Reflexões sobre a Essência
Mais l’amour de la danse
n’est point amour de toi qui danses.
Antoine de Saint-Exupéry
Já abordei o fascínio inicial que me conduziu à leitura de Citadelle, de Antoine de Saint-Exupéry, e o fato marcante que me levou a eleger naturalmente o livro como preferencial após o acúmulo de tantas outras leituras no peristilo dos setenta anos (vide Antoine de Saint-Exupéry, categoria Literatura, 09/11/07). A complexidade da obra, a atentar para todas as possibilidades do homem, destino, almejos, condições, aspectos envolvidos in conditio sine qua non sob o manto da responsabilidade, merece apreciações. Tenho-a sempre em meu quarto, ao lado do livro percorrido no momento. Sendo uma enciclopédia da essência humana em suas manifestações mais amplas, livro eleito pois, visito excertos com constância. Trazem-me a paz interior necessária para outro percurso, a obrigatoriedade do sono. Ao longo, como já observara, transcreverei trechos, transmitindo ao leitor conceitos fundamentais desse extraordinário pensador que foi Saint-Exupéry.
Estava a trotar pelas ruas de minha cidade-bairro, como faço três vezes por semana, quando o olhar encontrou algo que me ligou a olhares anteriores de Citadelle e a analogia se fez. Um pedinte, aparentando a minha idade, tocava um pequeno tambor e angariava alguns trocados. Passei por ele no meu lento correr, deixei umas moedas e continuei. Veio-me imediatamente uma passagem de Citadelle inserida no capítulo CIV. Saint-Exupéry escreve: O selvagem acredita que o som é somente emitido pelo seu tambor. E ele adora o tambor. Um outro acredita que o som está nas baquetas e ele adora as baquetas. Um último acredita que o som é devido à pujança de seu braço e o verá orgulhoso com o braço erguido. Você reconhece, sim, você, que o som não está nem no tambor, nem nas baquetas nem nos braços, e denominará verdade o toque de tambor (leia-se interpretação) do tamborileiro.
Tantas décadas acumuladas e mais me dou conta de que caminhamos para a “glorificação” do estereótipo, de tudo aquilo que possa causar impacto. Mídia, holofotes potentes, a necessidade absoluta do emergir sem atender à ética. O homem tem que ser visto, bajulado, incensado, e os valores intrínsecos ficam à deriva. Compactuando com setores privados, o meio político distorcido, a acalentar a corrupção endêmica, antítese de captações morais e éticas. Perdemos o norte pela instauração da mentira como prática e norma. Tambor, baquetas e braços fortes continuam em escala geométrica a prevalecer sobre o verdadeiro toque do tambor, a essência essencial a motivar a transmissão. O pensamento metafórico de Saint-Exupéry serve para todas as áreas.
Na Música, por exemplo, quando o enfoque é menos voltado à real qualidade da interpretação e mais à promoção. Esses traços mais e mais se tornam dominantes a mostrar que dificilmente haverá retorno.
Tambor, baquetas e braços, nessa alegoria, sintetizariam o próprio Sistema, não interessado nos aprofundamentos que possam levar à elevação cultural de um povo, mas ao que é aparente, que brilha, que anestesia. Os governos em nosso país, sejam eles quais forem, voltam-se impreterivelmente à manutenção de um status quo para populações que não reivindicam com firmeza, por absoluta letargia, os atributos ou direitos a formarem a noção de cidadania sob todas as égides. Jornais e revistas estão sempre a buscar anunciantes que deságuam publicidade voltada à coletividade, entendida esta como desprovida de quaisquer julgamentos críticos. As propagandas estarão a compor o todo, povoado por tantos artigos visando ao sensacionalismo ou ao vazio das idéias; os canais abertos, salvo raríssimas exceções, exibem programas endereçados preferencialmente àqueles incapazes de apreciação mais ajuizada. A grade televisiva volta-se ao dirigismo do não pensar. Exterminaram-se princípios voltados à cultura como meio de elevação de um povo. Como exemplo, os grandes shows de “música” popular reúnem milhares de pessoas, que movimentam seus braços atendendo aos apelos previamente ensaiados no culto a ídolos descartáveis. Lembram as multidões “eufóricas” em seus gestos nos tempos de Hitler. Em ambos os casos, a presença da distorção. E as televisões insistem em pormenorizar gestuais. O gesto coletivo que inibe a reflexão.
Saint-Exupéry, nesse mesmo capítulo, continua: aquele que lê uma carta de amor sente-se lisonjeado independentemente da tinta e do papel, pois ele não buscava o amor nem no papel nem na tinta. Perde-se o conteúdo, quando esse princípio do essencial desaparece. Mais e mais volta-se o homem à tinta e ao papel. A mensagem contida teria pouca importância.
O piloto, escritor e pensador, personagem de um império imaginário e atemporal que é Cidadela, entende que seu reino não poderia ser jamais entregue ao geômetra que venera o triângulo usado para projetar a construção do templo. Há essencialidades na maneira de comandar um povo, e estas perdem o sentido na medida em que se desviam da compreensão intrínseca das reações humanas. Não estaríamos, mais acentuadamente em nossos dias, afastando-nos da própria natureza do homem? Não teria perdido ele, nessa globalização sem retorno previsível, a percepção da individualidade, integrando-se à massa informe de um rebanho sem nome? Não necessitaria o homem repensar, se ainda há tempo, todos os valores que o norteiam? Perguntas que surgem enquanto continuo minha lenta corrida pelas ruas de minha cidade-bairro, o Brooklin.
As I was jogging in my neighbourhood, I passed by a beggar playing a drum. In a flash a passage of Saint-Exupéry’s book Citadelle (The Wisdom of the Sands) came to my mind. The main character wonders from where the sound of a drum comes. Is it from the drum itself? From the sticks? From the player’s arms? Just to conclude it comes from the drummer’s interpretation.This was the starting point of this post, a consideration on the modern society tendency to promote the false and shallow to the detriment of the genuine and substantial. Shouldn’t we rethink our values, searching for the hidden essence behind the superficial appearance?