Navegando Posts publicados em julho, 2008

Eterna Sina

Caíam-lhe soltas no colo vergado
As longas madeixas em brancos anéis:
Que nobre semblante de rugas sulcado,
Sulcado dos anos, e mágoas cruéis !

Antônio Augusto Soares de Passos

O carrinho de mão de Sísifo. Clique para ampliar.

A saga de Sísifo prossegue (vide Sisuphos 22/03/07, categoria Cotidiano). Diariamente continua a passar em frente de minha casa levando em seu carrinho de mão as mesmas coisas. Nada é alterado. Roupas velhas, placas de papelão, jornais, tudo prossegue exatamente como sempre.
Ultimamente, fato novo tem irritado profundamente nosso Sísifo. Seu velho veículo já encerrou o ciclo da resistência. Com freqüência a roda sai do eixo, obrigando o ancião a tudo retirar, a fim de conserto provisório. Essa mazela não afetou jamais o Sisuphos mitológico, obrigado a levar imensa pedra ao topo da montanha, sem atribuição outra a sobrecarregar o triste fardo. Portanto, nosso condenado é ainda mais infeliz ao ser atingido por fatores que independem de sua sina primeira, carregar nesse carrinho os mesmos objetos.
Sua irritabilidade é levada a extremos, mercê desse problema relacionado ao seu transporte. Se por algum motivo se desespera pelo destino implacável, chega a vociferar e mesmo a cuspir em transeuntes. Sua índole não é má, mas sabe-se lá a ação dessa roda que teima em sair do eixo sobre a mente de Sísifo. Há não mais de um mês, o ancião cuspiu em uma senhora. Ato indigno, é certo, mas perdoável naquele destinado ao drama da rotina exemplar. Soube que um jovem celerado que descia a minha rua viu o acontecido e, indo rápido em sua direção, aplicou-lhe uma “tesoura voadora”, a atingir em cheio as costas de nosso pobre homem, jogando-o ao chão. Apreendi que o delinqüente continuou o seu caminho, sem o mínimo remorso pelo ato covarde, pois certamente descarregara em um indefeso toda a ira contida e disposição para a violência. Mercê do temor a que estamos submetidos diariamente frente a tais elementos, não houve a mínima reação por parte dos transeuntes. É a aplicação absoluta de uma lei “subjetiva”, a implicar o silêncio e o não ver. Algum morador atencioso, que assistira à cena de uma janela, chamou a ambulância, e lá foi Sísifo acidentado para algum Pronto Socorro. Cheguei logo após o ocorrido e marcas de sangue em plena rua atestavam ser o nosso Sísifo bem humano. Pensei que o combalido cidadão não fosse resistir à fúria do tresloucado. Se Sísifo tivesse morrido haveria mais um assassino à solta. Não apenas o Poder Público não protege o cidadão da violência alarmante e vergonhosa a imperar nesse país, como não atende aos milhares de Sísifos, pois esses não votam. O assistencialismo demagógico passa bem distante das tragédias vividas pelos moradores de rua.
Durante um bom mês, a réplica do personagem mitológico condenado pelos deuses desapareceu do Brooklin-Campo Belo. Regressou há cerca de duas semanas com os cabelos cortados e com seu desastrado carrinho. Este teimava em quebrar.
Um dia desses, ouvi pela manhã alguém praguejar em alta voz. Fui à janela e vi Sísifo, que olhava seu veículo e gritava. Novamente o drama da roda. Retirou tudo do carrinho e estava a consertá-la, quando desci e fui ter com ele. Perguntei-lhe se gostaria de um outro novo, a aguardar até uma negação. Olhou-me e respondeu afirmativamente, com um esboço de sorriso sem esperança e com o olhar perdido, reflexo de tantos outros dramas vividos, de tantas andanças sem destino. Fui a uma casa comercial bem próxima e adquiri um novinho. Levei pessoalmente a nova “viatura” a Sísifo, num percurso de cerca de cem metros, a sentir que mesmo sem nada ele tem peso considerável. Um surdo obrigado foi o sinal da aprovação. Subi para os meus estudos e cerca de uma hora após vi que transferira todo o seu universo para o novo carrinho. Curiosamente, levou os dois, a alternar pequenos trajetos. Deixou bem na esquina o velho companheiro de infortúnio, acabado, com o eixo torto, as barras de sustentação completamente desalinhadas, mas bem limpo. É possível que tenha pensado que o antigo carrinho pudesse ainda servir a alguém. Nesses infortunados há generosidade que não buscamos conhecer.
Segue Sísifo o caminho de sua desdita. Pelo menos, um fardo saiu de seus ombros. Talvez pragueje menos, mas a sina, esta continuará até o final de seus dias, pois os deuses parecem assim querer, com o beneplácito de nossos homens públicos.

