Navegando Posts publicados em maio, 2008

Yasmina Reza (1959- )

Nicette Bruno e Paulo Goulart em 'O Homem Inesperado' de Yasmina Reza. Foto Beti Niemeyer.

Voilà la méchanceté du temps. Ce qu’est le temps.
Le temps: le seul sujet.

Yasmina Reza (Hammerklavier)

Há muito tempo não ia ao teatro. Minha filha Maria Beatriz assistira à peça O Homem Inesperado, de Yasmina Reza, encantando-se com o texto e também com a atuação de Nicette Bruno e Paulo Goulart. Ofereceu-nos os ingressos, como presente aos pais pela passagem dos 45 de casamento, a dizer-nos que ficaríamos fascinados igualmente. Confesso ter relutado inicialmente, por evitar sair à noite em São Paulo, mas fui com Regina ao Teatro Renaissance.
Conhecia a importância de Yasmina Reza, nascida em Paris, filha de uma violinista húngara e de um engenheiro e músico amador russo-iraniano de origem judaica. É autora de récits relevantes e peças de teatro. Algumas são montadas com freqüência nos países em que o teatro é tradição enraizada. Lera Hammerklavier (Paris, Albin Michel, 1997, 120 págs.), “Art” e L’Homme du Hasard ora em questão (Théatre: L’Homme du hasard, Conversations après un enterrement, La Traversée de l’hiver, “Art”. Paris, Albin Michel, 1998, 251 págs.). Confesso preferir ler textos teatrais a assisti-los ao vivo. Talvez essa prática tenha origem nos retornos que realizo quando de frases entendidas essenciais e nas encenações criadas em meu imaginário.
Quando da visita a Hammerklavier, a curiosidade maior veio do título homônimo da Sonata para piano op. 106 de Beethoven, obra monumental. A ascendência musical de Yasmina Reza poderia parecer pouco importante, não fosse a ligação afetiva que manteve com seus progenitores, a receber toda uma herança sonora que perpassa por seus textos, não na superficialidade facilmente detectável, mas num conhecimento de escutas atávicas. Hammerklavier é um conjunto de curtas narrativas basicamente autobiográficas, constância da autora, a revisitar desde o passado longínquo, enriquecido por lembranças afetivas nas quais seu pai sobressai. Escrito dois anos após L’Homme du Hasard, não deixa a autora de colocar os problemas do cotidiano, existenciais em sua essência, de maneira a revelar, sem barreiras, o seu pensar do instante, pois nada parece ficar nebuloso, antes mostra-se despojado, sem censura. Nessa narrativa, parte de um repertório da música sacralizada, motivo de recordações, é projetado nas intenções de Yasmina Reza. Beethoven, Schubert, Haëndel, Mozart, Stockhausen são ouvidos em concerto e a lembrança de seu pai emerge. A referência a Hammerklavier faz-se necessária para o melhor entendimento de O Homem Inesperado, pelas reiteradas menções à música e a compositores e pelas reflexões sobre a existência.
Quanto a L’Homme du Hasard, O Homem Inesperado na tradução de Flávio Marinho para o Português, tem-se um texto de humor aparente. Contudo, é bem mais perspicaz. Poder-se-ia entender como um acúmulo de situações humanas não resolvidas, mas a atingir com o desenrolar da peça o final feliz. Um primeiro impacto já é salutar. Sabe-se que a concentração estará voltada ao texto e à interpretação de dois atores. É uma salvaguarda para a não dispersão das idéias, a depender da qualidade dos intérpretes. O tema aparentemente é banal: Paul Brodsky e Marta, ele um escritor famoso, ela uma mulher de classe média com aspirações absolutamente rotineiras, leitora anônima das obras do autor à sua frente, não se conhecem e estão sentados em poltronas vizinhas num comboio que os levará de Paris a Frankfurt. Durante o decorrer da peça, até quase o seu fim, tem-se solilóquios alternando preocupações do homem de nossos dias, solidão, carência afetiva, hesitação, neurastenias, não aceitação da velhice, frustrações existenciais, mas a contrapor momentos de fina dose de humor. O Homem Inesperado revela a morna angústia do homem urbano, sua indiferença diante dos outros, seu egocentrismo de contágio.
A evidenciar a familiaridade com a música, Yasmina Reza menciona compositores e seus atributos na fala de Paul Brodsky: Debussy em duas peças sacralizadas que ele dedilha, a impossibilidade de poder tocar L’isle Joyeuse ou obras de Scriabine, ou ainda Scarbo, de Ravel, sua dificuldade no uso dos pedais, sentindo-se bem em não usá-los em um Impromptu de Schubert. Menciona Cenas da Floresta, de Schumann, também uma melhora de sua mão esquerda graças a Bach e o melhor desempenho de seu amigo Youry Kogloff ao tocar. Pensa: “Fácil ouvir os outros, ouvir-se a si mesmo, eis a dificuldade”. Nesse monólogo interior, a comparação com Youry é musical; no início da peça, refere-se a uma relação amorosa do amigo com uma japonesa. Desvantagens a ferirem Paul Brodsky.
Todo texto teatral depende fundamentalmente de fatores que interferem na apreensão de conteúdos. Mais focalizado o aspecto extratexto, menor a captação de mensagens. A globalização fomentou egos exagerados, que privilegiam encenações de impacto, deixando o essencial em segundo plano. Meritórias pois a direção de Emílio de Mello e a cenografia e concepção de imagens de Marcos Flaksman para a edificação de O Homem Inesperado. Chegou-se ao multum in minimo, a proporcionar a plena valorização do texto de Yasmina Reza.
Admiro há décadas o talento e a vocação para o teatro de Nicette Bruno e Paulo Goulart. Conservando a essência do DNA cênico, apesar de atuarem freqüentemente em novelas televisivas, não se deixaram contaminar, quando na ação teatral ao vivo, pelos vícios daquele meio, amálgama de joio e trigo, onde o talento de alguns grandes atores e a mediocridade plena de outros convivem num universo repetitivo. Versáteis, íntegros e competentes, Nicette Bruno e Paulo Goulart estiveram extraordinários em suas representações. Domínio da cena, dicções perfeitas a nada se perder, carisma insofismável do casal ficam evidentes. O texto inicial de Paulo Goulart e o brilhante final de Nicette Bruno testemunham maestria absoluta. É um privilégio poder assisti-los em peça teatral que poderia tornar-se verdadeira armadilha, não fossem suas qualidades maiúsculas. Comovente performance.

