Em Busca da Alma de Meu Pai
Os alpinistas, como uma espécie,
não são dotados de um excesso de prudência.
E isso é especialmente verdadeiro
para aqueles que escalam o Everest:
quando se vêem diante da oportunidade de chegar
ao pico mais alto do mundo,
como mostra a história,
as pessoas abandonam os julgamentos racionais
com surpreendente rapidez.
Jon Krakauer
As escaladas aos grandes e perigosos cumes resultam em relatos pungentes. Preferencialmente, detêm-se os autores no feito pessoal, atingido ou não o objetivo. Quase todos pormenorizam os preparativos, a investida rumo aos tetos almejados, a vitória ou a decepção, o regresso sempre em difíceis circunstâncias e as considerações finais.
Quando Jamling Tensing Norgay escreve sobre sua experiência na conquista do Everest, realizada com sucesso em 1996, transmite, mais do que a vitória pessoal, o culto ao pai e a glorificação de sua raça (Jamling Tensing Norgay com Broughton Coburn. Em Busca da Alma de Meu Pai – A jornada de um sherpa ao cume do Everest. São Paulo, Companhia das Letras, 2002, 326 págs.). Foi um dos livros que me acompanharam na recente viagem à Europa. Filho de Tensing Norgay (1914-1986), o sherpa, que juntamente com Edmund Hillary (vide Leituras sobre o Himalaia – III – categoria Literatura, 01/02/08), atingiu pela primeira vez os 8.848m do Everest em 1953, não se desvia Jamling do pensamento voltado ao feito de seu progenitor. Esse fato já demonstraria o relato diferenciado.
É revelador o sentimento de ausência paterna que o autor diz ter sentido, pois após o feito Tensing Norgay mudaria radicalmente o seu modus vivendi, a atender aos inúmeros apelos internacionais. Observa Jamling: O fato é que eu havia tomado a decisão de ficar longe de minha família por um longo período, para perseguir um sonho – ou para perseguir demônios. Meu pai fizera o mesmo, deixando a família a sós por meses a fio. Sua ausência era o que me causava ressentimento, quando eu era menino – um menino que queria se juntar a ele e estar com ele, e crescer para ser como ele. Contudo, o filho, nascido em 1966, em nenhum instante da narrativa deixa de prestar tributo a seu pai, pois no imaginário sherpa o desbravador Tensing Norgay ganharia a aura de sábio ao atingir, graças à deusa da montanha Miyolangsangma, o pico mais alto do planeta.
Jamling perpassa pela narrativa de maneira simples, sem quaisquer artifícios, as enraizadas tradições do budismo tibetano e o culto de seus seguidores aos “oráculos” proferidos pelos lamas. Deixa entender, com clareza, que todas as decisões têm o aconselhamento dos monges, que vivem nos monastérios a vida reclusa, mas a receber a visita daqueles que a eles se dirigem para orientação naquelas regiões inóspitas. É aconselhado a ter cautela, pois os lamas prevêem desastres inusitados naquele 1996. Jamling hesita, mas tem a força interior que o faz ratificar a aceitação para integrar a equipe de filmagem da IMAX.
Os religiosos estavam certos em seus vaticínios. O ano de 1996 revelar-se-ia trágico. Foram muitos os mortos, tantos deles por absoluta falta de condições físicas. Dois dos mais importantes alpinistas de alta montanha sucumbiriam naquele ano: Rob Hall e Scott Fischer. Como assevera Jamling, a deusa Miyolansangma estava irritada com a profusão de aventureiros a buscar a glória da conquista, movidos pelos mais estranhos desejos. Jamling se prostra, considera, revisita seu lama confidente, acalma sua mulher Soyang e enfrenta o desafio, conseguindo finalmente o objetivo maior. A salvaguarda para que a realização se dê é a não certeza. Como afirma: Se soubéssemos de antemão que conseguiríamos chegar ao cume ou que fracassaríamos, creio que nenhum de nós seria capaz do mesmo empenho. É o não saber que nos faz ir adiante.
O Everest tem se mostrado trágico para tantos alpinistas de valor ou incautos desde as primeiras décadas do século XX. Menciona Jamling um dos mais experientes montanhistas, Ed Viesturs: Não se conquista o Everest – você entra nele de fininho e depois cai fora o mais rápido que puder. E acrescenta Jamling: se a montanha deixar. Ainda assim, legiões persistem em subir, a grande maioria sem preparo. Um amigo de seu pai, que atingira o pico em 1963, observou que à medida que o congestionamento aumenta, é como pôr mais pinos numa pista de boliche: haverá mais deles para serem derrubados.
Ratifique-se essa noção de Jamling Norgay quanto a integrar-se a uma equipe, mas com a aspiração de realizar verdadeira catarse nessa empreitada. Conseguir o feito de seu pai, no sentido de sentir-se perto de sua alma, pois protegido pela deusa, torna-se o resgate pleno de sua própria identidade. Chama a atenção em sua narrativa esse olhar as múltiplas armadilhas da montanha em direção ao cume e pensar sempre em seu pai. Dedica a empreitada a ele, onipresente, engrandecido através do relato do filho. Pungentes são parágrafos próximos ao fim do livro, verdadeiro libelo:
O que mais aprendi – de meu pai e da montanha – foi humildade. Ambos a exigiam. Após suas seis tentativas anteriores de escalar o Chomolungma, meu pai recuou, não por se sentir derrotado, disse, mas em reverência. Ele me contou que pôde alcançar o cume em 1953 – como um visitante em peregrinação – graças unicamente a seu respeito por Miyolangsangma.
Foi só quando atingi o cume do Everest que fiquei sabendo que não precisava escalar a montanha para conseguir as bênçãos de meu pai. Tampouco eu precisava escalá-la para fazer oferendas à deusa que lá habita. Como uma mãe, ela compreende, guia e protege, independentemente de onde estejamos no universo.
É de nossa natureza lutar e lançar desafios a nós próprios, neste mundo físico. Talvez seja essa luta, e a excelência que acaba por vir com ela, que dêem sentido a nossas vidas – um vestígio atávico do tempo, não tão distante, em que os desafios da vida giravam em torno da simples, mas árdua e perigosa tarefa de sobreviver.
Sob outra égide, considere-se a realização pessoal de Jamling igualando-se a seu pai, não no feito histórico de 1953, mas ao conseguir atingir o desiderato perseguido nessa tentativa física e espiritual. Em Busca da Alma de Meu Pai é pois um relato pleno do culto aos antepassados e ao budismo, e de respeito à figura de seu progenitor. Não por acaso, realizado o feito, sentiu-se grato a todos os seus valores e “purificado” em relação a um tributo que se fazia necessário. A iconografia do livro ajuda-nos a entender o caminhar histórico do projeto e enriquece ainda mais a bela e comovente narrativa. Apesar de considerar sua tarefa concluída, Jamling chegaria novamente ao cume do Everest em 2003, desta vez com Peter Hillary, a fim de festejarem o qüinquagésimo aniversário da primeira escalada de seus ilustres pais.
Touching My Father’s Soul:
In this absorbing narrative, the author, Jamling Tenzing Norgay, the son of Tenzing Norgay, the Sherpa who first reached the top of Mount Everest in 1953 with Sir Edmund Hillary, documents two experiences: first, he describes his own adventure summiting Everest in 1996; second, as the title says, while retracing his father’s footsteps, Norgay shares with the readers his strong spiritual connection with his legendary father. Weaving the two parallel stories, he gives precious insights into the society and religion of the Sherpas and gripping details of his team’s attempts to rescue fellow climbers of the ill-fated 1996 expedition, when many people died on the Everest after a sudden storm.