Em torno de uma Dissertação
Os países da América Central e do Sul, de raízes castelhanas,
embora como nós latinos e católicos,
diferem radicalmente do Brasil na sua formação.
Todos tiveram suas realizações culturais
iniciadas dentro da arte sacra,
mas nenhum deles teve suas raízes culturais dentro da imaginária,
da escultura religiosa, como aconteceu com nosso país.
Eduardo Etzel
A temática a respeito da Pós-Graduação na área das Humanas tem sido objeto de reflexões transmitidas em posts anteriores, mormente em O Drama da Pós-Graduação – O Perigo do Circunstancial Endêmico (21/06/07). Entre as muitas mazelas existentes nesse domínio, apontava uma essencial. Referia-me ao mau orientador que abriga não importa qual projeto, um dano à nossa cultura, oposto absoluto do competente, que não apenas sabe escolher o candidato, como compreende as nuances preferenciais de um bom orientando. Havendo uma enorme demanda por bolsas junto aos Institutos de Fomento pelos “selecionados” para dissertações e teses, joio e trigo se misturam. Muitas vezes, conveniências oriundas sobremaneira da longa carreira acadêmica de um orientador “oficial”, não de um scholar autêntico, estarão a anunciar todo o mal, pois o veredicto final apenas contemplará duas palavras: aprovado ou reprovado. A fronteira entre ambas é tênue e dissertações ou teses são aprovadas no limite do regular, enquanto outras, extraordinárias, têm a mesma palavra de aceite. Quão fundamentais eram as notas beirando o dez, sendo esta uma referência! Alunos aprovados na faixa mínima permitida sabiam que não haviam sido exemplares. Hoje tudo se confunde, e o Sistema nada faz para alterar essa terrível simplificação a premiar chaga que se alastra sob o olhar benevolente dos detentores do poder educacional, pois o “conceito positivo” estaria a demonstrar eficiência.
A premissa fez-se necessária. Quando aceito participar de uma Comissão Examinadora, verifico em primeiro lugar o nome do orientador, garantia, em princípio, de um bom trabalho acadêmico a ser avaliado. Ao ler o nome de Percival Tirapeli, Professor Adjunto do Instituto de Artes da UNESP, e a temática estudada pelo candidato Ailton S. de Alcântara, atendi ao chamado. Após a leitura da dissertação, apreendi tratar-se de um competente contributo acadêmico: Paulistinhas – Imagens Sacras, Singelas e Singulares, a valorizar não apenas o trabalho artístico na confecção dessas peças de devoção, como igualmente a fazer justiça ao extraordinário pesquisador Eduardo Etzel, certamente o mais importante conhecedor de nossa imaginária (vide Eduardo Etzel – A Valorização do Humanismo – I, e Literatura Sobre Arte Sacra no Brasil – II , 17 e 25/08/07, respectivamente). Dissipa-se pouco a pouco a opinião distorcida que entendia o monumental legado de Etzel como não relevante, devido à sua não formação acadêmica na área de Artes! De maneira progressiva e contundente, a luz prevalece sobre a escuridão.
Percival Tirapeli, autor de vários livros sobre história da arte, entre os quais Arte Brasileira – Arte Colonial. Barroco e Rococó (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2006, 96 págs.) soube entender e orientar Ailton Alcântara numa temática pouco explorada academicamente, se bem que exemplarmente desvelada por Eduardo Etzel. Contudo, a partir das pesquisas do referido estudioso, Alcântara esboça propostas que deverão servir a debruçamentos maiores e indispensáveis quanto às Paulistinhas.
A dissertação, dividida em três capítulos, estuda inicialmente a introdução da imaginária pelos religiosos nas terras descobertas pelos portugueses. A origem, motivada pela necessidade da propagação do catolicismo, resultou na construção de igrejas e capelas na extensa faixa litorânea. A interiorização territorial empreendida pelos bandeirantes e outros intrépidos aventureiros fez com que, pouco a pouco, o futuro Brasil ficasse povoado de templos e de abundante imaginária. Alcântara debruça-se sobre o período em que jesuítas e, mais tarde, beneditinos e franciscanos, com forte tradição portuguesa, passaram àqueles já nascidos nos trópicos a técnica da confecção de imagens em madeira ou em barro, este cru ou cozido.
