A Força das Imagens
Tenhamos confiança absoluta nas energias da vontade.
Saber querer é o sagrado mister dos corações sensíveis.
Austregésilo de Athayde
Há livros que prendem nossa atenção mercê do impacto iconográfico. Alguns adquirem inclusive o status de obra de arte, sempre de subjetiva avaliação, a depender do talento e das escolhas empreendidas pelos organizadores. Stefan Gan foi o responsável por texto, pesquisa de imagens e edição de fotografias do livro João Carlos Martins (São Paulo, Parágrafo, 2008, 168 págs.). Poder-se-ia considerar o livro, em formato substancioso, como uma publicação de arte, mormente pelas fotografias especiais que percorrem, em panorâmica expressiva, parte da trajetória do pianista, hoje regente, João Carlos Martins. Tem-se mais de sessenta anos relatados através de fotos extraordinárias, que não apenas contam a história do grande intérprete da obra de J.S.Bach desde a sua infância, mas oferecem também a Stefan Gan possibilidade de organizá-las numa leitura sócio-iconográfica, pois auditórios e as várias categorias de público são focalizados. As imagens, grande parte em branco e preto, o que significa maior fidelidade, apresentam o músico diante de sua realidade: o miúdo no início de seus estudos, os ambientes que freqüentou como intérprete, assim como a legião daqueles que o cercaram e cercam, ilustres ou anônimos.
João Carlos Martins é um livro bonito. Destaca, a partir de um crescendo – termo por nós, músicos, utilizado – o estágio atual do pianista, hoje regente. Carismático, João Carlos soube, através de uma insofismável bagagem pianística, impor-se nacional e internacionalmente. De posse desse tesouro obtido a partir de disciplina férrea, tenacidade, concentração e talento, o instrumentista atingiu naturalmente o estágio de mito após sofrer todas as vicissitudes que o levaram à impossibilidade de tocar piano. Que pianista, entre nossos intérpretes, teria essas histórias como lastro reservado ao herói? Que regente tem hoje tão grande empatia com o público de todas as classes sociais? Essa primazia, pois, seria sustentada pela grande mídia, e João Carlos, com agudeza – característica dos carismáticos – sempre soube apreender os meandros da comunicação. Se é hoje, possivelmente, o mais ventilado músico erudito do país, bom para a música como um todo.
Stefan Gan teve o cuidado de inserir com sensibilidade textos sobre João Carlos. Colheu depoimentos relevantes de personalidades como Dave Brubeck, fantástico pianista de jazz; Heiner Stadler, produtor das gravações J.S. Bach; Jay Hoffman, agente de tantas décadas nos Estados Unidos. Milton Glaser, Marluce Dias, Jô Soares e Marcos Frota prestam igualmente tributo a João Carlos. Ficariam reservados dois depoimentos de colegas pianistas: Arthur Moreira Lima, amigo e parceiro em tantas memoráveis apresentações Bach-Chopin, assim como minha homenagem.
Transcrevo-a na íntegra:
“Escrever sobre João Carlos faz-me apelar às lembranças. A nossa infância e juventude foram bem compartilhadas, pois nos dedicávamos à mesma atividade musical e dormíamos no mesmo quarto. De todos da família, apenas nós dois persistimos pianisticamente, estudando com os mesmos professores: Giammarusti, Berkovitz e, bem mais longamente, com José Kliass. Período decisivo de nossas existências. Sob forte e salutar disciplina, cumpríamos os horários estabelecidos por nosso pai e, nos intervalos de dez minutos entre dois espaços de tempo pianísticos, brincávamos com uma bola no grande quintal de nossa casa.
Foi a partir de 1958 que o destino levou-nos a regiões geográficas determinantes em nossas trajetórias. João teria o aperfeiçoamento pianístico e cultural nos Estados Unidos e eu fiquei alguns anos em Paris. Se permanecia ‘recluso’ em França, comprometido com o ato de estudar música e entender a cultura francesa, João Carlos precocemente iniciava uma promissora carreira pianística, com sucesso extraordinário até a desventura do primeiro acidente com o braço direito, mercê de uma queda em prática esportiva. Reerguer-se-ia várias vezes em todo o seu caminhar, lutando bravamente com dramas outros a acometerem seus braços e mãos até o epílogo recente, a impedir definitivamente o prosseguimento da carreira pianística.
Durante décadas, o nosso relacionamento sempre amistoso permanece esporádico por motivos ligados às nossas próprias opções. Esse distanciamento jamais interveio num sincero e mútuo respeito. Ratifico a minha profunda admiração por sua interpretação da obra completa de Bach para teclado, executada ao piano de maneira ousada e como verdadeiro desafio ao establishment existente. Se Gleen Gould já rompera tradições enraizadas, por que não buscar caminho outro? Assim João Carlos pensou em relação a J.S. Bach e, dessa maneira, conseguiu edificar a sua construção pianística. Se distante da traditio, não seguida como padrão, a interpretação de João Carlos está a apontar para um horizonte novo que poderá propiciar visitações diferenciadas à obra do grande Kantor.
