Respondendo a questionamentos
Le public s’inquiète peu de ce qui est,
il ne fait état que de ce qui se montre,
de ce qui se produit et s’impose.
Henry-Frédéric Amiel
Quando dos master classes na Academia de Amadores de Música de Lisboa (vide Academia de Amadores de Música (II), categoria Impressões de Viagem, 30/03/08), muitas dúvidas foram trazidas pelos alunos. Uma sobremaneira é comum a tantos pretendentes a pianista: o repertório. Encontrei talentos reais entre os jovens que se apresentaram. Duas obras em especial chamaram-me a atenção: Variações sobre um tema popular (1927) de Fernando Lopes-Graça (1906-1994), primeira criação escrita para piano pelo compositor, a revelar toda a sua maestria, assim como o Primeiro Concerto para piano e Orquestra de Sergei Prokofiev. Obras pouco interpretadas, mormente a primeira.
Entendo como rigorosamente necessário ao estudante o conhecimento abrangente do repertório pianístico tradicional. O alicerce básico lá está, a tornar a execução fulcro de “comparação” frente a outros intérpretes que executam as mesmas obras. Contudo, saliente-se, temos verdadeiro iceberg. A bela ponta vista da superfície é constituída de material repetitivo, a privilegiar basicamente as mesmas composições, diante de um público desinteressado em renovação. Desse repertório, apenas poucas criações mereceram o beneplácito das platéias habituadas ao óbvio, mercê da ação mediática ou de empresários voltados à lucratividade de seu produto, o intérprete. É parte de nossa sociedade e pouco ou nada se faz para a mudança da situação.
Sob outro aspecto, o do compositor consagrado, a grande maioria de sua produção fica sob as águas, praticamente desconhecida do grande público. Já escrevera anteriormente que, no seu début em Nova York, Claudio Arrau deveria tocar as Danças dos Companheiros de David, obra maiúscula de Robert Schumann, mas pouquíssimo executada. Seu empresário procurou-o dias antes, dizendo-lhe que vendera poucos ingressos. A solução seria a colocação de outra composição amplamente conhecida do autor alemão. Anunciado o Carnaval op. 9, em poucos dias a lotação esgotou-se. Das 32 Sonatas de Beethoven, um quarto é invariavelmente tocado, permanecendo o restante, e mais a grande maioria de Tema e Variações nas profundezas abissais. Quando o intérprete apresenta a integral das Sonatas, o público comparece, graças à cultura enraizada em países acima do Equador concernente a complete works. Beethoven seria pois vítima da discriminação, assim como tantos outros compositores, daí obliterar-se a qualidade extraordinária de tantas Sonatas, expressamente “ocultas” quando das programações das sociedades de concerto. Frisaria ainda que apenas na De Rode Pomp, na cidade de Gent, na Bélgica, em sua temporada anual a abranger bem mais de cem récitas, foram apresentadas nestes últimos quatro anos as integrais para piano de Brahms, Debussy, Scriabine, Ravel, as 32 Sonatas de Beethoven, sempre por pianistas de altíssimo nível, rigorosamente desconhecidos do público brasileiro. Este, ratifique-se, mercê da ação de empresários e promotores de concertos, contenta-se basicamente com os mesmos intérpretes internacionais. Pouco ou nada a fazer, igualmente. Mencionemos, como outro exemplo, as obras completas camerísticas de compositores que permanecem, apresentadas periodicamente, também na pequena sala de concertos da De Rode Pomp.
Regressando ao aspecto fulcral, é pois salutar a mescla repertorial. Desde o aprendizado deve o jovem estudar obras pouco executadas, mas de grande mérito. São essas que estarão a proporcionar a referencialidade da não comparação. Ao desviar-se da mesmice, o estudante tem que encontrar, na criação pouco executada possibilidades que o façam pensar, sem deparar-se com dezenas de execuções gravadas ou repetidas hodiernamente nas salas de concerto. Foge-se, pois, do vício da escuta. Esse princípio da busca da qualidade nas obras menos freqüentadas, mas de grandes autores, dar-lhe-á o norte, a certeza de estar a construir a sua própria interpretação. Se o consagrado, graças à repetição, penetra nos ouvidos, a criação pouco conhecida de um autor instalado em patamar excelso é a salvaguarda de criatividade interpretativa futura. Dessa assertiva, o jovem executante só sairá enriquecido. Frise-se todavia, que mesmo entre os autores respeitados há também composições menores. Saber apreender no universo repertorial a imensa quantidade de obras do mais alto valor já é sinal alvissareiro, mormente se a escolha partir do próprio aluno.
Sob aspecto outro, existem autores da maior significação, mas distantes dos holofotes. Compuseram na excelência, mas muitas vezes nasceram em países geo-socialmente entendidos como não fazendo parte daqueles pertencentes ao bloco poderoso. Buscar esse repertório extraordinário, é lutar contra a repetição e mostrar ao público verdades insofismáveis. Nem sempre há resultados receptivos, mas perseverar é necessário. Sob outra égide, seja na revelação de composições de um conterrâneo de expressão ou de autor que, detectado o mérito, mereça a divulgação, seja na compreensão da música contemporânea buscada por poucos, está o jovem intérprete a desenvolver a consciência da escolha, o espírito seletivo e a interpretação terá conseqüências em sua trajetória futura como pianista. Quanto à música contemporânea, deve o estudante ouvi-la muito, ir a concertos, aconselhar-se e penetrar lentamente e com cautela nessa seara não habitual nas apresentações majoritárias, pois há muito sofisma a ser evitado na música de nossos tempos; diria, obras de primeira e única audição. Certamente, sem esse trilhar multifacetado – mesmo que, no decorrer da vida, os holofotes contemplem o intérprete pianisticamente dotado – haverá uma lacuna inalienável, impossivel de ser ocultada, seja na interpretação, por vezes desprovida de aprofundamento, seja na ausência do pensar, quando o mutismo cultural será evidência dos equívocos perpetrados anteriormente.
This post discusses the importance of a multifarious repertoire for a music student. On one hand, it is indispensable to be familiar with the great works of the previous centuries. It will serve as an element of comparison for the young performer, since the popular classics are presented over and over again in concert halls everywhere. On the other hand, it is also essential to search for the less-frequented byways of the music world by promoting lesser known works of celebrated composers and by fostering those of new composers, the latter a seldom trodden path. It is true that it is tradition that brings recognition, since audiences tend to be tied to conventional models, with little or no interest in listening to fresh pieces. However, it is the ability to handle a wide ranging repertoire that will produce a selective performer, able to approach music with originality and intellectual depth.