Saúde “Sub Judice”
Abracem-se milhões!
Enviem este beijo para todo o mundo!
Irmãos, além do céu estrelado
mora um Pai Amado.
Friedrich von Schiller (Ode à Alegria – An die Freude)
Lembrar 2004 é recordar extremos. A morte de meu querido genro José Rinaldo, um linfoma que instalou-se em meu interior, químios prolongadas e debilitantes, mas também o lançamento de quatro CDs, recitais nos lugares que amo na Europa e a família, esta proteção extraordinária que nos dá forças inacreditáveis. Se, por um lado, o vaticínio médico inicial foi plúmbeo, com prazo de sobrevivência limitado, sob aspecto outro jamais me alarmei, a entender, àquela altura que vivera bem, conseguira objetivos que na juventude pareciam-me nebulosos e constituíra uma bela descendência ao lado de minha mulher Regina. Em nenhum instante pensei em batalha perdida, mas sim na luta cotidiana a visar suplantar o mal instaurado.
Segui criteriosamente todos os conselhos de médicos competentes aos quais devo permanente gratidão. Rui Yamanishi, meu clínico geral desde 1978, Sílvio Donatangelo, Belmiro José Matos e Ana Rita Burgos, hematóloga e oncologista que me recebe todos os meses em consultas longas e minuciosas, a interpretar com competência os exames obrigatórios.
Durante os primeiros meses recebi o mesmo conselho de todos os dedicados profissionais: evite aborrecimentos, alimente-se bem, curta sua Música e prepare-se fisicamente através de exercícios sistemáticos. Tenho sido um discípulo aplicado, pois abandonei, a partir de meados de 2004, todas as Comissões da Universidade de São Paulo, pois tantas eram as reuniões que se mostravam estéreis, dedicando-me doravante à sala de aula, à edição da Revista Música e à revisão de manuscritos de Henrique Oswald. Liguei-me ainda mais aos recitais e gravações no Exterior. Baixou a adrenalina, senti-me bem e passei a praticar outros exercícios, ter mais tempo para a Música e para as leituras, cuidando também da alimentação mais selecionada. Como sempre, família e amigos leais enriqueceram o período pós-químio. A conselho de meu saudoso pai, desde os anos 60 realizo pela manhã, durante 15 minutos, os movimentos da chamada ginástica sueca.
A partir de Janeiro de 2006 corro – o melhor seria dizer troto – pelas ruas de minha cidade-bairro, o Brooklin. Três vezes por semana cinco quilômetros são percorridos com alegria e disposição. A vontade de superar o mal não é consciente, mas faz parte de um todo que aponta para a esperança. Esse lento correr tornou-se um hábito salutar. Aumentou minha disposição e prazerosamente passo por pontos que me são familiares, mas a obedecer roteiros diferentes. Aos domingos chego a percorrer seis quilômetros, devido ao silêncio das ruas. À medida que o condicionamento físico se aprimora, mais o prazer de correr, de estar vivo é real. Os entendidos falam nas endorfinas. Diria, contudo, uma concessão Superior sentir o prolongamento da existência. Nessas trajetórias vêm-me à mente muitas das idéias de posts futuros. Cruzo com muitos cidadãos que fazem o mesmo, corridas ou caminhadas. Tornamo-nos hábeis em reconhecer as calçadas em péssimo estado – quando existem – e as ruas plenas de irregularidades. Quase nada a fazer, pois o descaso faz parte da cultura de todas as nossas administrações. A situação ajuda-nos, porém, a ter aguçado um outro sentido, aquele voltado à “acrobacia”.
Passadas e respiração mesuradas desenvolvem a rara qualidade da paciência. Na minha faixa etária, o correr obedece a pulsações que não devem suplantar determinado índice, mesmo que o físico clame por uma maior velocidade. Aprende-se a ter cautela, a esperar o tempo, a controlar o limite das batidas cardíacas. Uma lição para a mente e para o físico.
Soube da Maratona de São Paulo, impossível, no meu caso, de ser percorrida em seu trajeto integral. Generosamente, a organização Yescom cuidou de dois outros percursos, que saem basicamente do mesmo ponto, com cinco e dez quilômetros. Alegra a todos os que se amoldam a essas distâncias. Com inicial temor, e logo após movido por pleno entusiasmo, inscrevi-me no percurso menor. Ao pagar em um banco a taxa de inscrição, senti-me como um jovem, não acreditando que isso fosse realmente possível após vicissitudes de anos anteriores. O Barão Pierre de Coubertin (1863-1937), fundador do Comitê Olímpico Internacional, dizia que o importante não era ganhar, mas competir. Acrescentaria que competir pressupõe, talvez, a vontade silenciosa de ganhar, mas no meu caso se traduz na simplicidade de apenas participar. Já é uma dádiva poder correr com milhares de participantes, a esmagadora maioria somente pelo prazer. Festa para todos, alegria indizível para poucos.
