Navegando Posts publicados em agosto, 2008

Uma Festa para os Sentidos

Feira Livre em Sófia, Bulgária. Foto J.E.M. 1997. Clique para ampliar.

Mais vale o cheiro
do que o gosto.

Adágio Popular Açoriano

Em posts anteriores, reiteradas vezes escrevi sobre um afeto especial que mantenho pela feira-livre, esteja em que ponto geográfico estiver. O apego vem da infância, quando, eleito acompanhante de minha mãe, era o encarregado de fazer deslizar um pesado carro de madeira com quatro rodas de borracha. Era o que existia no período. Observava a relação prazerosa que minha mãe estabelecia com os feirantes, brincando, sorrindo, pechinchando preços. Uma festa que o tempo só fez sedimentar.
Quando tradições são assimiladas e rememoradas com alegria, certamente elas permanecem. Jamais deixei de freqüentar feiras e mercados ao ar livre, no Brasil e no Exterior. Ficaram gravadas no meu de profundis as várias visitas ao Ver o Peso em Belém do Pará, ao Mercado Modelo de Salvador, a tantas outras feiras do interior, onde cores vivas, cheiros os mais diversos, artesanatos curiosos, tudo enriquece o olhar e os outros sentidos. De Sófia vem-me a visão daquela barraca de tomates, famosos pela excelência. Rico em licopeno, os tomates dos Bálcãs são considerados os melhores do mundo e servidos com queijo branco no café da manhã. De Bucarest, a mistura de tantos produtos comestíveis e peças de artesanato. Em Gent, as feiras exclusivas em dias certos para produtos certos. Há de tudo. De Paris, as barracas de queijos, de hortaliças e de frutos do mar. Todas essas, faça frio ou calor, estão sempre vivas e os pregões dos vendedores tornam-se uma algazarra salutar para os ouvidos.

Feira Livre em Paris. Foto Antoine Robert. 2003. Clique para ampliar.

Na minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, é sempre motivo de real prazer preparar o carrinho e uma sacola resistente, a fim de percorrer os caminhos estreitos entre as diversas bancas dos feirantes. Constatações que corroboram a lembrança vêm dos sentidos: cheiros diversos das frutas, hortaliças e legumes, peixes, frituras dos pastéis, queijos; pregões em voz alta dos feirantes em concorrência salutar; as mais variadas cores de tudo o que é exposto e espalhado pelas inúmeras barracas. Quando chove, aquele sufoco, pois os toldos servem de abrigo temporário, mas quando plenos de água um pequeno solavanco nas estacas que os sustentam e toda aquela água inunda o infortunado de plantão. É bom prevenir-se em dias de aguaceiro. Contudo, sempre há solidariedade. Num outro aspecto, meninos pedindo esmolas, querendo puxar carrinhos ou levar sacolas, mendigos idosos ou aqueles ainda menos favorecidos, expondo suas chagas a fim de alguns trocados, são freqüentadores atávicos. Tudo faz parte das feiras livres que, desde a antiguidade mais remota, em todo o mundo, obedecem a critérios bem semelhantes, embora em diferentes geografias.
Prazer maior quando o relacionamento com os feirantes afigura-se nominal. Conhecê-los pelos nomes é sempre acatado com felicidade por essa brava gente. Dessa maneira, a escolha das mercadorias é melhor assistida, pois naturalmente um elo liga o freguês ao atendente. Não raras vezes, conhecedor dos produtos a serem consumidos pelo comprador habitual, o feirante já tem separado algo especial, ainda não manuseado por outros interessados. É certamente uma deferência.

Feira Livre do Campo Belo. Foto J.E.M. 2008.

Na feira livre do Campo Belo, aos sábados, a rotina apenas dimensiona o prazer. Em determinadas barracas há até uma ligação que chega à expectativa animada. Naquela de tomates, como exemplo, as irmãs nisseis Dirce e Sônia, sempre atenciosas, aguardam que eu acerte o quilo do tomate. Coloco-os num saquinho e pessoalmente peso. Raramente erro. Isso faz com que acrescentem um ou mais tomates à embalagem, sistematicamente com a mesma frase: “a sua mão continua certinha”. Curiosidades que ratificam o porquê dessa freqüência a esse mercado a céu aberto. Alessandra, simpática e sorridente, tem bordado no avental o símbolo do São Paulo, seu time de coração. Nem ouso falar de minha desacreditada lusa. Já tem separado o meu kit-banana com as frutas a serem consumidas, da maduríssima à verde, durante os dias da semana. Irene, zelosa pela atividade e pela quantidade grande de hortaliças e legumes, oferece ótimas escolhas. Miguel, que trabalhava com sua mulher, falecida há muitos anos, e hoje com filhas e netos e mais o inseparável funcionário Sílvio, oferece frutas as mais diversas e sempre acrescenta aquelas do “chorinho”. Um brinde, na realidade.

