Estímulos e Recordações
Car seule est importante
et peut nourrir des poèmes véritables
la part de la vie qui t’engage…
Antoine de Saint-Exupéry
À medida que os anos vão se somando, mais distantes ficamos de hábitos tão rotineiros em tempos outros, hoje ultrapassados pela permanente trajetória dos inventos, costumes, modismos, linguajar, tecnologias e tantos outros fatores. Nada a fazer, tampouco incomodar-se. É a realidade a que temos necessariamente de adequar-nos, sob pena de nos tornarmos jurássicos. Se olhar e sentir o novo em constante ebulição é um fato, nem por isso as lembranças do passado deixam de ser prazerosas. Nostalgia? Talvez, mas a certeza do irremediável dá-nos a sensação de que é também importante acompanhar os novos caminhos.
Algumas transformações podem até deixar-nos atônitos pelo impacto de uma degeneração sensível. Falo da degradação da “música” dita de alto consumo, diria em acréscimo, de altíssimos decibéis; ou então da decadência acentuada dos programas da televisão aberta; ou, ainda, dessa ausência do espírito de cidadania entre uma parcela imensa da população. Sem contar fatores outros como a corrupção em todos os níveis, hoje pandêmica; a política desacreditada; o futebol totalmente desvirtuado e decadente neste nosso país; a violência inaudita e a droga, essa chaga absoluta.
Adquiri um livro em 1960 em Paris, pois lera a obra através de generoso empréstimo de um amigo. Comprei e guardei. Ao escrever o texto anterior, lembrei-me de uma frase, epígrafe do post, e finalmente abri literalmente o livro, percorrido pelo olhar e pensar da juventude, hoje revisitado. Trata-se do ensaio Un Voyageur Solitaire Est un Diable, do notável escritor, dramaturgo e ensaísta francês Henry de Montherland (1896-1972). Edição antiga, em brochura, tive de recorrer à velha espátula de prata de lei que meu pai me dera quando completei 18 anos. Reflexões afloraram. Que maravilhamento era abrir um livro, a partir do corte que era feito ao longo da borda extrema das folhas. Cortava-se na extensão e extremidade superiores e tínhamos quatro folhas. Repetíamos a tarefa e após cortávamos duas e mais duas folhas em suas extensões laterais externas, e quatro outras estavam à nossa disposição. Essa prática fazia emanar até o aroma do papel e, sob um enfoque mais profundo, despertava a curiosidade relacionada ao texto, a depender do interesse que por ele tínhamos. Felicidade interior, convívio íntimo com a leitura, pois nesse ato de cortar, o livro se abria como uma dádiva oferecida.
Quantos não foram os volumes que sofreram essa intervenção “cirúrgica”. Um sereno afeto ligava doravante aquele livro ao leitor que tudo anotou a lápis nas folhas derradeiras em branco. Lembro-me de, por vezes, ter cortado mal as páginas. Era raro, mas quando isso acontecia sentia-me irmanado nessa espécie de “dor literária” e não poucas vezes lamentei interiormente ter ocasionado algo ao livro e ao autor. Resquícios da juventude.
Aos 20 anos, ganhei de meus pais um relógio de bolso. Um Studio 17 rubis. Suíço. Até hoje funciona como deveria ser. Lembro-me do prazer que tinha ao dar corda antes de dormir. Com cuidado, eram cinqüenta movimentos dados à coroa na extremidade superior, e o tic-tac aumentava seu ruído. Hoje, por vezes, retiro-o da aposentadoria, realizo o mesmo procedimento e o Studio não desaponta. Continua a dar a hora como antigamente. Cinqüenta anos de convívio e o máximo que acontece em relação à precisão é o mínimo de atraso. Na década de 60, descia a Ladeira da Memória quando vi um grupo rodeando uma adivinha de olhos vendados. Seu companheiro que buscava “fregueses”, ao ver-me parado por alguns instantes, perguntou-me: “O moço tem algum objeto para a nossa adivinhadeira acertar?” Respondi-lhe: “Qual a marca de meu relógio?” E não é que a mulher disse quase a seguir: “É um relógio de bolso Studio, 17 rubis”. Pasmo, dei uns trocados ao cidadão e continuei a descer a ladeira.
Outro hábito, hoje reservado a colecionadores, tantos deles meros esnobes, ficou no passado: a caneta tinteiro. Guardei as que se acostumaram aos meus dedos, pois parte da minha história. Eram familiares. Delas cuidava com o maior esmero, limpando-as periodicamente e utilizando tintas confiáveis. Desde jovem fizera uma mistura, empregando dois tinteiros de tinta preta e um de coloração verde. Dava um belo musgo que me acompanhou até o advento de outras tecnologias, como o computador. Escrever cartas, artigos, ensaios e teses com caneta tinteiro fez parte de tantas décadas. O prazer era imenso ao ver e sentir o deslizar sereno de uma boa pena sobre o papel. Se manchas ocorriam, o mata-borrão lá estava para deter o derrame. Quando escrevi A Transparência Através das Cartas (vide item Essays no site), reportei-me às quarenta cartas e uns tantos cartões-postais enviados pela notável gregorianista portuguesa Júlia d’Almendra ao seu colega de São Paulo. Outras missivas escritas de cá para as terras lusitanas foram igualmente conservadas pela amiga. Nas cartas de Júlia, a magia da escrita transparece. A dor, a alegria, a hesitação e a esperança podem ser detectadas pelo olhar atento. A escrita não nega a intenção do espírito, mas faz transparecer no traço as mutações emotivas. Reflexões que me vêm à mente a partir da caneta tinteiro, essa peça inesquecível, plena de tantas histórias e segredos. Senti que o seu tempo se esvaíra quando, ao assinar lá pelos anos 90 um documento oficial, disse-me o funcionário que não mais aceitavam assinaturas feitas com caneta tinteiro. O “progresso” é implacável.
Ainda escrevo textos com caneta esferográfica ou lapiseira, mais fáceis de serem utilizadas em logradouro público. Basta requererem um debruçar maior, dirijo-me a Bragança Paulista, e a praça continua a ser perene estímulo. A escrita sai prazerosa e até as rasuras – suprimidas pelo delete tecnológico – fazem parte de estranho grafismo.
Percorrendo neste instante o teclado do computador, não posso deixar de sentir, agora sim, nostalgia, sentimento bem humano. Um teclado com defeito é substituído da mesma maneira que trocamos a escova de dentes. Chega um novo, apenas um novo, nada mais. A salvaguarda é que ainda podemos pensar e transmitir. Oxalá essas funções perdurem…
A book bought in Paris in the sixties and read only recently proved a stimulus to my imagination: the pages, still uncut, required my obsolete silver paperknife, making me reflect on the small objects that have been part of my personal history and have now disappeared: the paperknife, the pocket watch, the fountain pen. Old fashioned things reminding me that time flies.