Ao buscar o meu kit, uma sensação inusitada. Deparei-me com uma legião com o mesmo propósito. A terceira idade tem suas compensações e logo fui atendido. Recebido o material, dele a constar camiseta, chip para tênis, folhetim com as instruções e mais o número a ser fixado no peito, fiquei deveras receoso por ter decidido voluntariamente participar, num misto de alegria e ansiedade. Fui contemplado com o número 20.544.
Confesso que dormi bem na noite que antecedeu a corrida e acordei pleno de euforia. Tinha a impressão de um primeiro recital de piano. Outra era a vestimenta daquela das apresentações pianísticas. Com orgulho coloquei o uniforme do Vitória de Guimarães – terceiro no campeonato português de 2008 – que me foi oferecido este ano em Lisboa pelo dileto amigo José Maria Pedrosa Cardoso, mas o chapéu era de minha Portuguesa de Desportos, lusa de tantas glórias e tradições igualmente. Uma multidão aglomerava-se, pois foram 12.000 participantes para as quatro modalidades: Maratona, 10 e 5 mil metros e também caminhada dessa última distância. A largada foi inesquecível. Os mais jovens e os melhores atropelaram e passaram-me com extrema facilidade na primeira subida da nova e belíssima Ponte Estaiada. Segui o conselho de meu bom amigo Jorge, presente ao evento como assistente. Asseverou-me que nos primeiros minutos deveria correr com os cotovelos apontados para fora, a fim de evitar ultrapassagens perigosas daqueles mais rápidos ou vigorosos. Na marginal de Pinheiros consegui acompanhar as passadas da maioria e já na outra subida, na Ponte do Morumbi, muitos foram ficando para trás. Novamente na marginal, sentido contrário, em direção à Avenida Águas Espraiadas, houve equilíbrio, mas na alça da Ponte Estaiada uma longa subida fez com que dezenas continuassem apenas a andar. Nesse trecho consegui ultrapassar, sem mudar meu ritmo de corrida, muitos outros inscritos. Já na Águas Espraiadas, mais uns 1.500 metros separavam-nos do término dos 5 mil metros. Cheguei no pelotão intermediário, absolutamente feliz com o meu tempo de 40’43”; diria, vivendo a alegria da maturidade da idade adulta. Com muito orgulho, fui o primeiro colocado na minha faixa etária, que incluía outros dois corredores. Todos entregaram os chips amarrados aos cadarços dos tênis e receberam as medalhas de participação, água, chocolates e frutas. Uma festa. Minha netinha Emanuela, de quatro anos, ao ver-me com a medalha pendurada no peito, abraçou-me com o sorriso puro da idade: “Vovô, eu sabia que você ia ganhar”. Sim, ela tinha razão. Ganhamos todos os participantes.
Ter recebido essa medalha foi para mim algo especial, emoção superior àquelas conseguidas nos difíceis concursos pianísticos no Brasil e no Exterior durante a juventude. As musicais apontavam para a trajetória sonora, minha companhia existencial e amorosa, a da corrida indicava o maravilhamento que é a vida. Quão bem o grande Beethovem soube entender no final da Nona Sinfonia a Ode à Alegria de Schiller (1759-1805). Humildemente entendo como dádiva o estar a participar intensamente de emoções tão fortes. Que o entusiasmo permaneça, a indicar outras aspirações.
Não posso contudo deixar de voltar à realidade. Nas próximas semanas novas tomografias computadorizadas, novos exames de sangue. Lá estará Dra. Ana Rita a interpretar os insondáveis mistérios de nossas transformações. Mas as esperanças continuam em alta. Bem haja!
São Paulo City Marathon:
In 2004, after a diagnosis of lymphoma, sessions of chemotherapy and somewhat gloomy prognosis from the doctors, I was advised to avoid stress, sedentary life, junk food and to take exercises. So, in addition to my usual daily Swedish gymnastics, I began to jog in the streets of my neighborhood, running 6 km three times a week. I heard of the annual São Paulo Marathon, held last June 1st. The race organizers also sponsored a 5km-10km fun run and a 5 km walk in conjunction with the main event for those who, not qualified for the marathon, wanted to participate for the accomplishment of having run the race at all. I registered for the 5 km fun run. This post is an account of the emotions of my first run: the start with a mixture of amateur and professional runners, the course through the city and the climbing of the new bridge (Ponte Estaiada) – for me the most difficult point of the run, where lesser trained runners were forced to walk – people lining the sides of the course to cheer the participants, the arrival at the finish line, the medal. Not bad for a cancer patient like me, a way to prove to those in the same conditions that it is possible to overcome our deficiencies and have the same life experiences others are so lucky to have.