Entendimento Através das Entranhas
Quem procura boa árvore,
boa sombra colhe.
Adágio Açoriano
No post anterior, o tema central abordou as Paulistinhas, pequenas peças em terracota da imaginária do Vale do Paraíba e que prosperaram entre fins do século XVIII às primeiras décadas do século XX. A dissertação defendida por Ailton Alcântara levou-me a várias reflexões.
Fiquei a pensar a respeito da pesquisa de campo na área de nossa arte sacra. Eduardo Etzel (1906-2003), meu mestre, amigo e analista durante longo período, dizia sempre que nessa área em particular a pesquisa de campo é a única a levar à captação abrangente dos conteúdos essenciais da imaginária. Na realidade, o conhecimento pleno da origem da criação, seu destino primeiro nas mãos dos humildes habitantes de nossa roça ou das cidades pequenas , a visualização dos interiores das casas simples contendo oratórios e imagens para devoção, o conversar com esse povo absorvido nos pobres afazeres, na rotina, mas também nas festividades em homenagem a santos do dia, tudo faz com que melhor entendamos o cerne criativo e o porquê dessa imaginária tão peculiar entre tantas outras espalhadas por Portugal e pelo Brasil. Ao comentar com o amigo e vizinho Jorge, perguntou-me ele sobre fatos ocorridos durante minhas andanças pelo Vale do Paraíba. Lembranças surgiram, algumas pitorescas.
Durante 10 anos, todos os sábados percorria a região do Vale, sendo que mais intensamente fixei minha atenção na criação do extraordinário Benedito Amaro de Oliveira, o Dito Pituba (1848-1923), santeiro de Santa Isabel que proficuamente produziu imagens em madeira e terracota, assim como oratórios a partir de madeira de lei, inicialmente, e após, mercê da demanda, de madeira de caixas importadas contendo bacalhau, vinhos, ou latas de óleo. Parte da extensa região abrangendo Parateí, Santa Isabel, Igaratá, Nazaré Paulista, Itaquaquecetuba e outras localidades, assim como morros e campos foram percorridos juntamente com meu saudoso amigo Carlindo Pavan. Saíamos quase ao amanhecer de São Paulo e retornávamos felizes, empoeirados e cansados. Narrar fatos inesperados causa-me alegria.
Carlindo e eu adentramos um sem número de casas de campesinos. Éramos sempre bem recebidos. Chão de terra, muitas vezes casas de madeira e barro, telhados de muitos materiais diferentes, a simplicidade no seu limite, mas sempre presentes lá estavam oratório e algumas imagens, geralmente Paulistinhas. Muitas das peças totalmente enegrecidas pelo picumã, decorrente da fumaça do forno para a refeição escassa dentro da moradia. Quantas não foram as vezes que tomamos café fervido em água pouco confiável. Recusar, impossível, pois quebra de sinceridade. Para as quase sempre mesmas perguntas formuladas, recebia respostas bem semelhantes. A origem da imaginária tinham-na até duas gerações anteriores, não sabendo precisar períodos ou circunstâncias, pois a tendência era a passagem sem emoções das sucessivas gerações.
Em fins da década de 70, conheci em Santa Isabel Lázaro Pituba, filho de Benedito Amaro de Oliveira. Cego, já com mais de 90 anos, mas absolutamente lúcido, tinha sempre histórias a contar. Em uma de minhas últimas visitas à cidade nos anos 80, Lázaro retirou de cordão que mantinha no pescoço diminuta imagem (3 cm.) confeccionada por Dito Pituba a partir de um chifre de veado e recebida pelo filho quando ainda miúdo. Ofereceu-ma com inusitada emoção. Um pequeno orifício na parte posterior servia para a passagem do cordão. Não distante de Santa Isabel, num percurso em terra batida que vai ao encontro da rodovia D. Pedro, encontrei em casa de campesino, no fundo de seu oratório – sempre havia o risco de se topar com uma aranha ou um escorpião – o corpo sem cabeça de um outro Santo Antônio, igualmente trabalhado em chifre (8 cm.). O morador ofereceu-me a peça, a dizer que sem a cabeça o Santo não mais protegia sua família. Levei a pequena imagem acéfala. No ano seguinte, ao passar pela mesma casa, visitei os moradores. Novamente percorrendo com os dedos a mesma parte do oratório, encontrei a cabeça perdida. Curiosidades.
Mais contundente foi ter encontrado uma minúscula capela em pequena estrada de terra em Parateí. Servia como santa cruz, local demarcado após algum assassinato e onde moradores costumam colocar imagens quebradas. Observei que havia no interior um pequeno oratório de viagem. À porta da capelinha, uma colméia do chamado marimbondo caboclo ou de fogo, de coloração grená. Grandes e inamistosos, pareciam guardiães do espaço abandonado. Meu amigo Lazinho Lima, caipira da região, aconselhou-me a não entrar. Teimosamente curvei-me e bem devagar penetrei no diminuto recanto, retirando o oratório. Felizmente nada aconteceu, mas Lazinho afirmou-me que a picada de um desses marimbondos provoca dor e febre durante dias. Ao sair, o amigo mostrou-me uma jararaca que, lamentavelmente, acabara de matar, pois o réptil estava com o bote preparado. No interior do pequeno oratório de viagem – 22 cm de altura -, em lata e totalmente enferrujado, uma pequena imagem de São Lázaro em madeira confeccionada por Dito Pituba revelou mais essa criação do artista na feitura da mínima “casa” doméstica para os santos padroeiros.
Episódios individuais durante pesquisa de campo apenas dimensionam a inter-relação com o foco de estudo. A captação do todo, seja em qual circunstância se der, favorece o entendimento. Martin Heidegger (1889-1976), já escrevia que uma obra de arte deslocada de seu ambiente original, ao ser instalada em museu, perde sua aura. É bem possível que isso ocorra. Contudo, para aquele que realiza a pesquisa de campo, ficará sempre marcado o amálgama da obra de arte com o ambiente originário. Ainda mais considerando-se o contexto “provisório” e tênue da arte sacra popular de São Paulo, dificilmente ela permanece perenemente em seu ambiente primeiro. Fatores vários corroborariam esse ocaso. Entre estes, a pobreza dessa brava gente que mora nos campos; as intempéries; os vorazes cupins a tudo destruírem; a mudança de crença com a investida de um sem número de seitas anatematizando o culto aos santos, o que implica a destruição das imagens e oratórios; a presença de larápios a furtarem o pouco que resta. Felizmente, alguns museus e colecionadores preservam a extraordinária criação popular do Vale do Paraíba. As exposições, contudo, deveriam não somente mostrar as peças sacro-populares, como também exibir o que resta ainda do mobiliário simples do povo da região. A visão etnográfica enriquece. O freqüentador teria possibilidade de sentir o ambiente da criação, o destinatário final que diuturnamente orava a partir das singelas peças de nossa imaginária popular. Quiçá um resgate ainda possa ser feito
My adventures as a field researcher some decades ago, when I was collecting and studying religious images known as “Paulistinhas” and the importance of the field work to establish a link between the object of study and the person who uses it – in my case, the poor peasants along the Paraíba do Sul river in Brazil. I believe that capturing the whole makes easier the understanding of the parts that compose it.
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