“Um Sonho Chamado K2”

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La mort n’est donc indéterminée que comme moment à venir.
Plutôt qu’indéterminée, la mort est imprévisible.

Vladimir Jankélévitch

O K2 é a montanha mais terrível,
mais repulsiva e fascinante que qualquer outra.
Para os seres humanos,
é um símbolo do inatingível, uma eterna tentação
.
Karl Diemberger

O infausto episódio acontecido nos primeiros dias de Agosto último, em que morreram 11 alpinistas depois da queda de um serac, bloco de gelo resultante da fratura de um glaciar, ratifica a extrema dificuldade em se alcançar o topo da segunda maior montanha do mundo, o K2 (8.611m), localizado na cordilheira Karakorum, próxima ao Himalaia, entre Paquistão e China. Ao vir abaixo, o serac matou cinco montanhistas, isolando mais de uma dezena que se encontravam acima, cerca de 8.300m de altitude. Especialistas têm o K2 como o grande desafio de suas carreiras. Li recentemente o livro de Waldemar Niclevicz (Um Sonho Chamado K2 – A Conquista Brasileira da Montanha da Morte. Rio de Janeiro-São Paulo, Record, 2007, 373 págs.). A presente tragédia, somada a outras tantas, leva-nos a refletir sobre a fronteira entre a vida e morte, desafio permanente de um alpinista.
O relato de Niklevicz tem a força do testemunho de quem por duas vezes, em 1998 e 1999, tentou sem sucesso a escalada do perigoso K2. Avalanches e dificuldades outras tornam a subida e, sobremaneira, a descida terrivelmente complexas. Inúmeros especialistas sucumbiram ao desafiar aquelas alturas.
Um Sonho Chamado K2 antolha-se-me como uma antevisão da terrível tragédia ocorrida recentemente. Menciona o autor uma frase de Reinhold Messner que “a descida das montanhas representa também um retorno à vida. Cada passo da subida, no entanto, equivale a dois passos que nos afastamos dela”. Niclevicz narra em sua dantesca descida do K2 que sentiu a morte bem próxima: eu me arrepiava ao escutar os pedaços de gelo despencarem, tilintando como pedaços de vidro dentro daquele abismo negro. E continua: sabia que a maioria das 54 vítimas do K2 até então havia perdido a vida durante a descida, e justamente nas proximidades daquele trecho traiçoeiro da escalada. Causa impacto ao leitor a insistência de tantos alpinistas que, ao enfrentarem o desafio da escalada do K2, têm a convicção absoluta, mais do que em outras subidas e descidas, do perigo maior sempre à espreita. É a certeza de que o “inevitável” pode ocorrer a cada momento. Escreve o autor, a revelar parcela do porquê do desafio situado bem além da aventura pela aventura: Nesse mundo particular formado pelas montanhas mais espetaculares da Terra, eu não teria nenhum outro interesse além da busca das alturas mais elevadas, da ânsia de superar meus próprios limites, para encontrar, dentro de mim mesmo, o sentido da minha existência. Sabia, portanto, que jamais eu chegaria ao alto do K2 se não superasse todos os meus medos e fraquezas. Sabia que, na verdade, estava novamente em busca da escalada do meu próprio ser e não de uma montanha de rocha e gelo.
Tão forte reação o K2 exerce sobre Waldemar Niclevicz que o alpinista dedica capítulos às tragédias ocorridas em 1986 e 1995, sem considerar as outras tantas mortes por ele mencionadas em anos diversos. A determinação e ousadia de Niclevicz foram responsáveis pela não desistência após insucessos anteriores devido aos riscos de avalanches e da metereologia, a apontar péssimos dias para a empreitada. A escalada vitoriosa em 2000, juntamente com os experientes alpinistas italianos Abele Blanc e Marco Camandona, é narrada por Niclevicz de maneira palpitante e possibilita ao leitor entender as atrozes dificuldades que o K2 apresenta. E pensar que, para o público em geral, o Everest, apenas 237 metros mais alto, recebe a atenção total, apesar de ser menos difícil sua escalada !