Ouça por J.E.M.:
- A. Scriabine – Estudo op.8 no.12 (Pathétique)
- R. Schumann – Humoresque op.20 – Einfach
- Claude Debussy – Pour les tierces

I am not a theatergoer – for me plays work better on the page than on the stage. But I was given tickets for Yasmina Reza’s “The Unexpected Man”, as a wedding anniversary gift from my daughter. So I went to see the play with my wife – reluctantly, I must confess. I was already familiar with the works of the French playwright and novelist Yasmina Reza, having read two of her books: the play “Art” and “Hammerklavier”, a collection of autobiographical sketches showing the affectionate relationship with her father and their love of music. The title refers to one of the most challenging of Beethoven’s piano sonatas. As to “The Unexpected Man”, my initial reluctance turned into bliss. The plot is simple: an understated woman (Martha) sits opposite a famous writer (Paul Brodsky) that she admires while traveling on a train. As they observe each other silently, the audience listens to their thoughts in a series of alternating interior monologues about man’s solitude, doubts, emotional disorders, frustrations, the barriers one erects against each other, all tempered with a subtle sense of humour. Only at the very end the couple will exchange a few words. Reza’s familiarity with music is stated in Paul Brodsky’s mentioning of a series of pieces by great classical composers. The work of the production crew is praiseworthy, but what makes the play outstanding is the superb performance of two great actors – Paulo Goulart and Nicette Bruno – displaying talents shaped during lives on the stage. It was a privilege to watch actors of this caliber in a play that in less competent hands could turn into a trap. Their standard of acting is sheer delight.

Reflexões sobre a Essência

Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944)

Mais l’amour de la danse
n’est point amour de toi qui danses.

