Criação, Trajetória, Novos Horizontes
Ainsi n’écoute jamais ceux qui te veulent servir
en te conseillant de renoncer à l’une de tes aspirations.
Antoine de Saint-Exupéry
No longínquo 1990, a Revista Música foi criada. Lutei por essa conquista a partir de meu ingresso na Universidade de São Paulo, em 1982. Desde o primeiro número, publicado em Maio daquele ano, estive como editor responsável, a ter como assistente o colega Marcos Branda Lacerda.
Pareceu-me sempre muito perigosa a premência pela produção acadêmica por parte dos Institutos de Fomento e das Universidades Públicas, prática nacional que obriga aqueles que seguem caminhos universitários a publicar em prazos certos, mas com resultados tantas vezes incertos. O açodamento leva à quantidade, não à qualidade. Soma-se um item ao currículo individual, mas a densidade, ou mesmo, num sentido mais originário, a vocação ficariam constantemente à margem, pois itens desconsiderados numa avaliação simples. Desta maneira, parte considerável das publicações universitárias estaria a abrigar artigos rigorosamente descartáveis, mas “indispensáveis” à somatória que será avaliada em tantos sentidos a beneficiar interessados: curricular, concursos, possibilidade de viagens para participação em Congressos, estágios prolongados visando a doutorados ou aos chamados pós-doc, obtenção de bolsas individuais ou aquelas a atender a projetos temáticos ou outros mais, que adquirem designações dependendo dos dirigentes acadêmicos de plantão. Acumulam-se dissertações e teses nas muitas universidades brasileiras sem o embasamento necessário, mas que atenderam aos requisitos institucionais e responderam aos relatórios extensos e friamente burocráticos (vide O Drama da Pós-Graduação, 21/06/07). O governo rejubila-se ao apresentar índices crescentes relativos à pós-graduação e às somas que foram dedicadas à pesquisa. Dados estatísticos tantas vezes tergiversantes.
Na minha área específica, sucessivas viagens ao exterior fizeram-me entender que uma publicação acadêmica no Brasil necessitaria de permanente diálogo com outros países, onde a Música tem raízes sólidas e aprofundamentos fazem-se sentir há milênios. Precisaríamos de longo debruçar nessa busca de conhecimentos diferentemente orientados, a enriquecer toda uma comunidade universitária. O excelente compositor Aurelio de la Vega, então professor da Universidade da Califórnia, em entrevista lapidar a mim concedida e publicada no saudoso “Cultura” de O Estado de São Paulo (nº 309, ano V, 18/05/86, págs. 11-12), ao discorrer sobre a criação erudito-musical do Brasil, afirmou que “o isolamento pronunciado em que se mantém o compositor brasileiro é perigoso, pois cria uma atmosfera cômoda de autocomplacência, afugenta a comparação crítica, muitas vezes proveitosa, e rebaixa com os anos o nível técnico-criativo do compositor”. Mutatis mutandis, essa prática autocomplacente não teria penetrado em outras áreas musicais, como as referentes a teses, artigos, performances, em que uma atitude condescendente existe? As Revistas sobre Música no Brasil não estariam exageradamente acalentando uma extensa rede musical endogênica? Não haveria, por falta de diálogos mais abrangentes com o Exterior e pela necessidade da publicação brasileira que leva a pontuações nos currículos apresentados aos Institutos de Fomento, uma espécie de perigosa reserva de mercado?
Não foi fácil estabelecer parâmetros porcentuais aos artigos internacionais, que pudessem ao menos indicar pensares outros, constantemente trazendo subsídios de grande valia para a ampla área da Música, seja na teoria, na musicologia como um todo ou na interpretação. Sofri críticas as mais díspares por ter insistido nesse caminho, que entendo profícuo à ventilação de outros conhecimentos. Esse olhar diferenciado não apenas nos enriquece, como provoca a necessidade do aperfeiçoamento. Frisaria que, ao buscar a excelência – inúmeras vezes presente entre nossos estudiosos -, deparamo-nos com o choque, pois são múltiplas as tendências além-fronteiras. Nesse desiderato, mantivemos no idioma original artigos escritos em inglês, francês, espanhol e italiano, pois são as línguas mais familiares aos estudos universitários.
