Uma Festa para os Sentidos
Mais vale o cheiro
do que o gosto.
Adágio Popular Açoriano
Em posts anteriores, reiteradas vezes escrevi sobre um afeto especial que mantenho pela feira-livre, esteja em que ponto geográfico estiver. O apego vem da infância, quando, eleito acompanhante de minha mãe, era o encarregado de fazer deslizar um pesado carro de madeira com quatro rodas de borracha. Era o que existia no período. Observava a relação prazerosa que minha mãe estabelecia com os feirantes, brincando, sorrindo, pechinchando preços. Uma festa que o tempo só fez sedimentar.
Quando tradições são assimiladas e rememoradas com alegria, certamente elas permanecem. Jamais deixei de freqüentar feiras e mercados ao ar livre, no Brasil e no Exterior. Ficaram gravadas no meu de profundis as várias visitas ao Ver o Peso em Belém do Pará, ao Mercado Modelo de Salvador, a tantas outras feiras do interior, onde cores vivas, cheiros os mais diversos, artesanatos curiosos, tudo enriquece o olhar e os outros sentidos. De Sófia vem-me a visão daquela barraca de tomates, famosos pela excelência. Rico em licopeno, os tomates dos Bálcãs são considerados os melhores do mundo e servidos com queijo branco no café da manhã. De Bucarest, a mistura de tantos produtos comestíveis e peças de artesanato. Em Gent, as feiras exclusivas em dias certos para produtos certos. Há de tudo. De Paris, as barracas de queijos, de hortaliças e de frutos do mar. Todas essas, faça frio ou calor, estão sempre vivas e os pregões dos vendedores tornam-se uma algazarra salutar para os ouvidos.
Na minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, é sempre motivo de real prazer preparar o carrinho e uma sacola resistente, a fim de percorrer os caminhos estreitos entre as diversas bancas dos feirantes. Constatações que corroboram a lembrança vêm dos sentidos: cheiros diversos das frutas, hortaliças e legumes, peixes, frituras dos pastéis, queijos; pregões em voz alta dos feirantes em concorrência salutar; as mais variadas cores de tudo o que é exposto e espalhado pelas inúmeras barracas. Quando chove, aquele sufoco, pois os toldos servem de abrigo temporário, mas quando plenos de água um pequeno solavanco nas estacas que os sustentam e toda aquela água inunda o infortunado de plantão. É bom prevenir-se em dias de aguaceiro. Contudo, sempre há solidariedade. Num outro aspecto, meninos pedindo esmolas, querendo puxar carrinhos ou levar sacolas, mendigos idosos ou aqueles ainda menos favorecidos, expondo suas chagas a fim de alguns trocados, são freqüentadores atávicos. Tudo faz parte das feiras livres que, desde a antiguidade mais remota, em todo o mundo, obedecem a critérios bem semelhantes, embora em diferentes geografias.
Prazer maior quando o relacionamento com os feirantes afigura-se nominal. Conhecê-los pelos nomes é sempre acatado com felicidade por essa brava gente. Dessa maneira, a escolha das mercadorias é melhor assistida, pois naturalmente um elo liga o freguês ao atendente. Não raras vezes, conhecedor dos produtos a serem consumidos pelo comprador habitual, o feirante já tem separado algo especial, ainda não manuseado por outros interessados. É certamente uma deferência.
Na feira livre do Campo Belo, aos sábados, a rotina apenas dimensiona o prazer. Em determinadas barracas há até uma ligação que chega à expectativa animada. Naquela de tomates, como exemplo, as irmãs nisseis Dirce e Sônia, sempre atenciosas, aguardam que eu acerte o quilo do tomate. Coloco-os num saquinho e pessoalmente peso. Raramente erro. Isso faz com que acrescentem um ou mais tomates à embalagem, sistematicamente com a mesma frase: “a sua mão continua certinha”. Curiosidades que ratificam o porquê dessa freqüência a esse mercado a céu aberto. Alessandra, simpática e sorridente, tem bordado no avental o símbolo do São Paulo, seu time de coração. Nem ouso falar de minha desacreditada lusa. Já tem separado o meu kit-banana com as frutas a serem consumidas, da maduríssima à verde, durante os dias da semana. Irene, zelosa pela atividade e pela quantidade grande de hortaliças e legumes, oferece ótimas escolhas. Miguel, que trabalhava com sua mulher, falecida há muitos anos, e hoje com filhas e netos e mais o inseparável funcionário Sílvio, oferece frutas as mais diversas e sempre acrescenta aquelas do “chorinho”. Um brinde, na realidade.
O acúmulo das décadas nos torna observadores desse cotidiano que insiste, apesar das transformações do mundo, em ser cotidiano. É o caso das feiras ao ar livre. Mais e mais conhecemos o ser humano em seus níveis ditos sociais, mais é possível entender onde reside a felicidade. Na medida que, mercê desse acúmulo, conhecemos feiras, lojas, shoppings, verifica-se que, quanto mais sofisticado o estabelecimento, mais distante é aquele que vende, dir-se-ia em outro “patamar”. Se nessa escala chegarmos ao extremo oposto, ou seja, da feira-livre à loja de roupas de grife, percebemos que está a apresentar o produto de preço alto, quase sempre, aquele que mede com o olhar o eventual comprador. Apresentação sem envolvimento, economia de gestos e de sorrisos, ar blasé a demonstrar “aparente” indiferença, atitudes que simplesmente atestam o local onde se está.
A feira-livre é plena de sacrifícios mil, que se estendem da compra dos produtos pelo feirante nos grandes entrepostos à chegada aos diferentes locais durante a semana em plena madrugada, com saída, depois de dura labuta, nunca antes das 14 horas. Adicionemos a tais dificuldades as intempéries, representadas pelos extremos de temperatura, chuvas que podem ser torrenciais, todo um arsenal a apontar para aquele que poderia ser o pior dos temperamentos, o do feirante, devido ao excesso de agruras. Paradoxalmente, assiste-se ao contrário. Décadas de freqüência levaram-me a ver a sua face voltada à alegria, à solidariedade entre os pares, à ajuda no troco e à doação mútua de mercadorias. Entendem-se e, nessa exteriorização, contagiam aqueles que têm prazer também em entendê-los. Formam, na diversidade, um bloco monolítico de reações palpáveis.
Tantos foram os políticos, influenciados por poderosos, que buscaram e buscam acabar com a feira livre. Sem a exuberância qualitativa de outrora, ela permanece, a representar um dos aspectos mais bonitos da civilização nesse quesito extraordinariamente fundamental que é a espontaneidade do povo.
Street Markets:
Since childhood I have been fond of street markets crowded with stalls of fruits, vegetables, fish, cheese, flowers, clothing and buyers browsing the merchandise. This kind of market is very old and still survives around the world. I used to go with my mother when I was a boy and today I go to the one held in my neighborhood on Saturdays. When I am traveling, I never fail to visit them wherever I am. Though very much alike, each has a distinctive flavor. Haggling with the sellers – so unpretentious and accessible – is part of the fun. It is a pity that the overflowing exuberance of street markets is being gradually displaced in large cities, because they represent an important aspect of every society: that of people in their unconstrained spontaneity.