Antoine de Saint-Exupéry

Já abordei o fascínio inicial que me conduziu à leitura de Citadelle, de Antoine de Saint-Exupéry, e o fato marcante que me levou a eleger naturalmente o livro como preferencial após o acúmulo de tantas outras leituras no peristilo dos setenta anos (vide Antoine de Saint-Exupéry, categoria Literatura, 09/11/07). A complexidade da obra, a atentar para todas as possibilidades do homem, destino, almejos, condições, aspectos envolvidos in conditio sine qua non sob o manto da responsabilidade, merece apreciações. Tenho-a sempre em meu quarto, ao lado do livro percorrido no momento. Sendo uma enciclopédia da essência humana em suas manifestações mais amplas, livro eleito pois, visito excertos com constância. Trazem-me a paz interior necessária para outro percurso, a obrigatoriedade do sono. Ao longo, como já observara, transcreverei trechos, transmitindo ao leitor conceitos fundamentais desse extraordinário pensador que foi Saint-Exupéry.
Estava a trotar pelas ruas de minha cidade-bairro, como faço três vezes por semana, quando o olhar encontrou algo que me ligou a olhares anteriores de Citadelle e a analogia se fez. Um pedinte, aparentando a minha idade, tocava um pequeno tambor e angariava alguns trocados. Passei por ele no meu lento correr, deixei umas moedas e continuei. Veio-me imediatamente uma passagem de Citadelle inserida no capítulo CIV. Saint-Exupéry escreve: O selvagem acredita que o som é somente emitido pelo seu tambor. E ele adora o tambor. Um outro acredita que o som está nas baquetas e ele adora as baquetas. Um último acredita que o som é devido à pujança de seu braço e o verá orgulhoso com o braço erguido. Você reconhece, sim, você, que o som não está nem no tambor, nem nas baquetas nem nos braços, e denominará verdade o toque de tambor (leia-se interpretação) do tamborileiro.
Tantas décadas acumuladas e mais me dou conta de que caminhamos para a “glorificação” do estereótipo, de tudo aquilo que possa causar impacto. Mídia, holofotes potentes, a necessidade absoluta do emergir sem atender à ética. O homem tem que ser visto, bajulado, incensado, e os valores intrínsecos ficam à deriva. Compactuando com setores privados, o meio político distorcido, a acalentar a corrupção endêmica, antítese de captações morais e éticas. Perdemos o norte pela instauração da mentira como prática e norma. Tambor, baquetas e braços fortes continuam em escala geométrica a prevalecer sobre o verdadeiro toque do tambor, a essência essencial a motivar a transmissão. O pensamento metafórico de Saint-Exupéry serve para todas as áreas.
Na Música, por exemplo, quando o enfoque é menos voltado à real qualidade da interpretação e mais à promoção. Esses traços mais e mais se tornam dominantes a mostrar que dificilmente haverá retorno.
Tambor, baquetas e braços, nessa alegoria, sintetizariam o próprio Sistema, não interessado nos aprofundamentos que possam levar à elevação cultural de um povo, mas ao que é aparente, que brilha, que anestesia. Os governos em nosso país, sejam eles quais forem, voltam-se impreterivelmente à manutenção de um status quo para populações que não reivindicam com firmeza, por absoluta letargia, os atributos ou direitos a formarem a noção de cidadania sob todas as égides. Jornais e revistas estão sempre a buscar anunciantes que deságuam publicidade voltada à coletividade, entendida esta como desprovida de quaisquer julgamentos críticos. As propagandas estarão a compor o todo, povoado por tantos artigos visando ao sensacionalismo ou ao vazio das idéias; os canais abertos, salvo raríssimas exceções, exibem programas endereçados preferencialmente àqueles incapazes de apreciação mais ajuizada. A grade televisiva volta-se ao dirigismo do não pensar. Exterminaram-se princípios voltados à cultura como meio de elevação de um povo. Como exemplo, os grandes shows de “música” popular reúnem milhares de pessoas, que movimentam seus braços atendendo aos apelos previamente ensaiados no culto a ídolos descartáveis. Lembram as multidões “eufóricas” em seus gestos nos tempos de Hitler. Em ambos os casos, a presença da distorção. E as televisões insistem em pormenorizar gestuais. O gesto coletivo que inibe a reflexão.
Saint-Exupéry, nesse mesmo capítulo, continua: aquele que lê uma carta de amor sente-se lisonjeado independentemente da tinta e do papel, pois ele não buscava o amor nem no papel nem na tinta. Perde-se o conteúdo, quando esse princípio do essencial desaparece. Mais e mais volta-se o homem à tinta e ao papel. A mensagem contida teria pouca importância.
O piloto, escritor e pensador, personagem de um império imaginário e atemporal que é Cidadela, entende que seu reino não poderia ser jamais entregue ao geômetra que venera o triângulo usado para projetar a construção do templo. Há essencialidades na maneira de comandar um povo, e estas perdem o sentido na medida em que se desviam da compreensão intrínseca das reações humanas. Não estaríamos, mais acentuadamente em nossos dias, afastando-nos da própria natureza do homem? Não teria perdido ele, nessa globalização sem retorno previsível, a percepção da individualidade, integrando-se à massa informe de um rebanho sem nome? Não necessitaria o homem repensar, se ainda há tempo, todos os valores que o norteiam? Perguntas que surgem enquanto continuo minha lenta corrida pelas ruas de minha cidade-bairro, o Brooklin.