Mencionemos, como reconhecimento, os colaboradores internacionais nestes dezessete anos, seguindo a cronologia da Revista Música. São eles: Günter Mayer, Karlheinz Stockhausen, Mario Lavista, Wilhelm Zobl, Bruno Prunés, Myriam Chimènes, Aurelio de la Vega, Giuseppe Chiari, Keith Swanwick, Kwabena Nketia, Vincent Déhoux, Massimo Caselli, Humberto D’Ávila, Kasadi Mukuna, J.M. Bettencourt da Câmara, Ricardo dal Farra, Juan Pablo Gonzáles, Robert Blackburn, Jorge Peixinho, Antônio Sérgio Azevedo, Didier Gigue, Anik Devriés-Lesure, Caroline Rae, Enrico Fubini, Pierre Boulez, Angela Tosheva, François Lesure, Herman Sabbe, Rui Vieira Nery, José Maria Pedrosa Cardoso, Nancy Lee Harper, Elisa Lessa. Quanto aos estudiosos brasileiros, inúmeros estiveram a enriquecer o conteúdo da publicação com artigos que se tornaram referências. Dentre os autores responsáveis por artigos argutos e originais, sempre em ordem cronológica: Marcos Branda Lacerda, Régis Duprat, Walter Zanini, Maurício Dottori, Paulo Chagas, Carlos Tarcha, Celso Mojola, Paulo Costa Lima, Paulo Castagna, Arnaldo Daraya Contier, Mario Ficarelli, José Paulo Paes, Gilberto Mendes, Lorenzo Mammi, Enio Squeff, Willy Corrêa de Oliveira, Luiz Tatit, Antônio Luis Cagnin, Pedro Paulo Salles, Luís Antôno Giron, Paulo Roberto Peloso Augusto, Marco Antônio da Silva Ramos, Ricardo Tacuchian, Susana Cecília Igayara, Ecléa Bosi, Benedito Lima de Toledo, Mario D’Agostino. A qualidade dos artigos tem servido de fonte importante para tantos outros estudos e de luz para pesquisas de destaque.
Importa considerar que a Revista Música jamais, friso, jamais solicitou ajuda aos Institutos de Fomento do Estado ou do Governo Central. Sim, é muito difícil a sobrevivência sem o auxílio oficial. A fim de que não houvesse quaisquer interferências, seja através de pareceres por vezes estranhos, seja pela enorme burocracia a levar à publicação, seja nessa característica da Revista Música de forte alento aos artigos qualitativos internacionais, estando eu desde 1990 como editor responsável sempre mereci a generosa acolhida, em oportunidades distintas, dos diversos órgãos da Reitoria da Universidade de São Paulo e da Escola de Comunicação e Artes da U.S.P., assim como a atenção cuidadosa da Editora da Universidade, a EDUSP. Isso nos deu liberdade da escolha, a busca sine qua non da não concessão e o interesse claro de ilustres musicólogos além-fronteiras pela austeridade de propósitos. Sendo uma publicação do Laboratório de Musicologia do Departamento de Música da ECA-USP, Laboratório este que esteve sob minha coordenação até fins de 2007, houve sempre uma simpatia das lideranças universitárias pela publicação, pois sabiam de nosso norteamento, assim como de nossas dificuldades.
Acabo de atingir a compulsória e deixo a função de editor responsável. O número ora publicado é o último sob minha coordenação. Assume Marcos Branda Lacerda, competente professor e especialista em etnomusicologia. Sugeriu-me continuar como membro do Conselho Editorial. Não aceitei o sincero convite, por entender que rumos novos deverão advir e que o meu tempo como responsável encerrava-se com o número ora lançado. Sob nova orientação, certamente trilhas outras serão tomadas, oxalá altamente positivas. Faz parte do caminhar. A sensação, ao ver as lombadas dos vinte números reunidos, traz-me reconforto, pois percorro com o olhar todo um longo trajeto que surgia da idéia, do convite ao articulista, das revisões necessárias e do lançamento. Foram dezessete anos de fervor.
Deixo pois registrado o grande carinho que sempre mantive pela Revista Música. Cada exemplar significou, para este professor que atinge hoje a aposentadoria, uma categoria de felicidade possível. Outros compartimentos estão a proporcionar-me alegria de viver. A todos os que colaboraram, fica o meu profundo respeito e gratidão. Sem as contribuições preciosas, a Revista Música não teria razão de existir. E na certeza da permanência da publicação, conduzida pelo pensar de Branda Lacerda, renova-se a esperança de continuidade com qualidade. Que o canto das sereias não o perturbe. Assim espero.
After entering the University of São Paulo in 1982, I founded in 1990 a music periodical, “Revista Música”, published on behalf of the Department of Music by EDUSP (the University Press). I have been its chief editor from the beginning until now, when I am retiring from my position at the University. The present issue is a major milestone for me, for it is the last under my supervision. My aim has always been to publish creative writing on music by welcoming first-rate contributors from a variety of disciplines, countries and theoretical perspectives. I believe it is through interaction with others and confrontation of ideas that we construct new meanings, thus the importance of the articles by foreign authors, who brought new ideas and approaches. My thanks to all who have made “Revista Música” possible. The ethnomusicologist and fellow professor Marcos Branda Lacerda will succeed me as chief editor. I wish him well.
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