O Retorno Necessário

Pormenor da Praça José Bonifácio. Foto Maria Fernanda. 2007. Clique para ampliar.

Car le bonheur se sent en soi
ainsi qu’un fruit qui est plein de sa saveur.

Antoine de Saint-Exupéry

Novamente na cidade, a fim de dupla tarefa: completar a edição do CD Gabriel Fauré (1845-1924), gravado este ano na mística e mágica capela de Sint-Hilarius, em Mullem, na Bélgica, e realizar a última revisão do livro Crônicas de um Observador, a reunir 72 posts publicados no blog, de Março de 2007 até Maio deste ano.
Escrevi anteriormente que, para concentração plena, Bragança é o meu paraíso de sempre (vide Bragança Paulista, 23/07/07, categoria Cotidiano), mormente após o último texto ter abordado o assalto a mão armada que sofri em São Paulo. É inacreditável que, a uma centena de quilômetros da maior cidade do país, ainda possamos sentar em um banco de praça pública sem grades, friso, e tranqüilamente realizar a revisão de um livro inteiro, durante quatro dias, sem ser molestado. Há quase quatro lustros leio e escrevo na praça em frente ao Grande Hotel Bragança, onde me hospedo, sempre numa rotina prazerosa, pois sei que as idéias fluem e não serei importunado. Seriam impossíveis tais tarefas em praças de São Paulo, pela freqüência estranha, a sujeira e a virulência abusiva.
Após tantos anos visitando a cidade, desta vez conheci mais bragantinos do que durante todo o passado. Conversas com comerciantes que circundam a praça, com cidadãos que me foram apresentados, todos fatos a ratificarem a preferência. Queria entender ainda melhor o porquê da escolha de Bragança. Durante esse longo período praticamente nada mudou. A cidade continua hospitaleira. Idosos ocupam os bancos das praças, conversam e riem animadamente, deixando transparecer essa naturalidade possível apenas se a violência inexistir no dia a dia. Miúdos brincando, estudantes e tantos outros transeuntes cruzando as praças José Bonifácio-Raul Leme dimensionam o pulsar do logradouro público, em freqüências diferenciadas das manhãs até pouco após o por do sol.
Creio que a dupla tarefa proposta fez-me intercalar os períodos de relaxamento, daí naturalmente entrar nas conversas do bom povo da cidade. Os muitos cafés tomados durante o dia em vários locais circundando o espaço de congraçamento propiciaram a descontração que leva ao diálogo. Tudo a acontecer em torno das praças contíguas. Hugo e família da excelente Hughes Men’s Wear, Graça da Livraria da Praça, Adriano e Valdilene da Relojoaria São Luiz, Marcelo, Reginaldo e Roberto, que conheci no bom restaurante Show Cook do Leonardo, todos com uma qualidade de vida absolutamente desconhecida para nós paulistanos. Temas sobre Bragança, cultura, educação, música, cotidiano eram focalizados com naturalidade. Curioso é verificar um outro sentido do tempo, bem mais humano, entre esses bons cidadãos. Regressei à Cantina Bella Italia de meu velho amigo Lino – Paschoal Iuliani é seu nome -, ótimo chefe da cozinha italiana. Prepara com afeto as massas que aprendeu com seu pai na Itália. Empreendedor, preside o Conselho Municipal de Turismo e a Associação Sabores de Bragança, cujo lema – Bragança Paulista, Capital Nacional da Lingüiça – é bem alusivo. Tem ele toda razão. Continuo a visitar o Casarão com seu forno à lenha e refeição caseira.
Durante a semana, as voltas pelo belo lago à entrada da cidade foram feitas com alegria. Mais bem cuidado do que anteriormente, tem hoje às suas margens marcos a assinalarem distância. Por duas vezes corri os cinco quilômetros. O prazer invade a nossa mente devido às endorfinas, dizem os entendidos. Se bem que, para o septuagenário, é mais um trotar, mas tudo é válido quando nos sentimos bem e mais preparados para os trabalhos mentais propostos.
Mercê do fato de ter completado num fim da tarde a edição do CD e a revisão do livro, tarefas que me levaram à concentração de cerca de 12 horas diárias, houve possibilidade maior de contato com cidadãos de Bragança. Foram dias de salutar retiro.

CDs para edição. Mullem, Bélgica. Foto Tim Heirman.

Encaminharei ao competente engenheiro de som Johan Kennivé em Gent, na Bélgica, o resultado das minhas escolhas sonoras. Teve ele o carinho de fixar nos CDs, resultado das três noites de gravações, fotos tiradas durante as sessões em Sint-Hilarius. Aquelas pedras milenares, irregulares e solidárias podem ser vistas e ajudaram-me a externar o meu de profundis, favorecendo a expansão das ressonâncias da inefável música para piano de Gabriel Fauré. Sob égide outra, a revisão do livro em plena praça será entregue ao editor idealista Cláudio Giordano. Durante essa revisitação aos textos contidos no blog, refleti muito sobre a existência humana. Sim, teria razão meu mestrando José Francisco Bannwart, hoje a preparar o doutoramento junto à Sorbonne, em Paris. Lê na capital francesa todos os meus posts e, homem de fé intensa – é padre católico por vocação absoluta -, em e-mail recente observou que os textos publicados no blog representam meu testamento. É bem possível que isso esteja a ocorrer. Não seria a terceira idade o período das reflexões resultantes de tantos acúmulos? Envelhecer não é compreender que o afunilamento do tempo leva-nos à maior intensidade? Bragança não estaria nessa compreensão do espírito voltado à síntese, espécie de decantação de escolhas voluntárias?
Bragança Paulista, cidade que me estimula nesse concentrar necessário e sem pressão. Bonita é a existência dessa boa gente que freqüenta suas praças, seu comércio, seus cafés e restaurantes. Não mais sou um anônimo, mas um quase anônimo. Esse posicionamento reforça certezas, e a tranqüila urbe pode ser vista na sua autenticidade ainda mais humana. Olhar e ouvidos a apreenderem a realidade, pois ainda existe a respiração natural na aprazível Bragança Paulista.

On another visit to my safe haven, the city of Bragança Paulista, in search of peace of mind to concentrate on the edition of my new CD with works for piano by Gabriel Fauré, and also for the final revision of a book with a collection of my posts written from March 2007 to May 2008.