Ao abordar as estruturas sociais, econômicas e religiosas na Província de São Paulo, o candidato a mestrado preparou o terreno a fim de que a temática central – Paulistinha – estivesse esclarecida. Evidenciando um conhecimento competente da matéria estudada, Alcântara mostrou, em bem realizado data show, a transição das imagens de barro cozido, criadas basicamente desde o século XVII, até a transformação final que seria a Paulistinha, do final do século XVIII e de todo o século XIX, a adentrar as primeiras décadas do século XX. Paulistinhas anônimas e aquelas realizadas por Benedito Amaro de Oliveira – o Dito Pituba (1848-1923) – foram apresentadas. Um debate profícuo foi mantido entre os membros da Comissão Examinadora, da qual faziam parte o orientador já mencionado, José Leonardo do Nascimento, Professor Adjunto do Departamento de Artes Plásticas da UNESP e o autor deste post. Alguns tópicos foram propostos e acredito que novas luzes recairão sobre essa extraordinária criação típica do Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo.
Eduardo Etzel prefere denominar “os” Paulistinhas, atendo-se aos santos. Se considerada for como imagem sacra, tem-se a palavra no feminino. A respeito das Paulistinhas, tem-se a imaginária em seu sentido mais despojado. Confeccionadas por santeiros, homens simples do campo ou das cidades do Vale do Paraíba, essas pequenas peças de 10 a 18 cm de altura, aproximadamente, povoaram as casas dos caboclos e dos moradores das pequenas cidades da região. Utilizando-se do barro, o santeiro preenchia as fôrmas necessárias, colocava-as no forno em alta temperatura, e as imagens confeccionadas ganhavam consistência, daí centenas delas terem chegado intactas até os nossos dias. Pinturas singelas, precisas, sem muitas variações, davam a essa típica representação da imaginária paulista o dom da perfeição possível. Eduardo Etzel as compararia às tânagras, pequenas estatuetas em terracota da Grécia antiga. Sendo de pequena dimensão, as Paulistinhas preenchiam oratórios simples, decorados principalmente com pinturas florais e também feitos pelos santeiros. Todo um cenário a levar à religiosidade estava estabelecido. Se considerarmos os grandes casarões de algumas fazendas do Vale do Paraíba, com suas capelas fora das moradias, ou oratórios grandes no interior a abrigarem imagens maiores, poderemos verificar a importância extraordinária, ainda não totalmente valorizada na sua intencionalidade, que é a Paulistinha, imagem destinada aos menos favorecidos.
Em post anterior (vide O Espírito de Síntese- Atingir a Decantação, 01/03/08) abordava essa qualidade inalienável que é o retorno às formas clássicas – ou ao despojamento e simplificação – empreendido por tantos compositores. Mutatis mutandis, entendo a Paulistinha como a síntese absoluta da imaginária barroca. Dos panejamentos esvoaçantes; das ornamentações e pinturas douradas sobre estofamentos precisos de gesso das peças em madeira; das expressões contemplativas, de êxtase ou de dor expressas nas imagens do período barroco; das coroas em ouro ou prata; das dimensões bem maiores; todo um longo caminho do erudito ao popular, da riqueza à singeleza, do ornamento à síntese, a resultar nas Paulistinhas. O abastado, capaz de encomendar a peça de ostentação, ou o humilde camponês, que pedia a imagem de devoção ao santeiro do entorno em troca da parca economia, foram responsáveis pela obra de arte. O erudito e o popular pertencendo à categoria de obra de arte. A Paulistinha, em sua dignidade despojada, hierática, em seus traços enigmáticos a não expressar sentimentos, em seu panejamento a tender para a verticalidade sem contornos e em sua peanha funcional, a permitir a queima adequada, mas igualmente a elevação espiritual, aí está a desafiar o tempo e a mostrar que em arte o excelso pode ser apreendido na frase contida em Citadelle, de Saint-Exupéry: “É bem possível que a perfeição seja alcançada não quando nada mais há a ser acrescentado, mas quando nada mais há a ser suprimido”.
No retorno à minha cidade-bairro, o Brooklin, fiquei a pensar na dissertação de Ailton Alcântara e senti certo constrangimento em ter sido obrigado a escolher entre duas palavras, sem a menor possibilidade de outorgar-lhe uma altíssima nota em reconhecimento pelo belíssimo trabalho apresentado. Realmente o pensamento limitado dos educadores governamentais de plantão é o de equalizar competências. Mentes estreitas só podem gerar fronteiras estreitas de avaliação. Perde-se a grandeza, indispensável ao crescimento em qualquer área. Tenhamos esperanças no sentido de que um dia voltemos às notas tão precisas e delimitadoras de dissertações e teses. O insofismável emergirá.
A brilliant thesis defense − a research on the “paulistinhas”, small sacred images in clay, typical of São Paulo state, a local version of erudite models − led me to reflect, as a member of the jury, on the importance of awarding grades to candidates for a higher degree in universities. In Brazil, theses are no longer graded and examiners have to choose between two words: accepted/unacceptable. Instead of rewarding an outstanding work with the highest grade, our education authorities prefer to equalize competences, making it impossible for examiners to define the different levels of achievement of each candidate.