A tragédia de Agosto, somada a tantos outros infaustos acontecimentos desde a primeira escalada ao K2, em 1954, evidencia o permanente peristilo da morte. Números surpreendem. Se o Everest é largamente o mais visado, sobram estatísticas espantosas quanto à comparação com o K2. Para cada 12 pessoas que escalaram o Everest, uma morreu, enquanto que a proporção no K2 é de uma morte para cada três sucessos.
Tragédias e a leitura da narrativa de Niclevicz levaram-me à reflexão. Vladimir Jankélévitch, filósofo e musicólogo, em sua obra La Mort debruça-se sobre o “instante do acontecido” traduzido pelo momento do desenlace. A salvaguarda, segundo o grande pensador, é não sabermos o infinitesimal flash que separa a vida da morte. Se nos fosse dada a possibilidade de conhecer quando morrer, não haveria garantia alguma para a existência e esta estaria com a sua trajetória já traçada, sem o vislumbre da esperança. Para o condenado à morte é dado conhecer o momento de seu desaparecimento físico. Contudo, se tem sua pena modificada no instante derradeiro, poderá haver a visão absoluta da razão da existência, que passaria a ser valorizada como nunca anteriormente. É-nos facultado precisar a passagem de um cometa, mas o ser humano segue em direção à morte sem saber seu instante final. Jankélévitch afirma: É por motivos metafísicos que a predição é impossível. Não se trata de uma imprecisão acidental, mas de uma indeterminação essencial. Fiquei a meditar sobre o livro do pensador francês visitado na década de 80. Não haveria uma “situação intermediária” do axioma mors certa, hora incerta? Todos esses valorosos alpinistas, em narrativas pungentes, não “namoram” perenemente o momento derradeiro, continuando sempre a insistir nessa fronteira única, sem retorno, se a fatalidade de atalaia surgir em forma de uma avalanche, de um passo em falso, da corda que se rompe, do ar rarefeito, do mal da montanha, do congelamento, da fragilidade humana em face ao inesperado? Buscar o limite nessas situações não significaria ir ao encontro da morte, vislumbrando-a e tantas vezes sucumbindo à sua atração? Que desideratos, tantas vezes inconscientes, levam o homem a sentir-se demiurgo, mas a pedir socorro no momento em que a senhora morte é vislumbrada através da densa neblina ou de um abismo sem fim? A irresistível necessidade de sua presença não significaria a tentação de sentir a ruptura da salvaguarda mencionada por Jankélévitch? O alpinista, no instante em que decide afrontar o mau tempo rumo ao cume, não estaria indo ao encontro da mors certa, hora certa? Seria a prudência, em situação extrema de perigo, salvaguarda confiável, se considerado for o motivo a levar o homem ao temível cume?
Um Sonho Chamado K2 prende totalmente a atenção do leitor. Ficaria apenas uma ressalva referente ao desiderato de Waldemar Niclevicz em mencionar tantas vezes ajudas dos diversos patrocinadores e, no final, de todos os doadores. Vivemos na era globalizada, a busca de recursos se torna necessária, mas se existisse maior discrição, acredito que não haveria a quebra da seqüência da empolgante narrativa. Seria bom crer que os auxílios apenas premiam a intrepidez do montanhista, sem esperar o retorno financeiro.

K2 tragedy in August 2008, in which eleven mountaineers died following an avalanche and a sudden and savage storm, reminded me of the book Um Sonho Chamado K2 (A Dream Called K2) ,written by the Brazilian climber Waldemar Niclevicz, an account of his successful and dramatic attempt to summit K-2, the 2nd highest mountain on earth and said to be more difficult to ascent than Everest. The climbing accident led me to reflections on life and death inspired by the thoughts of the French philosopher Vladimir Jankélévitch.