Feira Livre do Campo Belo. Foto J.E.M. 2008.

O acúmulo das décadas nos torna observadores desse cotidiano que insiste, apesar das transformações do mundo, em ser cotidiano. É o caso das feiras ao ar livre. Mais e mais conhecemos o ser humano em seus níveis ditos sociais, mais é possível entender onde reside a felicidade. Na medida que, mercê desse acúmulo, conhecemos feiras, lojas, shoppings, verifica-se que, quanto mais sofisticado o estabelecimento, mais distante é aquele que vende, dir-se-ia em outro “patamar”. Se nessa escala chegarmos ao extremo oposto, ou seja, da feira-livre à loja de roupas de grife, percebemos que está a apresentar o produto de preço alto, quase sempre, aquele que mede com o olhar o eventual comprador. Apresentação sem envolvimento, economia de gestos e de sorrisos, ar blasé a demonstrar “aparente” indiferença, atitudes que simplesmente atestam o local onde se está.
A feira-livre é plena de sacrifícios mil, que se estendem da compra dos produtos pelo feirante nos grandes entrepostos à chegada aos diferentes locais durante a semana em plena madrugada, com saída, depois de dura labuta, nunca antes das 14 horas. Adicionemos a tais dificuldades as intempéries, representadas pelos extremos de temperatura, chuvas que podem ser torrenciais, todo um arsenal a apontar para aquele que poderia ser o pior dos temperamentos, o do feirante, devido ao excesso de agruras. Paradoxalmente, assiste-se ao contrário. Décadas de freqüência levaram-me a ver a sua face voltada à alegria, à solidariedade entre os pares, à ajuda no troco e à doação mútua de mercadorias. Entendem-se e, nessa exteriorização, contagiam aqueles que têm prazer também em entendê-los. Formam, na diversidade, um bloco monolítico de reações palpáveis.
Tantos foram os políticos, influenciados por poderosos, que buscaram e buscam acabar com a feira livre. Sem a exuberância qualitativa de outrora, ela permanece, a representar um dos aspectos mais bonitos da civilização nesse quesito extraordinariamente fundamental que é a espontaneidade do povo.

Street Markets:
Since childhood I have been fond of street markets crowded with stalls of fruits, vegetables, fish, cheese, flowers, clothing and buyers browsing the merchandise. This kind of market is very old and still survives around the world. I used to go with my mother when I was a boy and today I go to the one held in my neighborhood on Saturdays. When I am traveling, I never fail to visit them wherever I am. Though very much alike, each has a distinctive flavor. Haggling with the sellers – so unpretentious and accessible – is part of the fun. It is a pity that the overflowing exuberance of street markets is being gradually displaced in large cities, because they represent an important aspect of every society: that of people in their unconstrained spontaneity.

Jacques Durand (1865-1928)

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Quand l’esprit ne se tourne plus naturellement vers l’avenir,
on est devenu un vieux.

