudo op.8 no.12 (Pathétique)
- R. Schumann – Humoresque op.20 – Einfach
- Claude Debussy – Pour les tierces
I am not a theatergoer – for me plays work better on the page than on the stage. But I was given tickets for Yasmina Reza’s “The Unexpected Man”, as a wedding anniversary gift from my daughter. So I went to see the play with my wife – reluctantly, I must confess. I was already familiar with the works of the French playwright and novelist Yasmina Reza, having read two of her books: the play “Art” and “Hammerklavier”, a collection of autobiographical sketches showing the affectionate relationship with her father and their love of music. The title refers to one of the most challenging of Beethoven’s piano sonatas. As to “The Unexpected Man”, my initial reluctance turned into bliss. The plot is simple: an understated woman (Martha) sits opposite a famous writer (Paul Brodsky) that she admires while traveling on a train. As they observe each other silently, the audience listens to their thoughts in a series of alternating interior monologues about man’s solitude, doubts, emotional disorders, frustrations, the barriers one erects against each other, all tempered with a subtle sense of humour. Only at the very end the couple will exchange a few words. Reza’s familiarity with music is stated in Paul Brodsky’s mentioning of a series of pieces by great classical composers. The work of the production crew is praiseworthy, but what makes the play outstanding is the superb performance of two great actors – Paulo Goulart and Nicette Bruno – displaying talents shaped during lives on the stage. It was a privilege to watch actors of this caliber in a play that in less competent hands could turn into a trap. Their standard of acting is sheer delight.