Sporophila Caerulescens
Il est probable que dans la hiérarchie artistique,
les oiseaux sont les plus grands musiciens
qui existent sur notre planète.
L’oiseau est d’ailleurs un être merveilleux à tous points de vue:
le vol est une merveille encore inexplorée,
la migration est une autre merveille qui a fait couler des flots d’encre…
Mais la plus grande de toutes les merveilles,
la plus précieuse pour un compositeur de musique,
c’est évidemment le chant des oiseaux.
Olivier Messiaen
Foi em 1976, quando de minhas incursões no Vale do Paraíba, a fim de conhecer nossa Arte Sacra Popular e os santeiros que por lá criaram imagens a reverenciar santos da Igreja Católica (vide Eduardo Etzel I e II, categoria Personalidades), que conheci Lazinho Lima, camponês que morava às margens da D.Pedro, rodovia àquela altura ainda inconclusa. Conhecia ele os moradores de toda a região que cultuavam imagens de madeira ou terracota feitas por artesãos do passado e raros do presente. Mais tarde, Lazinho Lima instalar-se-ia em Nazaré Paulista com sua velha tia. Mantinha algumas toscas gaiolas com pássaros silvestres, como coleirinha, canário da terra, bigodinho, coleira do brejo, pássaro preto e outros. Exatamente como parte considerável de nossos caboclos, caipiras ou simplesmente homens do campo. Sempre aos sábados visitava-o, e de sua casa simples partíamos, juntamente com meu saudoso amigo Carlindo, para incursões pela mata adentro.
Em uma gaiola, um coleirinha, sempre que eu por ele passava, cantava as suas notas características. Sensível, Lazinho certo dia deu-me a gaiola, a dizer que a avezinha já lá estava há um ano a dar sinais de que queria ficar comigo. Comentou que, se fosse solta, morreria, pois desaprendera a vida selvagem. O coleirinha ou papa-capim é um passarinho de aproximadamente 12 cm de comprimento, assim chamado devido à coleira preta em volta do peito de cor branca, como o restante de toda a parte frontal. Tem a cabeça e toda a parte dorsal, incluindo as asas, de coloração plúmbea. Vive nos campos onde há gramíneas, alimentando-se de sementes pequenas.
Tinha eu já alguns canários belgas que alegravam o dia desde o amanhecer, e a eles veio somar-se o coleirinha. Impressionava sua cantoria. Durante a noite, mesmo na escuridão, emitia lá os seus sons curtos e agudos, mas agradáveis, ao contrário dos “aparelhados” canários, soberanos em seus longos gorjeios. Quando pela alta madrugada, após as aulas e o estudo diário de piano, ficava a ler e escrever teses ou artigos acadêmicos, acompanhava-me seu breve e intercalado canto.
Passaram-se as décadas. Por vezes, inadvertidamente, os arames da gaiola ficavam separados demais, o que permitiria o vôo do papa-capim para o exterior. Um dia, saiu da gaiola por uma dessas aberturas. Procurei-o e tive a certeza que encontrara outros caminhos. Ajustei os arames e limpei a gaiola, ora vazia. À noite, quando estava a examinar aquelas dos canários, qual não foi a surpresa ao vê-lo em cima de sua gaiola. Lentamente prendi um pregador de varal à portinhola, deixando-a entreaberta. Ao me afastar, imediatamente o coleirinha entrou. Fiquei realmente feliz. Preenchi a pequena e longa gaveta com alpiste e painço, coloquei água e já naquela noite ele voltou a cantar.
Quando da muda, que se dá uma vez ao ano, ficava o papa-capim silencioso. É natural entre os pássaros, pois nesse período ficam fragilizados, a necessitar de gotas de vitamina adicionadas aos pequenos bebedouros. Curiosamente, sua troca de penas era rápida, ao contrário dos canários belgas, e um mês após voltava a emitir um breve motivo musical.
De tempos em tempos, com todo o cuidado, como habitualmente fazia com os canários, retirava-o da gaiola para cortar suas unhas, que ao crescer dificultavam a sustentação do bichinho no puleiro. Nada mais. Cantava, cantava, e parecia alegre para todos que por ele passavam. Membro da família, poderia assim dizer.
Há dias, verifiquei que estava na muda, mas peninhas novas já afloravam. Tinha uma das pernas suspensas devido às unhas bem longas. Levei cuidadosamente a gaiola a um quarto com pouca luz e retirei-o, a fim de aparar as minúsculas úngulas que o impediam de agarrar-se ao puleiro. Cheguei a cortar quatro delas, e o coleirinha não se preocupou. Pelo fato de ser bem pequeno, segurá-lo requer uma atenção especial, para que não haja a menor pressão sobre seu delicado corpo. Em determinado momento, senti que, placidamente, encostou sua cabecinha em meu segundo dedo da mão esquerda e parecia ter adormecido. Não havendo qualquer reação, verifiquei que ele dera adeus a uma longa existência, que pelos meus cálculos chegara a 33 anos. Certamente teve um colapso cardíaco, devido à idade. Desolado, saí do quarto e minha mulher imediatamente sentiu meu desalento.
Há mistérios em nossos relacionamentos afetivos, com as pessoas ou com os animais. Aquele dia apresentava algo triste, mas de esperança. Quanta alegria os seus sons nos proporcionaram. Por que não quis fugir, quando tudo era propício? Qual a razão de ter escolhido aquele instante para partir? Com carinho, Regina tomou-o em suas mãos e enterrou o companheiro de tantas décadas em nosso pequeno jardim, ao lado de uma roseira. Estará em paz.
A presença dos pássaros sempre exerceu forte fascínio em todos os tempos. No dia em que o coleirinha se foi para outra jornada, horas antes colocara em meu quarto a reprodução em gesso-pedra de uma codorniz ou codorna, datada do período ptolomaico (332-230 A.C.) no Egito. Minha cunhada Maria Elizabeth adquirira o fac-símile no The Metropolitan Museum of Art de Nova York. Servia a escultura – em pedra no original – como modelo para os estudantes, daí saliências nos cantos superior esquerdo e inferior direito, respectivamente. Essas serviam como regra para a altura do objeto a ser modelado, após terem sido estabelecidos os contornos. Curiosa coincidência. Sob aspecto outro, minha filha Maria Fernanda fixara, semanas antes do ocorrido, em pleno esplendor de vôo e luz, uma bela gaivota a sobrevoar o Douro, bem perto da Ribeira, no Porto. Pássaros diferentes, histórias diversas. Canto e magia a encantarem o homem desde as origens.
On how the death of a caged double-collared seedeater that lived in my house for more than 30 years arose reflections on the fascinating relationship between birds and humans.
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