Gustave Flaubert

A leitura de memórias pode apresentar problemas de confiabilidade. Se o autor tergiversa, não é difícil, em determinados segmentos, entender desvios comprometedores. Se, sob outro ângulo, o memorialista espera décadas para iniciar suas lembranças, alterações podem encaminhar o texto para fantasias, até perigosas, a não resistir às comprovações que um dia vêm à superfície. Tantas não foram as memórias escritas que perderam validade na confrontação direta com a veracidade. O equilíbrio estaria reservado àqueles que rememoram, mas acolhem os novos dias.
Há tempos procurava Quelques Souvenirs d’un Éditeur de Musique de Jacques Durand. As memórias publicadas em dois volumes, nos anos de 1924 e 1925, foram editadas em Paris pela A. Durand et Fils. Adquiri a obra em um alfarrabista em São Paulo.
Jacques Durand e seu pai, Auguste Durand (1830-1909), foram ilustres empresários e tiveram sólida formação musical. O conhecimento pleno da área amalgamou-se à vocação de editores e ambos pontificaram durante décadas no cenário das publicações musicais em França. Antes do fim do século XIX, Jacques Durand já se integrara às edições e em 1921 passou à direção da Durand & Cie juntamente com Gaston Choisnel e Roger Dommage.
A casa Durand tornar-se-ia referencial, pois seria a editora de autores como Edouard Lalo (1823-1892), Jules Massenet (1842-1912), Camille Saint-Saëns (1835-1921), Claude Debussy (1862-1918), Maurice Ravel (1875-1937), Paul Dukas (1865-1935) e tantos outros. Deve-se a ela as edições francesas de óperas de Richard Wagner, assim como a edição crítica da obra completa de Jean-Philippe Rameau que teve como diretor preliminar Saint-Saëns. Igualmente à Casa Durand creditam-se três revisões da maior importância para o piano do século XIX: Chopin por Debussy, Mendelssohn por Ravel e Schumann por Gabriel Fauré (1845-1924). Mais tarde, Francis Poulenc (1899-1963), Olivier Messiaen (1908-1992), André Jolivet (1905-1974) et Darius Milhaud (1892-1974) tiveram suas obras editadas pela prestigiosa Durand & Fils.
O interesse maior por Quelques souvenirs… veio da leitura, há muitas décadas, de Lettres de Claude Debussy à Son Éditeur, publicadas em 1927 pela mesma organização. São íntimas essas missivas de Debussy, que se estendem de 1894 a Novembro de 1917, poucos meses antes da morte do compositor, abordando a criação, o cotidiano, o acompanhamento das revisões, as crises afetivas, o engajamento ideológico, demonstração inequívoca da qualidade do destinatário. Durand participou de muitas apresentações pianísticas, compondo igualmente, tendo sido responsável pela transcrição para piano solo – com o consentimento de Debussy – das célebres Danses Sacrées et Profanes, escritas originalmente para harpa cromática com acompanhamento de orquestra de cordas, fato a testemunhar a competência do memorialista.
Encontra-se nas memórias de Durand uma panorâmica do ambiente sócio-musical do período. O autor perpassa toda a sua vida envolvida com a música e com as edições musicais. Quelques Souvenirs… indica precisamente que a ligação amorosa de Durand com a profissão escolhida resultou não apenas da feitura de publicações esmeradas, como da escolha dos compositores que permaneceriam na história. Se nomes desapareceram no pó das produções menores, contudo personalidades musicais representativas francesas e européias figuraram no amplo catálogo de Durand & Fils.
Os dois volumes encerram preciosidades. Jacques Durand, na introdução já clareia as intenções: “esforçei-me somente em consignar os fatos da melhor maneira que consegui”. Longe de serem memórias supérfluas, comuns no período dos salões freqüentados por artistas, intelectuais, políticos e empresários afamados, as evocações do autor se estendem da infância a alguns anos antes da morte, com acuidade e forte presença do observador atento.
Tem orgulho de uma linhagem que remonta aos tempos de Henrique IV e indica, através da história, ascendentes relevantes. Lembra-se da infância, quando ouvia seu pai organista. Jacques teria aprendido a solfejar antes mesmo de ler o alfabeto. Parte desse período passou em Gent, pois sua mãe era belga. Em Paris, recordar-se-ia do apoio de seu pai editor aos jovens compositores franceses logo após a guerra de 1870. Realizaria sérios estudos no Conservatório de Paris, a aprofundar-se naqueles de piano e de composição. Nas memórias, refere-se às recepções no salon de seus pais, freqüentado por compositores eminentes: Georges Bizet (1838-1875), Edouard Lalo, Saint Saëns, Massenet, Charles Gounod (1818-1893), pormenorizando fatos que ficaram gravados. Jovem, mercê do prestígio de seu pai músico e editor, conheceu pianistas como Anton Rubinsntein (1829-1894) e Hans von Bülow (1830-1894), violinistas como Pablo de Sarasate (1844-1908) e Eugène Ysaÿe (1858-1931), tecendo sempre comentários competentes sobre as extraordinárias interpretações desses ilustres músicos.
São interessantes os relatos de Jacques Durand sobre as récitas nas salas de concerto ou, mais informais, nos salões onde se fazia música. O do grande pianista e professor Louis Diémer (1843-1919) é mencionado com ênfase, pois o mestre quase nunca deixava o banco do piano, acompanhando à perfeição cantores e violinistas ilustres. Preferenciava, quando solista, o repertório escrito originariamente para cravo. Personalidades parisienses importantes da vida cultural, política e social freqüentavam o salon de Diémer.
A recepção das óperas de Richard Wagner é acompanhada com acuidade por Durand. Particulariza os embates comerciais devido aos direitos autorais das composições do músico alemão. Pormenoriza a edição de obras de tantos autores e, através de suas memórias, entende-se o processo de escolha e a negociação dessas edições. A competência musical de Jacques Durand teria sido a responsável pela permanência de muitos compositores de relevo que tiveram suas criações divulgadas.
Abrigou autores das mais diferentes tendências, e sua memória capta com clareza determinados flashes, como a entrada de Maurice Ravel na Casa Durand levando a célebre Sonatina para piano. O encorajamento àqueles merecedores de publicações e os Concerts Durand, por ele criado a fim da promover obras de compositores ilustres ou jovens, dão às Memórias de Jacques Durand o sentido pleno do humanismo e do respeito aos músicos.
Camille Saint-Saëns merece um destaque especial. O pequeno Jacques conheceu-o como freqüentador da casa de seus pais, quando o compositor já era um músico respeitado. Durante toda a vida, Durand teria uma quase “veneração” pela extrema versatilidade de Saint-Saëns como pianista, compositor e músico possuidor de uma memória absolutamente extraordinária, pois, como narra o editor, sabia as óperas conhecidas inteiras de memória, partituras e libretos. A excepcionalidade de Saint-Saëns em tantas áreas, musicais ou não, será objeto de posts futuros, pois trata-se igualmente do primeiro pianista a apresentar-se em vários continentes: Europa, Ásia, África e América.

