Acúmulos da Escuta e do Olhar
Alguns, para se acalmar em momentos de agitação,
brincam com instrumentos que fazem música.
Outros, simplesmente se limitam a ouvi-la.
Alguém trabalha a terra,
outro corre quilômetros na estrada ou nas ruas.
Alguns, para melhor se acalmar, acionam um jogo eletrônico.
Pere Oliva escreve poemas.
Pseudônimo de Juan Reventós i Carner
Entre os gêneros literários, a Crônica tem um lugar especial. Multidirecionada, caracteriza-se pela singularidade da exposição do autor frente ao leitor, a revelar uma faceta real de seu pensar. Longe das amarras de gêneros considerados maiores como romance, dramaturgia, biografia, história ou até determinadas formatações acadêmicas; distante da poesia ou do conto, mas a fazer fronteiras com essas categorias especiais a depender da sensibilidade de quem escreve, a crônica também tem suas particularidades e divisões.
Quando Colette (1873-1954), como exemplo, escreve crônicas que comporiam En Concert, ou Yasmina Reza (1959- ) detalha determinados fatos sócio-mundanos em Hammerklavier, diferem de outras a narrar o cotidiano, a reminiscência que aflora, impactos causados por leituras ou tantos outros estímulos. Crônicas também seriam determinadas críticas musicais ou literárias que focalizam o óbvio, quando o personagem fulcral é impecável. Nesse caso, desliza para o supérfluo, a fim do agrado fácil. Coelho Neto (1864-1934), Humberto de Campos (1886-1934) – injustamente esquecido -, Sérgio Milliet (1898-1966), Luís Martins (1907-1981), Inácio Loyola Brandão (1936- ), entre tantos, souberam e sabem ser pontuais num gênero tão rico, pois dimensionaram conteúdos. Ao abordar dois livros excelentes de crônicas em posts anteriores, revelava ao leitor a beleza da visitação ao passado por dois autores de talento: Frederico Branco e o arquiteto e cronista português Antônio Menéres (Vide Frederico Branco – A revisitação das imagens perdidas, 09/03/07 e “Crónicas contra o Esquecimento” – A Profissão e o Olhar Diferenciado, 29/07/07).
Quando comecei a escrever textos para o atual blog, já me posicionava no sentido de ter constância: “Manter a periodicidade será fruto prazeroso. Após a sedimentação do blog, o hábito e o conseqüente afeto ao mister” (Vide Praeambulum, 02/03/07). Com o presente post atingimos 102 introduzidos no blog, semanal e ininterruptamente.
Diversos fatores levaram-me à prática. A vontade bem antiga de registrar aquilo que observei e continuo a sentir; a ante-câmara da aposentadoria junto à USP em 2007, a propiciar novas descobertas após anos vividos em sala de aula e comissões que acarretaram, no primeiro caso, o desdobramento da vocação; no segundo, tantos momentos bons e também outros mais perdidos, quando de reuniões infrutíferas. A liberdade do pensar, longe das amarras de textos acadêmicos, está sendo fundamental para a expansão do espírito. Estes continuam sempre, mas apreendendo a essência en plein air e, longe de inócuos relatórios, a pesquisa interior acumulada resulta num debruçar sem pressões. Que extraordinária sensação é continuar a relação amorosa com o piano e com o texto, mas podendo escolher opções: do escrito sobre música para publicação acima do equador com objetivo preciso, a requerer semanas ou meses para a configuração final, à crônica solta que surge como idéia enquanto corro – troto – pelas ruas de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, a pensar a seguir na organização do texto. Os posts convertem-se em escrita de madrugada, numa pincelada, diria. Conversava com Tsuna Iwami, amigo há longo tempo, engenheiro, compositor e ceramista. Disse-me ele que o artista japonês, em gravura ou cerâmica, realiza um só gesto para a feitura do traço. Mutatis mutandis, assim entendo as crônicas que nascem quando o silêncio recai sobre a cidade.
Crônicas de um Observador – Acúmulos da Escuta e do Olhar (São Paulo, Pax & Spes, 2008, 223 págs.) é o resultado de 72 posts hebdomadários. Cláudio Giordano, partícipe de tantas reflexões conjuntas ao longo dos anos, cuidou com esmero da sóbria edição. Juracy, dileto amigo e meu vizinho, perguntou-me certa vez: “Alguma semana você deixou de escrever para o blog?” Respondi-lhe que não, assim como não poderia deixar de respirar. Tornou-se um hábito tão natural que, por vezes, temas ficam perfilados em minha mente, aguardando a descida para o teclado do computador.
Não estaria a escrever somente sobre música. Sentir-me-ia cerceado. Tampouco são minhas leituras apenas musicais. Se a música é o meu pulsar, nem por isso meu olhar deixa de ver o mundo em que vivemos. Daí a configuração de vários compartimentos que me interessam: leitura, cotidiano, impressões de viagem, personalidades, interlúdios.
Os comentários de livros antigos, ou a resenha de publicações atuais, obedecem, nessa liberdade de expressão, a um fundamento: a obra ter-me interessado, o que enseja a oportunidade de transmitir a impressão que ela me deixou. Quando resenhei para o Suplemento Cultural de “O Estado de São Paulo” (1980-1991), a preocupação atinha-se à qualidade do livro e o relato da obra, que nem sempre me agradava, ficava um pouco à margem, a buscar eu meandros que pudessem levar interesse ao leitor. Presentemente, o descompromisso dá-me a liberdade de externar simplesmente a minha visão pessoal do compêndio que leio pelo fato de escolha preferencial.
Impressões de Viagem é categoria sensorial, e os impactos, sob todos os aspectos, que os deslocamentos geográficos provocam tornam-se temas que me aprazem.
Quando focalizo Personalidades, são sobretudo aquelas a quem longas décadas me ensinaram a render tributo. Ter conhecido e conhecer figuras ilustres é um privilégio que tento transmitir ao leitor.
O Cotidiano encanta-me sempre. Figuras humanas expressivas, felizes ou dolorosas, a escuta do som das ruas, a passarada e outros bichos, os contatos do dia a dia, tudo fica registrado para texto ou simples citação. Se brevíssimos, catalogo-os como Interlúdios.
Por fim, a memória. Não está rotulada como categoria, pois lembranças as mais remotas estão sempre a eclodir quando algum fato ou acontecimento, som ou ruído, alegria ou dor trazem-me reminiscências. A memória interpenetra tantos textos… e esse manancial acumulado está sempre à espera, a fim de ser revisitado.
A rigorosa seqüência cronológica dos posts reunidos em Crônicas de um Observador serve para o leitor acompanhar a trilha do pensar durante mais de um ano. Na formatação do livro não considerei a colocação das categorias, tampouco as onipresentes ilustrações. Alguns significativos desenhos, feitos por artistas e amigos do Brasil e do Exterior, substituíram as inúmeras e belas imagens. Como já afirmara no primeiro texto no distante Março de 2007: “Doravante, você leitor está convidado a realizar essa viagem. Que sejamos cúmplices.
Bem haja !”
Seventy-two posts stored in my blog, written without interruption since March 2007, have now been gathered in a book entitled Crônicas de um Observador (Chronicles of an Observer). Embracing various categories of thoughts or events (books, travels, personalities, everyday life and reminiscences), the book is scheduled to be released next Thursday, 27 November.