Sobreviver, eis a Questão
Não tiveste na vida um dia escasso
de paz e de alegria ! Escurecida
te foi sempre a existência, desvalida,
e cortada de abismos, passo a passo.
Camilo Castelo Branco
Encontrei uma ex-aluna. Não a via há muitos anos. Estudos na Europa, regresso ao Brasil e hoje dá aulas particulares em Conservatório privado. Perguntada, não apresentou objetivos claros, pois não tem particularmente nenhum projeto musical de interesse. Mantem-se dando aulas, como poderia estar a trabalhar em qualquer outra atividade que a sustentasse, pois indagada sobre se amava a música, disse-me que conseguia ganhar o necessário para “ir levando a vida”, segundo suas palavras. Bonita, contudo ao sorrir transmite no presente disfarçada amargura.
Convidei-a para um rápido café e trocamos algumas frases. Interessava-me saber qual o seu real comprometimento com a música e qual a razão de continuar. Asseverou-me que era a única “coisa” que sabia fazer razoavelmente, ou seja, dar aulas. A uma outra pergunta, relacionada ao tipo de transmissão que passava aos alunos, ponderou que comunicava a eles o que aprendera e procurava, preferencialmente, não criar casos. Tinha sobre o piano um relógio e jamais ultrapassava um minuto sequer do tempo de aula, pois eram muitos os que a aguardavam. Insisti, a procurar saber se, ao menos, estudava um pouco, pois quando minha aluna na década de 80 na Universidade chegou a tocar com certa destreza, sem comprometimento, é certo, mas ao menos executava, nem digo interpretava, o que estava escrito. Rapidamente, disse-me que lia presentemente um movimento de Sonata de Beethoven e mais Noturno e Improviso de Chopin. Você não busca conhecer outras obras? Retrucou, sem entusiasmo, que precisaria ouvir CDs de outros autores, mas que não tem a mínima vontade de fazê-lo, preferindo assistir a filmes na TV a cabo ou ir a um shopping center com o namorado. As leituras se concentravam em revistas semanais. Quando muito, interessou-se por um dos tantos Harry Porter, mas desistiu, porque o livro era muito espesso. Despedimo-nos, pois a ex-aluna teria de tomar o ônibus, a fim de dar as aulas da sobrevivência. O sorriso de adeus refletia ainda mais o enigma do conformismo.
Creio como uma tragédia, existente em enorme quantidade de profissões, a continuação em tarefa que não é amada. Legiões de pessoas descontentes estão a trabalhar em atividades com as quais não têm a mínima ligação. Lembro-me que em 1962, quando em Moscou, disseram-me que apenas era permitido o estudo da música, da dança ou a prática do atletismo àqueles que realmente se mostrassem aptos para o desenvolvimento qualitativo. Cheguei a conhecer miúdos extraordinários, tanto a tocar, como na arte da dança. Logicamente, a União Soviética tinha um regime a privilegiar somente os melhores. Havia sub-repticiamente a necessidade da total exaltação do Regime através dos mais aptos. Propaganda que se tornou motivo de tantas suspeitas fundadas. Apesar de sucessos reais, quantos não foram aqueles que na U.R.S.S. desistiram pelo fato único da pressão intensa a causar diferente categoria de desânimo ou até de desespero. Outros Sistemas totalitários privilegiam igualmente determinadas atividades através de disciplina férrea. E insistem.
Se destacamos situações que podem ser o opposite do exemplo tipificado da ex-aluna, todavia nas atividades ligadas à Música, excluindo-se a dança, pode o “sobrevivente” camuflar durante toda a vida o não compromisso e a não atualização. Geralmente não há cobranças e o infortunado jovem, que inicia os estudos sob orientações desinteressadas, mornas e não competentes, corre o sério risco de trilhar caminhos duvidosos, desestimulantes e entristecedores. Sob aspecto outro, pereniza-se, numa situação como a da mencionada ex-discípula, o precário conhecimento transmitido ao aprendiz, o repertório absolutamente repetitivo, desinteressante, mal tocado e sem a menor possibilidade de ventilação voltada a obras outras. Aliás, neste país do “consagrado”, a simples constatação de intérpretes solo, estes na acepção da palavra, nacionais ou internacionais, está a evidenciar sempre a repetição de um repertório petrificado. Para isso, é só o leitor consultar as programações estampadas nos veículos de comunicação, onde até os próprios executantes são, quase sempre, igualmente repetitivos.
Ficaram-me os nomes dos extraordinários compositores ditos pela ex-aluna sem entusiasmo. Ela estaria a representar o infortúnio exemplar de destinos mal traçados pelas mais diferentes razões. Beethoven e Chopin significariam Débitos e Créditos para um bancário sem afeto pelo trabalho. A origem do vazio que se instala pode ter sido a mesma. Na música, em acréscimo, a expansão do desalento estaria a propiciar, a outras gerações mal formadas e sem a possibilidade do conhecimento, a perenização deturpada apenas de algumas consagradas obras de Beethoven, Chopin e também J.S.Bach, Mozart, Liszt, Schumann, Debussy… , sem o mínimo “tempero”. E em nível de excelência interpretativa, no outro pólo, o músico conhecido por suas notáveis performances técnico-instrumentais continuará o caminho da repetição sem fim, sem oxigenação repertorial, sem igualmente vislumbrar outros horizontes. O público, elo final, espalhará como um pólen amargo a rotina da escuta. E para os casos semelhantes aos da ex-aluna, encontráveis em Conservatórios particulares, ou públicos, e não raramente nas Universidades privadas, ou do governo, sobram as pétalas mirradas de pouquíssimas obras que chegam até a ser cantaroladas e, por extensão, divulgadas por falta de interesse em se conhecer outros caminhos sonoros. Quando essas músicas caem em mãos sem o cérebro amoroso, fenecem como as folhas de inverno. E as sombras chegam.
A reflection on the disillusionment that sets in with people that are frustrated with a work that is not aligned with their interests, but stick to it for sheer economic necessity. In music, this is a tragedy not only for the professional, who will approach music in a repetitive, unmotivated way, but also for the students who may eventually work under such passionless guidance. Unfortunately, it is not always that job and vocation are the same thing.
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