Os Doze Estudos para Piano
Os termos vanguarda ou modernismo
não têm mais interesse para mim.
A Sagração da Primavera de Stravinsky
é uma obra capital, seja em 1913 ou agora.
Pierrot Lunaire de Schoenberg também.
Os Études para piano de Debussy
e o 4ª Quarteto de cordas de Bartok igualmente.
Pierre Boulez
O CD contendo os Doze Estudos para piano de Claude Debussy que será lançado no sábado, 25 de Outubro, das 12 às 14hs na Loja Clássicos na Sala São Paulo, tem em seu encarte texto que escrevi originalmente em francês para a edição apresentada ao público da Bélgica em 2006. Por ultrapassar os limites a que me proponho para os posts publicados no blog, será inserido nestes próximos dias no item Essays que se encontra no menu de meu website. Contudo, ao prezado leitor, senti a necessidade de explicar as causas que me levaram a gravar essa obra extraordinária. Dir-se-ia, um making-of “subjetivo” da gestação desse CD.
Quando apresentei pela primeira vez a integral para piano de Claude Debussy em 1980, em quatro recitais no MASP, e paulatinamente em anos sucessivos em Portugal, já entendia serem os Doze Estudos o ápice da produção irréprochable do grande compositor francês. No livro O Som Pianístico de Claude Debussy (São Paulo, Novas Metas, 1982), com prefácio da insigne gregorianista e especialista em Debussy, a Profª portuguesa Júlia d’Almendra (1903-1992) (vide A transparência através das cartas, item Essays do site), buscava não apenas abordar a obra completa para piano de maneira sucinta, mas apresentar conceitos que teriam futuramente guarida acima do equador. O então Diretor do Departamento de Música da Bibliothèque Nationale da França, o ilustre François Lesure (1923-2001), convidou-me a iniciar colaboração através de artigos para os Cahiers Debussy do Centre de Documentation Claude Debussy (www.debussy.fr ). Desde 1983, seis textos foram publicados pelos basilares Cahiers, sendo que dois têm os Études como foco: Le langage pianistique des deux dernières Sonates (Nouvelle Série, nº 14, 1990, págs. 55-71) e La technique pianistique et les doigtés dans les Études (nº 19, 1995, págs. 53-68). Quando apresentei uma de minhas teses junto à Universidade de São Paulo, O idiomático técnico-pianístico na obra de Claude Debussy, François Lesure participou da douta Comissão Examinadora. Como um dos quesitos era a apresentação pública, entre as obras executadas constavam criações camerísticas e para piano solo, neste segmento constando alguns Études. A prova de interpretação pública foi gravada pela Rádio Cultura-FM. O notável musicólogo, autor dos mais importantes trabalhos sobre Debussy da segunda metade do século XX, já me aconselhava naquela oportunidade a gravar os Études. Lembro-me de ter-lhe dito que, sendo a obra o grande monumento debussyniano, não pretendia registrá-lo. Criação a ser reverenciada e que contava com gravações históricas excelsas. Debussy, em várias missivas durante a criação dos Estudos em 1915, externaria seu posicionamento a respeito da qualidade e do extremo rigor neles contidos. Motivos vários – como o hermetismo, o abstrato “pedagógico”, quando em outras produções a titulação simbolista corroborou a associação com a música perante o público, o espírito de síntese exemplar – levaram a maioria dos pianistas que interpretam Debussy a preferir obras mais ventiladas e com clara indicação extra-musical.
Passou-se o tempo. Na Bélgica, a Direção da Rode Pomp, selo para o qual tenho gravado tantos CDs, dois deles com obras fundamentais de Debussy, solicitou que registrasse os Études, pois eu fixara anteriormente todos os de Alexander Scriabine, e mais dois CDs contendo Estudos contemporâneos belgas e brasileiros.
Quando em plena quimioterapia, extremamente fragilizado, assisti deitado, em um domingo frio, pela TV a cabo, a interpretação de pianista internacional da maior visibilidade, que alternava comentários e execução dos Doze Estudos. Perfeição digital absoluta havia, mas a anima e a descaracterização de fundamentos propostos por Debussy, compositor a tudo indicar no sentido do entendimento de suas intenções, eram evidentes, sobremaneira em quesitos essenciais. O fato de Debussy não ter assinalado indicações metronômicas – mensuradoras de andamento – para os Estudos, quando o fizera em outras obras, mormente no 2º Caderno de Images, leva-o a comentar em carta ao seu editor Jacques Durand aos 9 de Outubro de 1915: “Você sabe minha opinião sobre os movimentos metronômicos: eles são justos durante um compasso, como as rosas no espaço de uma manhã”, o que pode levar o intérprete a pressupor, paradoxalmente, a arbitrariedade. Sentia naqueles momentos uma sub-reptícia intenção, determinada pelo pragmatismo do mercado, de se conduzir Debussy às estereotipadas execuções virtuosísticas ou acrobáticas, perpetradas na interpretação de determinadas obras românticas por tantos pianistas consagrados. Levantei-me com dificuldade, fui ao teclado do computador e escrevi à Rode Pomp: “o próximo CD, se forças tiver e o Senhor me der trégua, será dedicado aos Doze Estudos de Debussy”. Logo após, recebia da respeitada casa belga um e-mail em letras garrafais e em vermelho: “À la bonheur!!!” (Felizmente!!!). Já na segunda feira, começei a reestudar essa obra magistral e em 2005, parcialmente restabelecido e com o nihil obstat de meus médicos, gravava a criação pianística testamentária de Debussy na mística Capela Sint-Hilarius de Mullem na Bélgica, sob a supervisão do sempre amigo e extraordinário engenheiro de som Johan Kennivé.