As I was jogging in my neighbourhood, I passed by a beggar playing a drum. In a flash a passage of Saint-Exupéry’s book Citadelle (The Wisdom of the Sands) came to my mind. The main character wonders from where the sound of a drum comes. Is it from the drum itself? From the sticks? From the player’s arms? Just to conclude it comes from the drummer’s interpretation.This was the starting point of this post, a consideration on the modern society tendency to promote the false and shallow to the detriment of the genuine and substantial. Shouldn’t we rethink our values, searching for the hidden essence behind the superficial appearance?

Em Busca da Alma de Meu Pai

Os alpinistas, como uma espécie,
não são dotados de um excesso de prudência.
E isso é especialmente verdadeiro
para aqueles que escalam o Everest:
quando se vêem diante da oportunidade de chegar
ao pico mais alto do mundo,
como mostra a história,
as pessoas abandonam os julgamentos racionais
com surpreendente rapidez.

Jon Krakauer

As escaladas aos grandes e perigosos cumes resultam em relatos pungentes. Preferencialmente, detêm-se os autores no feito pessoal, atingido ou não o objetivo. Quase todos pormenorizam os preparativos, a investida rumo aos tetos almejados, a vitória ou a decepção, o regresso sempre em difíceis circunstâncias e as considerações finais.
Quando Jamling Tensing Norgay escreve sobre sua experiência na conquista do Everest, realizada com sucesso em 1996, transmite, mais do que a vitória pessoal, o culto ao pai e a glorificação de sua raça (Jamling Tensing Norgay com Broughton Coburn. Em Busca da Alma de Meu Pai – A jornada de um sherpa ao cume do Everest. São Paulo, Companhia das Letras, 2002, 326 págs.). Foi um dos livros que me acompanharam na recente viagem à Europa. Filho de Tensing Norgay (1914-1986), o sherpa, que juntamente com Edmund Hillary (vide Leituras sobre o Himalaia – III – categoria Literatura, 01/02/08), atingiu pela primeira vez os 8.848m do Everest em 1953, não se desvia Jamling do pensamento voltado ao feito de seu progenitor. Esse fato já demonstraria o relato diferenciado.
É revelador o sentimento de ausência paterna que o autor diz ter sentido, pois após o feito Tensing Norgay mudaria radicalmente o seu modus vivendi, a atender aos inúmeros apelos internacionais. Observa Jamling: O fato é que eu havia tomado a decisão de ficar longe de minha família por um longo período, para perseguir um sonho – ou para perseguir demônios. Meu pai fizera o mesmo, deixando a família a sós por meses a fio. Sua ausência era o que me causava ressentimento, quando eu era menino – um menino que queria se juntar a ele e estar com ele, e crescer para ser como ele. Contudo, o filho, nascido em 1966, em nenhum instante da narrativa deixa de prestar tributo a seu pai, pois no imaginário sherpa o desbravador Tensing Norgay ganharia a aura de sábio ao atingir, graças à deusa da montanha Miyolangsangma, o pico mais alto do planeta.
Jamling perpassa pela narrativa de maneira simples, sem quaisquer artifícios, as enraizadas tradições do budismo tibetano e o culto de seus seguidores aos “oráculos” proferidos pelos lamas. Deixa entender, com clareza, que todas as decisões têm o aconselhamento dos monges, que vivem nos monastérios a vida reclusa, mas a receber a visita daqueles que a eles se dirigem para orientação naquelas regiões inóspitas. É aconselhado a ter cautela, pois os lamas prevêem desastres inusitados naquele 1996. Jamling hesita, mas tem a força interior que o faz ratificar a aceitação para integrar a equipe de filmagem da IMAX.
Os religiosos estavam certos em seus vaticínios. O ano de 1996 revelar-se-ia trágico. Foram muitos os mortos, tantos deles por absoluta falta de condições físicas. Dois dos mais importantes alpinistas de alta montanha sucumbiriam naquele ano: Rob Hall e Scott Fischer. Como assevera Jamling, a deusa Miyolansangma estava irritada com a profusão de aventureiros a buscar a glória da conquista, movidos pelos mais estranhos desejos. Jamling se prostra, considera, revisita seu lama confidente, acalma sua mulher Soyang e enfrenta o desafio, conseguindo finalmente o objetivo maior. A salvaguarda para que a realização se dê é a não certeza. Como afirma: Se soubéssemos de antemão que conseguiríamos chegar ao cume ou que fracassaríamos, creio que nenhum de nós seria capaz do mesmo empenho. É o não saber que nos faz ir adiante.
O Everest tem se mostrado trágico para tantos alpinistas de valor ou incautos desde as primeiras décadas do século XX. Menciona Jamling um dos mais experientes montanhistas, Ed Viesturs: Não se conquista o Everest – você entra nele de fininho e depois cai fora o mais rápido que puder. E acrescenta Jamling: se a montanha deixar. Ainda assim, legiões persistem em subir, a grande maioria sem preparo. Um amigo de seu pai, que atingira o pico em 1963, observou que à medida que o congestionamento aumenta, é como pôr mais pinos numa pista de boliche: haverá mais deles para serem derrubados.
Ratifique-se essa noção de Jamling Norgay quanto a integrar-se a uma equipe, mas com a aspiração de realizar verdadeira catarse nessa empreitada. Conseguir o feito de seu pai, no sentido de sentir-se perto de sua alma, pois protegido pela deusa, torna-se o resgate pleno de sua própria identidade. Chama a atenção em sua narrativa esse olhar as múltiplas armadilhas da montanha em direção ao cume e pensar sempre em seu pai. Dedica a empreitada a ele, onipresente, engrandecido através do relato do filho. Pungentes são parágrafos próximos ao fim do livro, verdadeiro libelo:
O que mais aprendi – de meu pai e da montanha – foi humildade. Ambos a exigiam. Após suas seis tentativas anteriores de escalar o Chomolungma, meu pai recuou, não por se sentir derrotado, disse, mas em reverência. Ele me contou que pôde alcançar o cume em 1953 – como um visitante em peregrinação – graças unicamente a seu respeito por Miyolangsangma.
Foi só quando atingi o cume do Everest que fiquei sabendo que não precisava escalar a montanha para conseguir as bênçãos de meu pai. Tampouco eu precisava escalá-la para fazer oferendas à deusa que lá habita. Como uma mãe, ela compreende, guia e protege, independentemente de onde estejamos no universo.
É de nossa natureza lutar e lançar desafios a nós próprios, neste mundo físico. Talvez seja essa luta, e a excelência que acaba por vir com ela, que dêem sentido a nossas vidas – um vestígio atávico do tempo, não tão distante, em que os desafios da vida giravam em torno da simples, mas árdua e perigosa tarefa de sobreviver.

