Domingos Rebelo (1891-1975)

Um ‘não sei’,
nunca se escreve.

Adágio Açoriano da Ilha de São Miguel

Emigrantes. Óleo s/tela (1926). A.2355 x L.2905 mm. Domingos Rebelo. Museu Carlos Machado.

Tomava café com meu amigo Luís Gonzaga e este, após ter lido o post O Homem Inesperado, perguntou-me sobre “Art”, a peça teatral da mesma autora, Yasmina Reza, mencionada no texto (O Homem Inesperado, categoria Literatura e Cotidiano, 31/05/08). Disse-lhe que o motivo central da peça, a determinar questionamentos amadorísticos sobre a Arte e o cotidiano existencial, baseava-se na aquisição, por um dos três personagens, de um quadro contemporâneo, tela toda branca, com determinada faixa basicamente da mesma coloração. O trio de personagens discute o preço, absurdo para um deles, pago pelo adquirente. Determinadas questões mercadológicas são colocadas em causa pela autora, como aquela de que uma tela, pintada em um período por um artista plástico, perderia o seu valor intrínseco se realizada, obedecendo ao mesmo estilo, muitos anos após. Nuances de um mercado ávido pelo lucro e dependente do impulso de compradores que seguem os ritos dos modismos e da globalização.
Voltei para casa intrigado com o teor da pergunta e também com o enredo da peça. Já de regresso, recolocava livros em uma estante quando tomei às mãos um catálogo comemorativo do centenário de nascimento do pintor açoriano Domingos Rebelo. Tratava-se da exposição realizada no Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, capital da Ilha de São Miguel, umas das nove ilhas do arquipélago dos Açores. O Museu mantém um acervo extraordinário de peças e utensílios utilizados durante séculos pela brava gente açoriana e considerável quantidade das pinturas de Rebelo, algumas de grande dimensão. Visitei-o durante uma tournée para recitais e conferências em três das ilhas, no ano de 1992, e causou-me forte impacto a força viva daquelas telas.

Viático. Óleo s/tela (1919). A.2520 x L.3050 mm. Domingos Rebelo. Museu Carlos Machado.

Faz-se necessário tecer algumas considerações, advindas da premissa do post, a respeito da Arte como permanência. Sob um aspecto, as tendências das artes plásticas tiveram, desde o início do século XX, aceleração que se tornou multifacetada, a apresentar criações inimagináveis nos séculos anteriores, o que propiciou a tantos artistas inovadores a plena guarida de marchands, da mídia e do público observador, ou daqueles voltados, como conseqüência, às coleções. Sob égide outra, uma categoria de pintura que remonta à antiguidade mais remota permanece a contar a história do homem, seu cotidiano, sua relação com a divindade ou com a natureza. A depender de tipicidades, encontram-se entre esses artistas aqueles que retrataram o seu rincão, o gestual rotineiro onde se alternam manifestações que não passam desapercebidas ao olhar atento que finaliza a conexão no pincel sensível. Usos, costumes, a presença do povo podem ser apreendidos quando do pormenorizar etnográfico e social de pintores que se mantém fiéis à fixação do acontecido popular, voltando-se, quando talento e competência existem, à inteligibilidade da imagem, aos conteúdos imbuídos do sensível e das nuances emotivas.
Domingos Rebelo nasceu em 1891 em Ponta Delgada, capital da Ilha de São Miguel, a maior do arquipélago açoriano. Apesar de estudos em Paris, onde trabalhou com Jean Paul Laurens, Albert Laurens e Naudin, e dos contactos que manteve com os movimentos modernistas, Rebelo preocupar-se-ia com a pintura voltada ao povo, ao retrato de amigos, à caricatura. Mesmo o longo período passado em terras portuguesas continentais não desviou o seu arguto debruçar insular, que visava à captação das manifestações populares, das mais intimistas às coletivas. Essa característica de entendimento fê-lo um pintor universal, pois mais de cem anos após seu nascimento Domingos Rebelo está presente. Seu grande mérito foi o de ter, a partir da observação atenta, guardado a imagem, retida para sempre em suas telas, das circunstâncias do homem açoriano: sofrimento, tristeza, recolhimento, assim como o peristilo da morte, a festa natalina, a peregrinação atávica, o recanto do lar, a fé perene.

Ceia do Romeiro. Óleo s/tela (1925). A.950 x L.1150 mm. Domingos Rebelo. Casa Armando Côrtes-Rodrigues.

Se Domingos Rebelo não se constitui num artista modernista, tampouco num chefe de Escola, soube pormenorizar na excelência a atitude de seus conterrâneos coetâneos. Telas grandes, como Camponeses Micaelenses, Viático, Tenda do Mestre Amâncio, Cozinha da Arquinha, Romeiros, Emigrantes - em seus destinos plenos de incertezas em direção à América do Norte – e o tríptico Natal estariam a revelar a imanência contida nessas pinturas. Rebelo entenderia, conscientemente ou não, que o passar da história poderia perder para sempre cenas que o “progresso” realmente sepultou, como aquela da abertura deste post, que reproduz o quadro Emigrantes. Mesmo suas caricaturas de personagens insulares em situações divertidas, ou suas miniaturas em madeira, como a do Cortejo do Espírito Santo, traduzem o enraizado sentido do pintor fixado em sua terra com o olhar e o pensar atentos.
A universalidade de Domingos Rebelo deriva-se dessa particularização do modus vivendi do povo dos Açores. Pintor etnocêntrico a revelar, na abrangência, a própria raça como epicentro de suas aspirações. Sem o artista, perder-se-iam as imagens do açoriano em sua tradição especial. Curiosamente, a Ilha de São Miguel viu nascer em espaço tão curto dois outros notáveis homens das artes: o grande escultor Canto da Maya (1890-1981) e o poeta, etnógrafo e dramaturgo Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971). Este, na dedicatória de soneto ao amigo, escreve: “A Domingos Rebelo – o Pintor: a ti, que vives o sonho da tua Arte, inútil para a maioria dos homens, a sinceridade destes versos. Janeiro de 1931”.

This post is about the Azorean painter Domingos Rebelo (1891-1975), born in Ponta Delgada, the capital of São Miguel Island in the Atlantic Ocean. I was deeply impressed by the vitality of his paintings when I visited the Azores in 1992. Despite his studies in Paris and links with Modernism, Rebelo’s interest was in the depiction of scenes of his homeland: ordinary people engaged in common activities, domestic settings, folk culture, rituals of village life. By depicting life around him, his insular painting became universal, providing us with a window into the everyday life of bygone days.