A gravação revestiu-se de intencionalidades múltiplas. Realizava o pedido de meu saudoso amigo François Lesure, prestava um tributo ao extraordinário compositor e, confesso, sentia-me irmanado no mal que o acometera. Debussy, após ter realizado a revisão dos Estudos para piano de Chopin para a casa Durand, compôs a sua obra maior para o instrumento. No verão-início do outono de 1915 escreve os Doze Estudos divididos em dois livros, já com os sintomas do câncer que lhe seria fatal em 1918. Finda a obra, redige carta ao seu grande amigo Robert Godet: “(…) eu escrevi como um louco, ou como aquele que deve morrer na manhã seguinte”. No interior de Sint-Hilarius deu-se essa comunhão. Encerrada a gravação, após três madrugadas de fervor, o alvorecer iluminava tenuemente a capela e a planura flamenga, e uma atmosfera de paz e de gratidão ao Poder Maior aconteceu. Com a saúde sub judice, não deixei de refletir longamente diante do sacrário tão próximo do piano. Todos nós temos os nossos limites e a consciência da existência dessas fronteiras leva-nos ao desafio. Há dez anos gravo em Sint-Hilarius, mas essa gravação esteve sob a aura das identidades. Lançado em 2006 em Gent pela De Rode Pomp, tem agora a edição brasileira. Duplicado na Sun Trip sob encomenda da Clássicos Editorial Ltda., teve o esmero que caracteriza essa empresa.
Por motivos já expressos em As Mortes do Intérprete, texto de 1988 (vide item Essays em meu site), jamais tive minha imagem em capas de LPs ou CDs. Nenhum juízo de valor. Questão de estilo, tão somente. Sabedor dessa minha certeza, Nelson Rubens Kunze, diretor da Clássicos Editorial, idealizou, e Gilberto Duobles realizou a apresentação gráfica do CD, captando, sem que eu soubesse, a essência essencial que emana dessa obra exemplar, que “paira sobre os cimos da execução”, segundo Claude Debussy. Contudo, como curiosidade a ilustrar o presente post, coloquei uma montagem realizada pelo ótimo fotógrafo Rômulo Fialdini. Foi publicada no Suplemento Cultural de “O Estado de São Paulo” aos 16 de Setembro de 1973, como imagem para uma crítica redigida por José da Veiga Oliveira de meu recital no Auditório Itália, quando apresentei os Doze Estudos. Tinha eu a metade dos meus 70 anos.
Mercê da gravação belga lançada em 2006, tenho sob encomenda um artigo para publicação internacional e conferências na Antuérpia e na Sorbonne em 2009 e 2010, respectivamente, quando estenderei minhas conceituações a respeito da observância imperiosa aos critérios estabelecidos por Debussy para os Douze Études, condição sine qua non para que uma tradição interpretativa não se estiole.
My CD with Debussy’s twelve Études for piano will be released in Brazil on 25 October 2008 and this post explains the reasons why it was recorded. These days more and more pianists seem to have become infected by speed, maybe due to the proliferation of piano contests all over the world. They want to set up new records, especially in the field of tempi. Of course, virtuosity has always been an important aspect of the Concert Étude. In the case of Debussy, however, forcing the pace in fast movements can sweep away the essence of the interpretation, turning it just a display of bravura. This recording had multiple intentions: to fulfill the expectations of my late friend, François-Lesure, former director of the music department of the French Bibliothèque Nationale; to pay a tribute to one of the most important of all French composers by recording his Études strictly observing his indications; and also, I must confess, to find an outlet for the mystic bond I had with the composer at the time. In October 2004, when I decided to accept the challenge of recording the Études, I had to fight two battles: one to master the demands of Debussy’s pieces, another to survive a lymphoma. In 1915, when Debussy wrote his Études, he was also struggling against the ravages of a cancer that would kill him three years later. In his own words, he wrote them “as someone who will die the following morning”.
Clique aqui para ouvir Pour les Arpèges Composés, executado ao piano por J.E.M.