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Claude Debussy ocupa parte considerável em Quelques Souvenirs… Durand conhece-o em 1884 na classe de composição de Ernest Guiraud (1837-1892) e ratifica a posição de outros biógrafos a respeito da extrema amizade do mestre para com o aluno preferido: “muitas vezes, à noite, eles se encontravam em um pequeno café da rua de La Bruyère; jogavam bilhar e era necessário o fechamento do café para arrancá-los de lá. Depois, uma vez fora, as conversações estéticas continuavam sob a fumaça de seus cigarros, enquanto reconduziam-se mutuamente e de maneira sucessiva a suas moradas respectivas”. Acompanha com felicidade a obtenção do Prix de Rome em 1884, premiação maior do Conservatório de Paris, obtida pelo amigo com a cantata L’Enfant Prodigue, que seria editada pela casa Durand. Relata, à medida em que as memórias fluem, as primeiras apresentações das principais obras de Debussy, verdadeiro testemunho receptivo dessas composições. Aliás, tal procedimento dar-se-ia em relação às produções dos principais autores franceses e do Exterior, em apreciações breves, mas competentes, de Jacques Durand.
Dois outros aspectos concernentes a Debussy mereceriam menções. Comenta os 12 Études para piano, de 1915, e a Sonata para violino e piano, de 1917. Após uma apresentação na Casa Durand, Debussy mostrou-se insatisfeito com o final desta obra. Levou-o de volta e oito dias após entregou uma nova versão, o que motivou Durand a comentar: “Vê-se o quão difícil Debussy se mostrava frente à suas composições, exemplo a ser citado para aqueles, muitos numerosos, que se contentam bem facilmente”. Jacques Durand visitaria Debussy no peristilo de sua morte. Em estado terminal devido a um câncer prolongado e ouvindo o bombardeio a que Paris estava sujeita naquele dia, “disse- me que tudo acabara, e bem sabia que era questão de horas, curtas na verdade. Hélas! Era fato. Diante de minha denegação, fez sinal para que me aproximasse para um abraço; após, pediu-me um cigarro, sua última consolação. Eu sai de sua casa muito perturbado, sem esperanças. Dois dias após, era o fim !…”
Como conclusão de Quelques Souvenirs d’un Éditeur de Musique, o autor escreve: “nossos mestres atuais produzem sempre belas obras e eu conheço jovens nos quais devemos depositar as maiores esperanças” a evidenciar um espírito superior afeito à tradição e aberto a novas perspectivas. O ter seguido com acuidade o movimento musical em França e a sua vida pessoal de raro interesse dá às Memórias de Jacques Durand uma importância referencial para a compreensão de período tão extraordinário.

Jacques Durand (1865-1928), the author of “Some Memories of and Editor of Music”, and his father, Auguste Durand, had a solid music education and owned a publishing firm that by the end of the XIXth century was already a landmark in France. The Durand house was responsible for the publication of authors such as Edouard Lalo, Jules Massenet, Camille Saint-Saëns, Claude Debussy, Maurice Ravel, Paul Dukas. It published also the French edition of some of Wagner’s operas, the critical edition of Rameau’s complete works (under the initial direction of Saint-Saëns) and three very important works for piano in the XIXth century: Chopin revised by Debussy; that of Mendelssohn by Maurice Ravel and that of Schumann by Gabriel Fauré. Later on, the works of Francis Poulenc, Olivier Messiaen, André Jolivet and Darius Milhaud were also edited by the prestigious Durand & Fils. The book is interesting because the author was well acquainted with outstanding musicians of his time- – with special emphasis on Camille Saint-Saëns and Debussy – and manages to capture the complexity of the musical, social and political world of fin-de-siècle Paris.