Another post about Sisyphus, the homeless old man who wanders incessantly across the streets of my neighborhood pushing a handcart piled high with trash, reminding me of the mythical king of Corinth condemned to roll a huge block up a hill only to watch it roll down again, making his toil endless.

Raridade a Evidenciar Alegria Contagiante

Músicos de banda, Barcelos, Portugal. Figuras em barro pintado, 6 cm. Clique para ampliar.

Devemos fazer públicas nossas alegrias
e esconder nossas mágoas.

Provérbio Inglês

Fatos inusitados são difíceis de esquecer. Permanecem, a apontar lembranças agradáveis ou não. Quando enriquecidos por diálogos a sedimentar recordações, merecem exposição. Em toda a minha vida, apenas por duas vezes deparei-me com motorista de táxi ouvindo música erudita. A primeira vez deu-se em Coimbra, e o taxista que estava a ouvir a Antena 2, fixado numa das belas Sinfonias de Haydn, disse-me que na cidade somente ele e um outro colega ficavam na permanente escuta da música chamada erudita, clássica ou culta. Palavras elitistas, é certo, mas que delimitam territórios por todos conhecidos.
Estava na Rua Riachuelo, no centro de São Paulo, e peguei um táxi parado nesse trânsito absurdo, pois de volta à minha cidade bairro, Brooklin. O motorista, a aparentar seus quarenta e tais anos sintonizava o programa de início da tarde da Cultura FM, apresentado pelo bom músico e colega Gilberto Tinetti. A minha primeira pergunta foi a do porquê estar ele a ouvir música erudita. Tranqüilamente, respondeu-me que sempre assim o fazia e que o seu dial era imutável. Quis saber mais, indagando qual a origem dessa preferência. Contou-me que seu pai, nascido em Boqueirão dos Coxos, no sertão da Paraíba, tocava trombone na banda da cidade, no coreto e nas festividades, pois tratava-se da única atração da comunidade. Desfilou familiares que tocaram e tocam instrumentos de metal, sendo que ele mesmo conseguia tirar uns sons, com certa dificuldade, de um outro trombone. Enfim, o taxista, de nome Gerson, é um homem feliz e isso traduz-se na sua fala entusiasmada. Evangélico, tem uma visão muito bonita da função da música no ser humano. Teve graça outra história que contou relacionada à música. Seu irmão, ainda bem miúdo, tocava pratos em uma banda e certa vez, em uma viagem para Jaboticabal, viajou dentro da campânula de uma tuba, essa parte do instrumento bem aberta e em forma de sino. Hoje, desenvolve atividade de maestro.
Contou-me com orgulho a respeito de um amigo, que chegara a uma das Sinfônicas do Estado de São Paulo. Ao presenciar sua saudável alegria, relatei o que lera há tempos, não me recordo se em livro ou revista. Estatísticas evidenciavam que os músicos que tocam instrumentos de cordas em uma orquestra, muitas vezes após o ensaio deixam as partituras sobre as estantes, diferentemente de outros, que executam instrumentos de metal. Segundo o texto, tantos são os violinistas, violistas ou celistas de orquestra que sonharam um dia ser solistas. Apesar da meritória carreira de instrumentistas de orquestra, conscientemente ou não poderia haver uma frustração pela não realização de carreira solo ou cameristíca de relevo. Quanto àqueles que tocam instrumentos de metal, oriundos de bandas, muitas vezes do interior deste enorme país, chegar à uma orquestra sinfônica representaria a glória, daí a possível dedicação ao levarem as partituras para um estudo mais aprofundado em suas casas. Gerson achou muito pertinente essa estatística, ao completar que entre os seus havia um profundo prazer em fazer música, sob quaisquer situações.
Chegou um momento em que me perguntou se eu conhecia música. Apresentei-me e imediatamente, com um largo sorriso, apertou-me fortemente a mão ao encontrar um dos seus. Já ouvira na Cultura FM obras por mim tocadas. Falei-lhe do programa que apresento semanalmente na USP-FM e logo tomou nota do dial e do horário. Foi a partir dessa irmanação sonora que captei a paixão sincera que Gerson, o taxista privilegiado, tem pela música. Falou-me da importância dos sons em sua vida e dessa absoluta identificação com tudo que envolve o prazeroso assunto.