No peristilo de sua ‘aposentadoria’ pianística, quando sua mão direita já não mais suportava os impactos digitais sobre o teclado, graças ao ataque de um celerado em Sófia um anos antes, João Carlos e eu gravamos na capital da Bulgária os dois Concertos para dois teclados (pianos) de J.S. Bach, acompanhados pelos Solistas de Sófia. Estreitávamos os nossos laços e entendi o grande drama pelo qual passava. Durante as gravações, reiteradas vezes teve de interromper as sessões, mercê de desmesurado inchaço em sua mão direita. Esse triste fato prolongar-se-ia durante os três longos dias de gravações. Dores e contorções contrapunham-se à vontade de ver finalizado o seu hercúleo trabalho bachiano. Felizmente, a duras penas chegamos ao final de dramática mas bela gravação, e os dois Concertos incorporaram-se à opera omnia para teclado do grande Bach.
O novo desafio visualizado, a regência, deu a João Carlos a certeza da continuidade. Catarse, conceitos que conscientemente ou não já integravam o seu de profundis, encaminharam-no para o homem da grande mídia. De longe acompanho o seu sucesso. Fiel às minhas origens, permaneço a entender a música como magia e mistério e a servi-la sem desviar-me de rumos traçados. Esse aparente antagonismo, longe de distanciar-nos, apenas ratifica admirações que sabemos mútuas”.
Como sempre faço (vide Bragança Paulista, Razões de uma Escolha, 23/07/07 e Bragança Paulista (II), O Retorno Necessário, 29/08/08), estava em Bragança em fins de Outubro a escrever um longo texto em francês para publicação na Bélgica. Na portaria do Grande Hotel Bragança disseram-me que famoso maestro viria à cidade, a fim de reger sua própria orquestra. Perguntaram-me: “Professor, ele também é Martins. O Sr. O conhece?” Sem nada responder, liguei para o celular do João, que se encontrava no Rio de Janeiro. Contei-lhe a viva voz o curioso episódio. Sabia ele que Bragança é meu refúgio a acalentar idéias que afloram, desaguando para o papel na bucólica praça José Bonifácio. Imediatamente convidou-me para tocar duas obras no seu concerto, que se deu no dia 8 deste mês. Ele mesmo escolheu: L’isle Joyeuse de Claude Debussy e o Estudo Patético de Alexander Scriabine. Sem contar nossa gravação em Sófia em 1996, não subia a um palco com o irmão desde os anos 80. Foi uma grande alegria, e o público que superlotou a Casa de Cultura pôde sentir o carisma de João Carlos, hoje absoluto frente à orquestra e às platéias. Ao piano, com os poucos dedos que ainda podem tocar, foram executadas obras de J.S.Bach, dois andamentos lentos de Concertos para piano e orquestra de Mozart − sob a regência competente do spalla, Laércio Diniz −, mais Piazzolla e Tom Jobim, levando o auditório ao delírio. Essa mescla ratifica a justa adoração de João Carlos por J.S.Bach e evidencia a opção por outros repertórios também. Os ouvintes saíram comovidos, inebriados com a chamada música de concerto. João Carlos conquistou “minha” Bragança Paulista na plenitude (vide fotos do FotoBlog A Música Venceu!).
“Carisma” sem lastro, entendo-o como simulacro. O caso João Carlos é carisma em sua abrangência. J.S.Bach e sua integral ao piano, Alberto Ginastera e a primeira audição absoluta de seu Concerto para piano e orquestra, o Carnegie Hall de Nova York em inúmeras apresentações com sala repleta, dramas e tragédias, estes são alguns exemplos que representam o profundo embasamento a levá-lo ao patamar do músico lendário. Se o pianista teve de interromper seu caminho por motivos alheios à sua vontade, o regente não apenas teve a acolhida instantânea do público espalhado pelo país, como, através da Fundação Bachiana, criada por João Carlos, está a propiciar o ensino e a audição da boa música a centenas de crianças e jovens menos favorecidos.
É portanto de especial valia o conhecimento de João Carlos Martins, de Stefan Gan. Agora lançado, o leitor poderá, através da imagem, seguir uma trajetória singular. Que João Carlos persista em seu imenso trabalho. Creio ser o voto de todos nós.
A book entitled “João Carlos Martins” has just been published. Superbly illustrated, it portrays the charismatic Brazilian pianist and conductor from childhood to the present. It is a brief recollection of his life, work and spiritual strength, enhanced by testimonials of friends and fellow musicians.
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