Sob outra égide, considere-se a realização pessoal de Jamling igualando-se a seu pai, não no feito histórico de 1953, mas ao conseguir atingir o desiderato perseguido nessa tentativa física e espiritual. Em Busca da Alma de Meu Pai é pois um relato pleno do culto aos antepassados e ao budismo, e de respeito à figura de seu progenitor. Não por acaso, realizado o feito, sentiu-se grato a todos os seus valores e “purificado” em relação a um tributo que se fazia necessário. A iconografia do livro ajuda-nos a entender o caminhar histórico do projeto e enriquece ainda mais a bela e comovente narrativa. Apesar de considerar sua tarefa concluída, Jamling chegaria novamente ao cume do Everest em 2003, desta vez com Peter Hillary, a fim de festejarem o qüinquagésimo aniversário da primeira escalada de seus ilustres pais.

Touching My Father’s Soul:
In this absorbing narrative, the author, Jamling Tenzing Norgay, the son of Tenzing Norgay, the Sherpa who first reached the top of Mount Everest in 1953 with Sir Edmund Hillary, documents two experiences: first, he describes his own adventure summiting Everest in 1996; second, as the title says, while retracing his father’s footsteps, Norgay shares with the readers his strong spiritual connection with his legendary father. Weaving the two parallel stories, he gives precious insights into the society and religion of the Sherpas and gripping details of his team’s attempts to rescue fellow climbers of the ill-fated 1996 expedition, when many people died on the Everest after a sudden storm.