Grupo folclórico romeno. Figuras em madeira, 15 cms. Clique para ampliar.

Depois de um trajeto em que a conversa foi muito estimulante, cheguei ao meu destino. Após o acerto da corrida, disse-lhe para aguardar um pouco. Entrei em casa e levei-lhe dois de meus CDs. Pediu autógrafos, colocou um deles na bandeja apropriada e já estava a ouvir, quando finalizou afirmando ter um cliente que só anda em seu táxi, pois adora ouvir música erudita e que, tenho a certeza, contagia-se pela felicidade que Gerson deixa transparecer. Asseverou-me que na primeira oportunidade tocará as gravações recebidas para o freguês habitual. Despedimo-nos, e lá saiu ele a ouvir um dos CDs em seu táxi impecável e com aura diferenciada.
Ainda fiquei certo tempo a pensar e a tecer comparações. Justamente no post anterior focalizei uma ex-aluna que não se encantara com a magia da música, apesar de estudos mais acurados. Sob outra égide, um músico amador feliz, certamente contente com a vida e com sua profissão de taxista, a exaltar a música de forma efusiva. Realmente, nada como um dia depois do outro.

A quite interesting conversation with a taxi driver who enjoys listening to classical music on the radio as he drives through the maze of streets of São Paulo city.

Sobreviver, eis a Questão

São José pensativo. Figura de presépio. Arte popular, terracota, sul de Minas Gerais, década de 70, 14 cm.

Não tiveste na vida um dia escasso
de paz e de alegria ! Escurecida
te foi sempre a existência, desvalida,
e cortada de abismos, passo a passo.

