Respostas Competentes do Brasil e do Exterior
Se o desalento me assalta,
Se a doença me devora,
Dá-me uma estranha melhora,
Que me anima e me exalta,
Uma crença que salta,
Que canta, que ri e chora !
António Macedo Papança
(Conde de Monsaraz)
O tema abordado anteriormente (Vocação-Estrutura ou Desalento, 12/07/08, categoria: Cotidiano, Música) suscitou comentários profundos de muitos leitores. Fica sempre o meu agradecimento a todos os que invariavelmente me concedem imerecida atenção, acolhendo, estimulando, comentando e tantas vezes propondo temas para reflexões. A limitação de espaço a que me propus fez-me separar três mensagens enviadas por músicos do Brasil, de Portugal e de um ex-aluno hoje em Damasco, na Síria. Atuando em áreas distintas, têm contudo reflexões concordantes a respeito de vocação ou apenas de sobrevivência estéril, motivo pelo qual tomo a liberdade de estender aos leitores que me honram com a atenção semanal as sensíveis e argutas observações.
O maestro Roberto Duarte é um dos músicos que mais admiro. Competência como regente e pesquisador, escolha repertorial inteligente, pensamento íntegro e distância da vaidade fazem de Roberto Duarte o músico pleno. Teceu considerações pertinentes: “Triste relato. A vida pulsa e muitas pessoas não conseguem aproveitá-la. O talento de sua ex-aluna é, com certeza, para outra atividade. Perde esta outra atividade e nada ganha a música. Quando não se ama o que se faz a vida se torna uma eterna espera da felicidade que nunca aparece…, no entanto, ela está logo ali, ao alcance da mão. Mas para isso é preciso ter a mente ‘aberta’. Ainda não chegou o dia dela se descobrir. Este dia virá, nesta ou em outras vidas…”.
Idalete Giga, professora da Universidade de Évora, Diretora do Centro Ward de Lisboa e gregorianista, captou a essência do post sob o ângulo da mestra que tem a percepção da ausência de envolvimento. Com rara e sensível precisão foi ao fulcro da questão: “Começando pelo texto ‘Vocação-Estrutura ou Desalento’, que relata o reencontro ‘casual’ com uma ex-aluna, deve ter sido decepcionante para o José Eduardo constatar o conformismo, a superficialidade, a falta de sonhos, a rotina que destrói a imaginação e a fantasia, a falta de Amor pela Música (gostei muito da sua expressão ‘cérebro amoroso’), enfim, o desalento, o vazio artístico e espiritual dessa jovem à deriva. Que chama, que entusiasmo, que estímulo, que ternura pela Arte transmitirá ela aos seus alunos? O que é ainda mais preocupante, hoje em dia, é que o caso da sua ex-aluna não é único. Há milhares e milhares de jovens completamente desajustados dos cursos que ‘escolheram’ (será que escolheram ou foram empurrados para eles por uma questão de sobrevivência atroz?), ficando imersos numa espécie de marasmo, de letargia, estupidificados pelo falso canto da sereia desta exacerbada sociedade de consumo. Mas o seu ‘casual’ reencontro não foi, certamente, um acaso. Estava escrito nas estrelas… A sua ex-aluna recebeu de si um novo impulso que foi necessário e benéfico. O Mestre aparece sempre quando precisamos dele…”. No texto em questão evitei a palavra decepção, mas ela estava implícita, pois a não realização plena de um aluno, no sentido abrangente, frustra o professor. Sob égide outra, quando a visão unilateral, “aparência” da realidade, mas eqüívoco essencial, é “imposta” pelo professor que está a procura de seu brilho a partir do discípulo, pode haver intenções tantas vezes, hélas, conscientes por parte daquele que tem a missão de ensinar. Todo o mal estaria a ser forjado por falta também de transmissão de cultura humanística, do mestre ao aluno.
