Raridade a Evidenciar Alegria Contagiante
Devemos fazer públicas nossas alegrias
e esconder nossas mágoas.
Provérbio Inglês
Fatos inusitados são difíceis de esquecer. Permanecem, a apontar lembranças agradáveis ou não. Quando enriquecidos por diálogos a sedimentar recordações, merecem exposição. Em toda a minha vida, apenas por duas vezes deparei-me com motorista de táxi ouvindo música erudita. A primeira vez deu-se em Coimbra, e o taxista que estava a ouvir a Antena 2, fixado numa das belas Sinfonias de Haydn, disse-me que na cidade somente ele e um outro colega ficavam na permanente escuta da música chamada erudita, clássica ou culta. Palavras elitistas, é certo, mas que delimitam territórios por todos conhecidos.
Estava na Rua Riachuelo, no centro de São Paulo, e peguei um táxi parado nesse trânsito absurdo, pois de volta à minha cidade bairro, Brooklin. O motorista, a aparentar seus quarenta e tais anos sintonizava o programa de início da tarde da Cultura FM, apresentado pelo bom músico e colega Gilberto Tinetti. A minha primeira pergunta foi a do porquê estar ele a ouvir música erudita. Tranqüilamente, respondeu-me que sempre assim o fazia e que o seu dial era imutável. Quis saber mais, indagando qual a origem dessa preferência. Contou-me que seu pai, nascido em Boqueirão dos Coxos, no sertão da Paraíba, tocava trombone na banda da cidade, no coreto e nas festividades, pois tratava-se da única atração da comunidade. Desfilou familiares que tocaram e tocam instrumentos de metal, sendo que ele mesmo conseguia tirar uns sons, com certa dificuldade, de um outro trombone. Enfim, o taxista, de nome Gerson, é um homem feliz e isso traduz-se na sua fala entusiasmada. Evangélico, tem uma visão muito bonita da função da música no ser humano. Teve graça outra história que contou relacionada à música. Seu irmão, ainda bem miúdo, tocava pratos em uma banda e certa vez, em uma viagem para Jaboticabal, viajou dentro da campânula de uma tuba, essa parte do instrumento bem aberta e em forma de sino. Hoje, desenvolve atividade de maestro.
Contou-me com orgulho a respeito de um amigo, que chegara a uma das Sinfônicas do Estado de São Paulo. Ao presenciar sua saudável alegria, relatei o que lera há tempos, não me recordo se em livro ou revista. Estatísticas evidenciavam que os músicos que tocam instrumentos de cordas em uma orquestra, muitas vezes após o ensaio deixam as partituras sobre as estantes, diferentemente de outros, que executam instrumentos de metal. Segundo o texto, tantos são os violinistas, violistas ou celistas de orquestra que sonharam um dia ser solistas. Apesar da meritória carreira de instrumentistas de orquestra, conscientemente ou não poderia haver uma frustração pela não realização de carreira solo ou cameristíca de relevo. Quanto àqueles que tocam instrumentos de metal, oriundos de bandas, muitas vezes do interior deste enorme país, chegar à uma orquestra sinfônica representaria a glória, daí a possível dedicação ao levarem as partituras para um estudo mais aprofundado em suas casas. Gerson achou muito pertinente essa estatística, ao completar que entre os seus havia um profundo prazer em fazer música, sob quaisquer situações.
Chegou um momento em que me perguntou se eu conhecia música. Apresentei-me e imediatamente, com um largo sorriso, apertou-me fortemente a mão ao encontrar um dos seus. Já ouvira na Cultura FM obras por mim tocadas. Falei-lhe do programa que apresento semanalmente na USP-FM e logo tomou nota do dial e do horário. Foi a partir dessa irmanação sonora que captei a paixão sincera que Gerson, o taxista privilegiado, tem pela música. Falou-me da importância dos sons em sua vida e dessa absoluta identificação com tudo que envolve o prazeroso assunto.
Depois de um trajeto em que a conversa foi muito estimulante, cheguei ao meu destino. Após o acerto da corrida, disse-lhe para aguardar um pouco. Entrei em casa e levei-lhe dois de meus CDs. Pediu autógrafos, colocou um deles na bandeja apropriada e já estava a ouvir, quando finalizou afirmando ter um cliente que só anda em seu táxi, pois adora ouvir música erudita e que, tenho a certeza, contagia-se pela felicidade que Gerson deixa transparecer. Asseverou-me que na primeira oportunidade tocará as gravações recebidas para o freguês habitual. Despedimo-nos, e lá saiu ele a ouvir um dos CDs em seu táxi impecável e com aura diferenciada.
Ainda fiquei certo tempo a pensar e a tecer comparações. Justamente no post anterior focalizei uma ex-aluna que não se encantara com a magia da música, apesar de estudos mais acurados. Sob outra égide, um músico amador feliz, certamente contente com a vida e com sua profissão de taxista, a exaltar a música de forma efusiva. Realmente, nada como um dia depois do outro.
A quite interesting conversation with a taxi driver who enjoys listening to classical music on the radio as he drives through the maze of streets of São Paulo city.
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