Camilo Castelo Branco

Encontrei uma ex-aluna. Não a via há muitos anos. Estudos na Europa, regresso ao Brasil e hoje dá aulas particulares em Conservatório privado. Perguntada, não apresentou objetivos claros, pois não tem particularmente nenhum projeto musical de interesse. Mantem-se dando aulas, como poderia estar a trabalhar em qualquer outra atividade que a sustentasse, pois indagada sobre se amava a música, disse-me que conseguia ganhar o necessário para “ir levando a vida”, segundo suas palavras. Bonita, contudo ao sorrir transmite no presente disfarçada amargura.
Convidei-a para um rápido café e trocamos algumas frases. Interessava-me saber qual o seu real comprometimento com a música e qual a razão de continuar. Asseverou-me que era a única “coisa” que sabia fazer razoavelmente, ou seja, dar aulas. A uma outra pergunta, relacionada ao tipo de transmissão que passava aos alunos, ponderou que comunicava a eles o que aprendera e procurava, preferencialmente, não criar casos. Tinha sobre o piano um relógio e jamais ultrapassava um minuto sequer do tempo de aula, pois eram muitos os que a aguardavam. Insisti, a procurar saber se, ao menos, estudava um pouco, pois quando minha aluna na década de 80 na Universidade chegou a tocar com certa destreza, sem comprometimento, é certo, mas ao menos executava, nem digo interpretava, o que estava escrito. Rapidamente, disse-me que lia presentemente um movimento de Sonata de Beethoven e mais Noturno e Improviso de Chopin. Você não busca conhecer outras obras? Retrucou, sem entusiasmo, que precisaria ouvir CDs de outros autores, mas que não tem a mínima vontade de fazê-lo, preferindo assistir a filmes na TV a cabo ou ir a um shopping center com o namorado. As leituras se concentravam em revistas semanais. Quando muito, interessou-se por um dos tantos Harry Porter, mas desistiu, porque o livro era muito espesso. Despedimo-nos, pois a ex-aluna teria de tomar o ônibus, a fim de dar as aulas da sobrevivência. O sorriso de adeus refletia ainda mais o enigma do conformismo.
Creio como uma tragédia, existente em enorme quantidade de profissões, a continuação em tarefa que não é amada. Legiões de pessoas descontentes estão a trabalhar em atividades com as quais não têm a mínima ligação. Lembro-me que em 1962, quando em Moscou, disseram-me que apenas era permitido o estudo da música, da dança ou a prática do atletismo àqueles que realmente se mostrassem aptos para o desenvolvimento qualitativo. Cheguei a conhecer miúdos extraordinários, tanto a tocar, como na arte da dança. Logicamente, a União Soviética tinha um regime a privilegiar somente os melhores. Havia sub-repticiamente a necessidade da total exaltação do Regime através dos mais aptos. Propaganda que se tornou motivo de tantas suspeitas fundadas. Apesar de sucessos reais, quantos não foram aqueles que na U.R.S.S. desistiram pelo fato único da pressão intensa a causar diferente categoria de desânimo ou até de desespero. Outros Sistemas totalitários privilegiam igualmente determinadas atividades através de disciplina férrea. E insistem.
Se destacamos situações que podem ser o opposite do exemplo tipificado da ex-aluna, todavia nas atividades ligadas à Música, excluindo-se a dança, pode o “sobrevivente” camuflar durante toda a vida o não compromisso e a não atualização. Geralmente não há cobranças e o infortunado jovem, que inicia os estudos sob orientações desinteressadas, mornas e não competentes, corre o sério risco de trilhar caminhos duvidosos, desestimulantes e entristecedores. Sob aspecto outro, pereniza-se, numa situação como a da mencionada ex-discípula, o precário conhecimento transmitido ao aprendiz, o repertório absolutamente repetitivo, desinteressante, mal tocado e sem a menor possibilidade de ventilação voltada a obras outras. Aliás, neste país do “consagrado”, a simples constatação de intérpretes solo, estes na acepção da palavra, nacionais ou internacionais, está a evidenciar sempre a repetição de um repertório petrificado. Para isso, é só o leitor consultar as programações estampadas nos veículos de comunicação, onde até os próprios executantes são, quase sempre, igualmente repetitivos.
Ficaram-me os nomes dos extraordinários compositores ditos pela ex-aluna sem entusiasmo. Ela estaria a representar o infortúnio exemplar de destinos mal traçados pelas mais diferentes razões. Beethoven e Chopin significariam Débitos e Créditos para um bancário sem afeto pelo trabalho. A origem do vazio que se instala pode ter sido a mesma. Na música, em acréscimo, a expansão do desalento estaria a propiciar, a outras gerações mal formadas e sem a possibilidade do conhecimento, a perenização deturpada apenas de algumas consagradas obras de Beethoven, Chopin e também J.S.Bach, Mozart, Liszt, Schumann, Debussy… , sem o mínimo “tempero”. E em nível de excelência interpretativa, no outro pólo, o músico conhecido por suas notáveis performances técnico-instrumentais continuará o caminho da repetição sem fim, sem oxigenação repertorial, sem igualmente vislumbrar outros horizontes. O público, elo final, espalhará como um pólen amargo a rotina da escuta. E para os casos semelhantes aos da ex-aluna, encontráveis em Conservatórios particulares, ou públicos, e não raramente nas Universidades privadas, ou do governo, sobram as pétalas mirradas de pouquíssimas obras que chegam até a ser cantaroladas e, por extensão, divulgadas por falta de interesse em se conhecer outros caminhos sonoros. Quando essas músicas caem em mãos sem o cérebro amoroso, fenecem como as folhas de inverno. E as sombras chegam.

A reflection on the disillusionment that sets in with people that are frustrated with a work that is not aligned with their interests, but stick to it for sheer economic necessity. In music, this is a tragedy not only for the professional, who will approach music in a repetitive, unmotivated way, but also for the students who may eventually work under such passionless guidance. Unfortunately, it is not always that job and vocation are the same thing.