Flávio Metne foi, há muitos anos, meu aluno de piano na Universidade de São Paulo. Dos raríssimos, frise-se raríssimos, em que temas os mais variados eram tratados de maneira salutar. Curioso, buscava naturalmente repertório de grande interesse, mas não freqüentado, e sempre escolhia bem. Tocava de maneira inspirada, mas estava à procura de algo mais que pudesse motivar sua relação com a Música e com a vida. Simultaneamente estudou flautas comuns do Médio Oriente, e ouvi-lo em suas pesquisas era enriquecedor para o professor. Graduou-se em piano com méritos e fixou-se na Síria, onde desenvolve a atividade de mestre e pianista no High Institute of Music de Damasco. Realiza-se como músico e como homem e, na faixa dos quarenta anos, continua a se questionar, qualidade essencial para qualquer crescimento. Sinto orgulho de ter sido seu professor. Leu em Damasco o post em questão e colocou considerações introspectivas, a revelarem a sua própria indagação, dele, um músico vocacionado. Citarei algumas reflexões de Flávio Metne: “Traduzi para um pianista colega meu, que também gostou muito. Acho bem que a profissão deve ser fonte de Vida e não de sobrevida… Foi por isso que parei com alunos estéreis. Chegava em casa esgotado e irritado. Aulas da sobrevivência. É mais fácil, mas que triste final… O colega para quem traduzi o texto oralmente vive o mesmo dilema, acha esgotante dar aula para aluno ruim. Ele, excelente pianista, cujo programa de conclusão de curso contava com o concerto de Scriabine, lê muito e procura sempre conhecer tudo bem a fundo. ‘Criatividade para resolver os próprios problemas’, adorei esta frase contida num dos e-mails que você me enviou e passei a usá-la. Mas, refletindo sobre o problema da ex-aluna: seu conformismo é algo como morrer em cima do problema… e fico pensando no que faz as pessoas serem assim… Medo? Medo da liberdade de inventar e não dar certo? Tem gente que prefere morrer a sair do lugar. Tem gente que passa a vida sustentando máscaras. Tem gente que não faz nada e não deixa que os outros façam. Quanto a dar aula do jeito que aprendeu, acho isso ruim, todos aprendemos uma escola ou uma técnica. Às vezes eu me perco, confesso que isso acontece…, mas dura pouco. A escola ‘russa’ não serve para todo mundo, tampouco a escola ‘francesa’. Acho difícil acreditar também que a ex-aluna adquiriu alguma ‘escola’ na Europa. Não saberia ela que as ‘escolas’ são conjuntos de soluções que surgiram da CRIATIVIDADE dos mestres do passado? Ficou tudo mais interessante quando passei a ver as coisas com outro enfoque: o que eles (intérpretes) criaram de novo para si, como resolveram as suas vidas. Hoje, quando leio como Czerny dava aulas, por exemplo, não é para imitar metodologia, mas sim para saber COMO ele resolvia as coisas. As soluções diferem muito.”
Esses três olhares diferenciados, mas convergentes, levam-me a acreditar nessa chama vocacional que tem de ser acompanhada de disciplina férrea, a fim que desideratos sejam atingidos. Se, por motivos os mais variados, o músico não atinge a realização que leva à valorização da auto estima, é possível detectar, mesmo entre aqueles que não alcançaram objetivos, a musicalidade inerente. Quantos não são os músicos possuidores de qualidades latentes que sobrevivem tocando nas ruas ou praças? Aquele tocador de gadulka que me encantou em Sófia, num inverno rigoroso, com sons expressivos, nostálgicos e pungentes tirados de seu instrumento; ou dois outros da mesma cidade, em verão escaldante, a exibirem, na exuberância, ritmos dos Bálcãs, atestam que a adversidade não conseguiu eliminar a interpretação contagiante. Contudo, para todos os que atingem propostas precisas, nada teria sido obtido se a relação não tivesse intensidade. A identificação é a salvaguarda única. Cérebro amoroso é a subjetividade plena que leva o homem a entender e a tornar sua existência um marco solidário. Em quaisquer circunstâncias.
My post on job and vocation (12 July 2008) got a lot of feedback. Among the many competent messages I received, I selected for my readers three – for space reasons – from three musicians living in different cities: Rio de Janeiro, Lisbon and Damascus. Though very much apart in space, their views and mine converged.